INAUGURADA ÀS PRESSAS POR TEMER: águas do São Francisco não chegam a Paraíba há cinco meses
A bilionária transposição do São Francisco definha na região mais pobre do Brasil. O cenário é desolador.
O
eixo leste, que corta Pernambuco e Paraíba, não resistiu à gambiarra
oficial. O trecho foi inaugurado às pressas pelo ex-presidente Michel
Temer (MDB), em março de 2017, e logo em seguida, de maneira simbólica,
pelo petistas Lula e Dilma Rousseff.
A
água sumiu há cinco meses e parte da região, que vislumbrou o fim da
indústria da seca, continua sendo abastecida por carros-pipas.
A
transposição é a maior obra hídrica do Brasil. O eixo leste foi
inaugurado às pressas e, o norte segue sem previsão para conclusão.
O orçamento inicial de toda a obra saltou de R$ 4,5 bilhões para R$ 12
bilhões.
A
obra, sempre apontada como a redenção do Nordeste a partir do
beneficiamento de 12 milhões de pessoas e do impulsionamento de um novo
modelo econômico, hoje apresenta sinais visíveis de deterioração:
paredes de concreto rachadas, estações de bombeamento paralisadas,
barreiras de proteção rompidas, sistema de drenagem obstruído e
assoreamento do canal em alguns trechos.
Devido aos atropelos
gerados pela conveniência do prazo político, o empreendimento hídrico
não suportou entrar em funcionamento antes do tempo. Foi inaugurado sem
nem sequer ter a drenagem completamente executada e o sistema
operacional de controle implantado.
A conta chegou da pior maneira
possível. Por recomendação da ANA (Agência Nacional de Águas), o
bombeamento da água ao longo do canal de 217 km de extensão foi
interrompido em razão de risco de rompimento no reservatório Cacimba
Nova, em Custódia, Pernambuco.
E sem a água, que também serve para amenizar os efeitos das variações bruscas de temperatura no semiárido, o concreto rachou. A Folhapercorreu 37 km pelas margens do canal que liga Sertânia, em Pernambuco, até Monteiro, na Paraíba.
Em
vários pontos da obra, que entrou recentemente por decreto na lista
de possíveis privatizações do presidente Jair Bolsonaro (PSL), as
rachaduras são visíveis.
Em alguns trechos, a parede de concreto
do canal não existe mais. É terra mesmo. A manta de impermeabilização,
que impede que a água infiltre para evitar um rompimento, fica
desprotegida.
O abandono é tamanho que as estradas de manutenção
que margeiam todo o canal, essenciais para resolução de problemas ao
longo da obra, têm vários pontos com acessos bloqueados. Em alguns
deles, o mato e os entulhos tomaram conta e impedem a passagem dos
veículos.
Não
há nem sequer funcionários nas estações de bombeamento e nos imóveis
construídos nas barragens nas proximidades das comportas. Está tudo
vazio. A impressão é a de que a obra foi largada no meio do caminho.
Para evitar roubo, as empresas que trabalhavam no local retiraram os
equipamentos.
Um
laudo técnico do Ministério Público Federal em Monteiro, emitido em
julho passado, aponta rachaduras no revestimento de concreto de mais de
1,5 centímetro de espessura.
O
perito Marcelo Pessoa de Aquino, que assina o documento, alega que os
canais da transposição apresentam uma série de patologias que são
incompatíveis com o tempo decorrido desde a construção.
Ele afirma
que os problemas, no seu entendimento, estão associados a
impropriedades na concepção ou execução da obra. Questiona, inclusive, a
qualidade do material utilizado.
O professor da UFPB
(Universidade Federal da Paraíba) Francisco Sarmento, que coordenou por
14 anos os estudos e planejamentos hidrográficos da transposição, é
categórico ao afirmar que os problemas apresentados são em decorrência
dos atropelos políticos.
Sarmento atesta que a obra foi inaugurada
sem que estivesse completamente concluída. Para ele, uma temeridade.
Recomendações da Procuradoria em Monteiro para que a transposição não
entrasse em funcionamento foram ignoradas.
De acordo com ele, se o
fluxo da água for normalizado sem a reparação dos danos causados, há um
sério risco de rompimento do canal.
O eixo leste conta com seis
estações de bombeamento. Cada estação deveria ter quatro bombas
gigantes, fabricadas especificamente para a transposição. O projeto
original não foi respeitado. Só há duas delas em cada local.
“Esse
eixo foi projetado para operar com 24 bombas. Temos a metade. A vazão
prevista nunca foi alcançada. Neste momento, nenhuma bomba está em
operação”, comenta.
Outro ponto de alerta é que o projeto foi
posto em funcionamento sem que o sistema operacional tivesse sido
licitado. O mecanismo é essencial para a segurança porque informa em
tempo real, por meio de fibra ótica, quais são os níveis dos
reservatórios. “É uma temeridade o que foi feito. No dia da inauguração,
ficaram apelando pelo celular”, diz.
Duas
barragens chegaram a romper. Uma delas, a de Barreiros, em Sertânia,
apresentou problemas três dias antes da inauguração do sistema. As obras
de tomada d’água, uma espécie de comporta funda para que o fluxo que
vem do canal passe sem que a barragem encha, não foram feitas.
“Tiveram que fazer uma gambiarra, um canal para desviar da barragem”, conta o professor.
Apesar
de toda a precariedade e vulnerabilidade, o governador da Paraíba, João
Azevêdo (PSB), diz que o funcionamento do projeto conseguiu salvar, em
2017, o abastecimento de água em Campina Grande e outros 18 municípios
do entorno. Mais de 700 mil pessoas teriam sido beneficiadas.
Agora,
mesmo sem água no canal, o abastecimento não foi comprometido devido ao
período chuvoso rigoroso. A água que vem de Pernambuco segue pelo canal
e deságua no rio Paraíba. De lá, vai até a barragem de Boqueirão, que
abastece os municípios paraibanos.
Há
comunidades próximas aos canais ainda sem água para irrigação porque o
sistema não foi concluído. Na Vila Lafayete, na Paraíba, 61 famílias
desalojadas de suas terras durante a construção esperam a água para
irrigar a plantação.
Como o canal secou, o agricultor Francisco
José da Silva, 74, precisa percorrer 3 km para pegar água numa das
barragens da transposição. “Vou fazer o quê? A água sumiu. Antes,
passava do lado de casa. Ainda bem que o meu burrinho está de pé e me
salvando.”
A procuradora da República Janaína Andrade de Souza,
que chegou a recomendar, em 2017, que o Ibama (órgão ambiental federal)
não desse a licença de operação do empreendimento, diz que as
condicionantes do contrato não foram cumpridas.
“E quem descumpre
as condicionantes? Governo federal, estadual e municipal. Não houve
revitalização do leito do rio Paraíba, proteção da nascente e
implementação do esgotamento sanitário. Nada disso foi feito.”
As
56 cidades da bacia do Paraíba não são saneadas. “Posso elencar, nas
eleições passadas, muitos candidatos assumindo a paternidade afetiva,
consanguínea da transposição, mas me traga alguém hoje para me
apresentar uma solução. Não existe”, diz a procuradora.
O
eixo norte, que sai de Pernambuco e passa pela Paraíba, Rio Grande do
Norte e Ceará, apresenta 97% de conclusão. No ano passado, foi preciso
realizar reparos no dique Negreiros, em Salgueiro, no interior de
Pernambuco.
Nesta semana, foram iniciados os testes da terceira e
última estação elevatória. Ainda não há previsão de quando o sistema vai
entrar em funcionamento.
OUTRO LADO
O
governo federal informou que, após a interrupção no fluxo da água
devido a um problema em um dos reservatórios, a barragem foi liberada
para testes em julho e o bombeamento retomado.
No
entanto, um alerta durante a fase de enchimento da barragem de Cacimba
Nova fez com que o MDR (Ministério do Desenvolvimento Regional), no dia
15 de agosto, suspendesse novamente o bombeamento.
O governo
comunicou que a medida é preventiva e que não há risco de rompimento. O
consórcio supervisor da obra realiza no momento estudo e perícia para
identificar ajustes técnicos necessários à estrutura, bem como indicar
ações preventivas e de reparos que precisam ser realizadas.
O
ministério diz que a decisão do extinto Ministério da Integração
Nacional foi priorizar a finalização dos serviços necessários ao caminho
das águas para que chegasse em Campina Grande por existir a
possibilidade de colapso hídrico.
O governo informa ainda que as
avarias na obra não existiriam caso a empresa responsável tivesse
cumprido o planejamento. Os serviços complementares no eixo leste
estavam sendo realizados até dezembro de 2018. Em abril, o contrato foi
rescindido pelo governo devido ao não cumprimento. Um nova licitação
será realizada.
A empresa SA Paulista, que teve o contrato rescindido em abril pelo governo federal, não quis se pronunciar sobre o assunto.
A
assessoria de imprensa do ex-presidente Michel Temer comunicou que a
transposição só foi inaugurada após passar pelo aval técnico do
Ministério da Integração Nacional. Disse também que havia problemas de
execução anterior, incluindo a qualidade do material empregado.
A
assessoria do ex-presidente Lula ressaltou que a inauguração é um ato
oficial do governo Temer. Destacou que Lula deixou o governo em 2010 e
Dilma Rousseff em 2016.
Conforme a assessoria, a ida de Lula a
Monteiro atendeu a um desejo da população local que é grata ao petista
por retirar do papel uma obra cogitada desde o império. Por fim,
salientou que os problemas novos que surgiram não são de
responsabilidade do ex-presidente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário