Médicos relatam efeitos colaterais graves do 'tratamento precoce' contra a Covid-19
Os medicamentos do "tratamento precoce" da Covid-19 estimulado pelo Ministério da Saúde e pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) podem causar arritmia cardíaca, sangramentos e inflamação no fígado, segundo especialistas
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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quando Edson José da Rocha, 51, recebeu o diagnóstico de Covid-19, veio junto a indicação do chamado "tratamento precoce", com drogas como azitromicina e ivermectina. Quando foi internado com a doença, foi a vez da cloroquina e, logo em seguida, passou a sentir uma sensação estranha no peito. Logo depois vieram a piora e, menos de um mês após a entrada no hospital, a morte.
Quem conta a história
de Edson é sua irmã, Ivone Meneguella, médica intensivista de hospitais
em Campinas (SP). Segundo ela, uma arritmia cardíaca e a piora do
quadro clínico ficaram claras após o terceiro comprimido de cloroquina
que o irmão tomou, apesar do apelo que ela tinha feito aos seus médicos
de não dar a droga por causa do histórico de arritmias na família.
Após
o início da medicação, Edson também desenvolveu grande cansaço, dores
na barriga, diarreia e desidratação. "Eu sinto o meu coração bater na
boca", dizia Edson, segundo conta Ivone. O policial penal morreu em 26
de agosto do ano passado.
Os medicamentos do "tratamento
precoce" da Covid-19 estimulado pelo Ministério da Saúde e pelo
presidente Jair Bolsonaro (sem partido) podem causar arritmia cardíaca,
sangramentos e inflamação no fígado, segundo especialistas.
Após
um ano de pandemia e dezenas de estudos, a cloroquina, a
hidroxicloroquina e a azitromicina não mostraram efeito benéfico no
tratamento da doença, e não há estudo convincente sobre a eficácia
antiviral da ivermectina.
Em nota conjunta, a
Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e a Associação Médica
Brasileira (AMB) afirmam que as melhores evidências científicas
demonstram que nenhuma medicação tem eficácia na prevenção ou no
tratamento precoce para a Covid-19 até o presente momento.
Como
escreveu o médico infectologista e professor da USP Esper Kallás em sua
mais recente coluna da Folha: "É compreensível que, no início, fossem
adotados medicamentos sem benefício comprovado. Afinal, muitos pacientes
estavam morrendo.
Entretanto, há meses, temos dados suficientes para abandonar o uso dessas medicações, por provas contundentes de que não ajudam no tratamento e também podem estar implicadas em riscos adicionais não desprezíveis".
O
cardiologista Bruno Caramelli, professor e pesquisador da Faculdade de
Ciências Médicas da USP (Universidade de São Paulo), afirma que em cerca
de três meses, ainda no início da pandemia no Brasil, chegou a receber
no Hospital das Clínicas da USP três pacientes de Covid-19 que estavam
tomando cloroquina e tiveram arritmias graves.
Segundo o
médico, esse tipo de arritmia é raríssima, mas tem forte conexão com o
uso do remédio. Em quase 30 anos de profissão, o cardiologista havia
recebido, antes da pandemia, apenas três casos semelhantes, geralmente
em pacientes que faziam algum uso da cloroquina ou da hidroxicloroquina
– os remédios são oficialmente indicados para doenças como lúpus e
malária.
"A Covid-19 pode gerar alteração cardíaca, e as
pessoas ainda tomam um remédio que, além de não funcionar contra a
doença, pode causar arritmia. A Covid-19 mata uma porcentagem muito
baixa dos pacientes, mas com milhões de doentes esse número cresce. Se
tivermos o uso em larga escala da cloroquina, vamos ver dezenas de
pessoas com arritmias graves", diz Caramelli.
O caso de Edson não foi o único que Ivone acompanhou.
Trabalhando
no enfrentamento à Covid-19, a intensivista conta que já viu um caso de
encefalite (com presença de confusão mental) e outro de hepatite
medicamentosa por causa do uso de ivermectina.
Ainda que
reações graves a remédios como a cloroquina, ivermectina e azitromicina
sejam raras, o médico Christian Morinaga, gerente-médico do
pronto-atendimento do Hospital Sírio-Libanês, afirma que desde março de
2020 houve aumento no número de pacientes que procuraram o hospital com
sintomas leves e graves após tomarem medicamentos sem orientação médica.
A principal causa para a automedicação é o medo da Covid-19.
"Chegamos
a atender pacientes com arritmia e sangramento, provavelmente causado
pelo uso de medicamento sem prescrição médica", afirma o médico.
De acordo com Morinaga, há registros de manifestações mais leves também, como diarreia, náusea e reações alérgicas.
"Com
a população mais angustiada e a circulação de notícias falsas, ficou
mais comum ver pacientes chegarem ao hospital com o efeito colateral de
alguma medicação. Recebemos até pessoas assintomáticas que usam esses
remédios como forma de prevenção. Não tem sido incomum observar casos
mais graves, que precisam de hospitalização", diz o médico.
Raquel
Stucchi, pesquisadora da Unicamp e membro da SBI (Sociedade Brasileira
de Infectologia), também afirma estar ouvindo relatos sobre hepatites
medicamentosas relacionadas ao "tratamento precoce".
Em
redes sociais há relatos de pacientes que usaram os medicamentos. Um
deles estava no perfil de uma apoiadora de Bolsonaro, com publicações
defendendo o uso de cloroquina e outras colocando em dúvida a segurança
de vacinas. Após o contato da Folha, o perfil deletou a mensagem que
falava sobre efeitos colaterais.
Em junho de 2020, Fernando
Abreu De Araújo, 30, de Iguatu, no Ceará, teve Covid e o seu médico
receitou ivermectina e azitromicina.
"A primeira semana foi
horrível. Eu não sei se foi efeito dos remédios, mas ao mesmo tempo em
que estava com dor no peito, estava com muita dor nos rins. Comecei a
tomar muita água pra ver se a dor diminuía", afirma ele, que não chegou a
procurar serviços de saúde para monitorar a situação. Mas após
interromper o uso das drogas (que durou cinco dias), as dores sumiram.
"Todos
estão desesperados, mas temos de continuar lutando para que as pessoas
não caiam no conto do vigário, que é pior. Há pessoas, médicos e
autoridades veiculando uma mensagem extremamente perigosa sobre esses
remédios", afirma Caramelli.
Segundo Stucchi, além de estudos
não apontarem eficácia das drogas, quem as toma pode acabar achando que
vai melhorar e demorar para procurar ajuda quando o quadro de saúde
piora.
"O risco de ter complicações com os medicamentos é
baixo, mas o grande crime é desviar o foco, dizer para as pessoas que,
usando os remédios, elas vão estar protegidas, podem ir para a rua,
aproveitar a balada e relaxar o isolamento social", afirma Caramelli.
De
acordo com Morinaga, do Sírio-Libanês, mesmo os pacientes
reumatológicos que fazem uso contínuo da hidroxicloroquina ou da
cloroquina precisam visitar o médico com frequência para avaliar o risco
do uso prolongado das substâncias.
E
até mesmo remédios que têm comprovação científica de melhora da
Covid-19, caso de corticoides como a dexametasona, que é indicada apenas
para casos graves da Covid-19, precisam de monitoramento e podem fazer
mal nos casos mais leves da doença, alerta o médico.
A OMS já
fez esse alerta, contraindicando seu uso para os casos mais leves.
Segundo Morinaga, desrespeitar a recomendação pode prejudicar as defesas
do corpo, abrir caminho para alguma infecção microbiana e agravar o
quadro clínico.
"A maior parte das sociedades médicas são
contra a prescrição do 'tratamento precoce'. Não há tratamento para o
paciente com caso leve, que não está internado. O recomendado é o
isolamento em casa e o monitoramento dos sintomas", afirma Morinaga.
Em
nota conjunta, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e a
Associação Médica Brasileira (AMB) afirmam que as melhores evidências
científicas demonstram que nenhuma medicação tem eficácia na prevenção
ou no "tratamento precoce" para a Covid-19 até o presente momento.
"Além
das dificuldades já esperadas para o momento, a disseminação de fake
news, especialmente por meio das redes sociais, não para de crescer. A
desinformação dos negacionistas que são contra as vacinas e contra as
medidas preventivas cientificamente comprovadas só piora a devastadora
situação da pandemia em nosso país", diz a nota.
Para disseminar mais informações de qualidade, a intensivista Meneguella faz hora extra nas redes sociais.
Segundo
Marcos Machado, presidente do Conselho Regional de Farmácia do Estado
de São Paulo (CRF-SP), o aumento da automedicação nos últimos meses é
perceptível, principalmente com o uso do antiparasitário ivermectina e
do vermífugo nitazoxanida (Annita), ambos sem efeito contra o
coronavírus Sars-CoV-2, segundo as evidências científicas mais robustas.
Desde
terça-feira (19), tem circulado nas redes sociais um artigo que diz que
uso da ivermectina pode reduzir as mortes causadas por Covid-19 em 75%,
mas o artigo não foi publicado por nenhuma revista científica e está
disponível em um repositório no formato pré-print, isto é, que ainda não
teve seu conteúdo revisado por outros cientistas. Além disso, o artigo é
uma revisão de outras pesquisas, muitas delas ainda não publicadas em
periódicos da área médica.
No texto, os próprios autores
afirmam que a eficácia da ivermectina precisa de validação em um estudo
clínico robusto. "[Nos estudos revisados] houve uma variação grande de
padrões de cuidado do paciente, e a dose da ivermectina não foi a mesma
em todos eles", escrevem os pesquisadores. Ou seja, do ponto de vista de
evidência científica, a eficácia da ivermectina permanece não
comprovada, segundo os próprios autores.
"Em mais de 20 anos
de profissão, nunca vi incentivo oficial do governo para consumo de
medicamentos dessa forma. Na história da saúde pública brasileira,
sempre houve a preocupação de desestimular a automedicação, que é
perigosa", afirma Machado.
O farmacêutico diz que esse
estímulo gera pressões por parte da população sobre médicos e farmácias
para que o remédio seja prescrito e vendido. "Os médicos estão sendo
cobrados", afirma.
O "tratamento precoce" do Ministério da
Saúde inclui ainda os antibióticos azitromicina e doxiciclina. O uso
constante de antibióticos gera um problema grave de saúde pública que
pode ter efeitos no futuro. Eles podem induzir um processo evolutivo
conhecido como resistência bacteriana, que acontece quando as bactérias
passam por mutações que as tornam resistentes a esses antibióticos e
tornando-os ineficazes.
Desde 2010, é necessário ter receita
médica para adquirir qualquer antibiótico. A compra da cloroquina e da
hidroxicloroquina também passou a exigir a retenção da receita médica
após uma resolução publicada pela Anvisa em julho de 2020, diante da
escassez dos remédios para pacientes que já usavam o medicamento.
No
entanto, pressões sobre os médicos podem fazer com que mais pessoas
tenham acesso aos medicamentos. A retenção de receita também era
obrigatória para a compra de ivermectina e nitazoxanida (Annita) desde
julho de 2020, mas a barreira foi retirada para esses dois remédios a
partir de uma decisão da Anvisa publicada em setembro de 2020.
"Não
é como o presidente diz, que se não fizer bem também não fará mal.
Remédios podem ser muito eficazes para alguns pacientes, enquanto outros
não se adaptam ao tratamento. Não sabemos que consequências o uso
desses remédios pode ter porque nunca foram tão usados como agora.
Depois desse período é que vamos saber o custo para a saúde pública",
conclui Machado.
Principais efeitos esperados dos remédios do 'kit Covid'
Reações são raras, mas chance aumenta com uso contínuo e/ou associado a outros remédios.
Sulfato de Hidroxicloroquina
- Lesão na retina
- Hipoglicemia
- Insuficiência cardíaca
- Arritmias
- Morte súbita
Cloroquina
- Cegueira
- Lesão na retina
- Perda auditiva
- Insuficiência cardíaca
- Arritmias
- Distúrbios neurológicos
Ivermectina
- Tontura
- Sonolência
- Lesões na pele
- Diminuição da pressão arterial
- Aumento da frequência cardíaca
Azitromicina
- Distúrbios de paladar e olfato
- Disfunções auditivas
- Arritmias
- Inflamação no pâncreas
- Dor abdominal
- Insuficiência hepática
Efeitos que podem ser produzidos por qualquer remédio em automedicação:
- Irritação gastrintestinal
- Inflamação do fígado (hepatite)
- Diarreia Náuseas
Fontes: EMS, Cristália, Abbott e Eurofarma
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