Especialista alerta para cuidados com a gengiva durante surto de coronavírus: ‘É como andar com uma ferida exposta’
“Quem
sairia pelas ruas com uma ferida mais ou menos do tamanho da palma de
sua mão, sangrando, inflamada, completamente exposta?”, provocou a
periodontista carioca Mariana Fogacci, professora da Universidade
Federal de Pernambuco, em uma conversa que tivemos há cerca de 15 dias.
Provavelmente ninguém em sã… Consciência que fala?
Bem,
consciência é uma palavra difícil de usar no contexto. Por exemplo,
muitos ignoram que, se fossem esticadas, suas gengivas ocupariam
aproximadamente essa área, a da palma de suas mãos. E, sem enxergar o
menor perigo nessa atitude, saem por aí com elas feridas, sangrando,
inflamadas, completamente expostas a cada vez em que abrem os lábios.
Volto
a procurar a professora. Há duas semanas, afinal, as pessoas se
beijavam, se abraçavam, se esbarravam em ruas lotadas, se apertavam para
caber mais um no elevador… Parece que foi dois séculos atrás. Explico
por telefone que segurei a publicação do texto com sua participação
porque fomos, todos, atropelados pelo famigerado coronavírus.
Nosso
papo dias antes — que ficou suspenso como tantas festas, namoros
recém-engatados, reuniões de trabalho — era sobre o elo entre os
problemas nas gengivas, a obesidade e duas de suas principais
comorbidades, que seriam os males cardiovasculares e o diabetes tipo 2.
Aliás, diabetes tipo 2 que —aprendi com a professora Mariana — pode
tanto favorecer problemas nas gengivas quanto piorar por causa deles, em
um ciclo nefasto.
Mas nessa segunda conversa, ao me desculpar
pelo adiamento, eu me lembro do óbvio: os grupos de risco da pandemia
atual incluem justamente quem tem diabetes e doenças no coração. Ainda
no último sábado, 21, a revista científica The Lancet divulgou um
estudo da Academia Chinesa de Ciências Médicas com 191 casos
confirmados de Covid-19, procurando compreender onde estariam os maiores
riscos de sucumbir a formas graves dessa infecção.
Pois
bem: 91 pacientes ou 48% do total tinham alguma doença prévia. Entre
eles, quase um terço apresentava hipertensão, 19% eram diabéticos e 8%
sofriam de outras doenças cardiovasculares, ou seja, que não eram
pressão alta.
Pergunto, então, se a saúde bucal teria sua
contribuição nessa história. “Indiretamente, sem dúvida. Por isso,
nesses tempos de reclusão, é ainda mais importante ter uma rotina para
prevenir as doenças periodontais”, diz a professora Mariana do outro
lado da linha. “Ou elas podem agravar a situação de quem já faz parte
dos grupos de risco e até mesmo os problemas respiratórios”, alerta,
pegando o gancho do que falamos anteriormente. Então, finalmente retomo o
que queria lhe contar quando parecia existir um oceano inteiro entre
nós e o coronavírus.
A boca vai muito além dos dentes
Sorriso
branco, com a dentição toda alinhada, bonito de se ver — é o que todo
mundo quer. “Mas não adianta ter uma casa linda e maravilhosa sem bons
alicerces, porque ela pode desmoronar”, compara a professora Mariana. O
que alicerça seus dentes, no caso, é um conjunto de tecidos — gengivas,
ligamentos, ossos. E, acredite, essa estrutura pode ruir sem que você
repare. No início, a gengiva sangra de leve por qualquer bobagem, perto
de um dente ou de outro, sinal da inflamação conhecida como
gengivite.”Não é normal uma gengiva sangrar com frequência, mesmo que
seja em um único ponto”, avisa a especialista.
Quando a inflamação
avança, aí ela já pega os ligamentos que prendem os dentes feito
amarras e até mesmo os ossos das arcadas. Então falamos em periodontite.
Com o tempo, se esses tecidos permanecem afetados, os dentes ficam
bambos. Dançam como se fossem de leite — e caem. Só que abrir uma janela
no sorriso não tem graça alguma em gente crescida.
No
entanto, embora ficar banguela seja algo triste e sério — comprometendo
a habilidade de mastigar alimentos e, consequentemente, a boa nutrição,
sem contar os danos à autoestima — esse ainda pode ser o menor dos
males, segundo Mariana Fogacci, que é entusiasta de uma área
relativamente nova, a medicina periodontal. “Ela estuda como outras
doenças infecciosas ou inflamatórias pelo corpo agridem os tecidos que
suportam os dentes na boca”, explica. “E como, por sua vez, as doenças
da boca afetam outros órgãos.”
A ameaça de infecções e de mais e mais inflamação
Esta
é fácil de compreender. Os tecidos ao redor do dente são repletos de
vasos. E, se está saindo sangue por eles, isso é sinal evidente de que
há uma brecha capaz de permitir a entrada de uma bactéria que se
encontrava na cavidade bucal ou na superfície do dente, na tal da
placa.”Se a parede gengival está lesionada, bactérias nocivas podem
ganhar a circulação com facilidade e viajar até órgãos distantes da
boca, como os pulmões, provocando doenças ali”, ensina a periodontista.
Mas
não é só isso. As gengivas e os outros tecidos da boca adoecidos
liberam, sem trégua, mediadores inflamatórios. Assim como uma bactéria
cai no fluxo sanguíneo para agir em outros cantos, essas moléculas
também são levadas pela correnteza da circulação. E causam estragos —
por exemplo, em quem está acima do peso. “A obesidade, hoje em dia, é
reconhecida como uma doença inflamatória, porque o tecido adiposo
acumulado produz essas mesmas moléculas. Portanto, se há uma espécie de
reforço, por causa das substâncias inflamatórias que vêm o tempo inteiro
da boca com periodontite, em princípio, complicações do excesso de peso
têm tudo para se intensificar.”
Em
algumas condições de saúde há mais evidências de que isso acontece —
sempre devido às moléculas inflamatórias entrando em cena pela boca.
“Sabemos que elas tendem a se alojar em lesões já iniciadas nas artérias
do corpo, acelerando a formação de placas que põem em risco o coração”,
exemplifica.
Segundo a professora Mariana, no caso de quem tem
diabetes, a maior prova de que os tecidos periodontais inflamados têm
relação com doença é que pacientes que se submetem à limpeza da gengiva
periodicamente e que seguem à risca as orientações do periodontista no
que diz respeito à higiene bucal acabam melhorando o controle glicêmico.
“Estudos mostram que o resultado é comparável a você dar um segundo
medicamento para baixar as taxas de glicose no sangue”, informa.
“Provavelmente porque o estado de inflamação constante agravaria a
resistência das células de todo o organismo ao hormônio insulina, que
colocaria esse açúcar para dentro delas, varrendo-o da circulação.”
Problema em mão-dupla
A
boca também é afetada pelo diabetes. O excesso de açúcar no sangue gera
moléculas conhecidas por AGEs, do inglês produtos de glicação avançada.
Elas agravam o quadro na cavidade bucal. E tem mais: quando o diabetes
não é bem controlado, as defesas do organismo se tornam mais vagarosas e
têm maior dificuldade para chegar onde existe uma ameaça — que pode ser
um machucado na gengiva. Portanto, maior o risco de bactérias
indesejáveis crescerem ali.
Na verdade, qualquer infecção tem
maior probabilidade de pegar no breu. “E, para completar, a produção de
colágeno e, consequentemente, a reparação dos tecidos são prejudicadas
no diabetes. Daí as lesões que fazem a gengiva sangrar e não cicatrizam
com facilidade”, diz Mariana.
O tamanho da encrenca
Existem
graus diferentes de doença periodontal. Para saber o estágio, os
especialistas lançam mão de um exame chamado periograma. É quando
introduzem uma sonda, que lembra um pequeno gancho afiado, no sulco
entre a gengiva e cada dente, um por um — “o normal é a sonda penetrar
de 0 a 3 milímetros”. Mais do que isso? Problema à vista. Outros
aspectos contam na avaliação, como a quantidade de pontos que estão
sangrando.
“Enquanto a cárie pode ser causada por uma única bactéria, Streptococcus mutans,
a periodontite é uma doença mais complexa, provocada por diversos
micróbios ao mesmo tempo que, para você ter ideia, voltam a formar uma
película sobre todos os tecidos da cavidade bucal quase imediatamente
após a limpeza”, ensina a professora.
Não existe um único jeito de escovar os dentes
Por
isso, para mantê-los sob controle rígido, a higienização deve ser feita
com disciplina, passando o fio dental e escovando do jeito certo. Qual
seria o jeito certo? A resposta é que não existe uma técnica universal,
que sirva para todo mundo.
“Muita gente aprende a limpar os dentes
quando criança como se desenhasse bolinhas com as cerdas da escova,
porque é um movimento mais fácil de realizar quando não se tem muita
idade”, comenta Mariana. “No entanto, a técnica ideal de escovação
depende de inúmeros fatores. Posso orientar quem está com uma boca
saudável a manter a escova em um ângulo que faça suas cerdas entrarem
nos sulcos”, exemplifica. “Mas, para um paciente que já está com uma
periodontite mais avançada, uma fricção com mais força nessa região
poderá provocar a retração nas gengivas”, compara.
Uma
sugestão é aproveitar esse tempo para, quem sabe, perguntar ao seu
dentista como você deveria fazer a limpeza — as consultas à distância
podem servir para isso. Não dê moleza aos sangramentos, ainda mais
agora. Porque queremos, logo mais, sorrir pelas ruas.
Fonte: UOL - Publicado por: Amara Alcântara
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