Projeto contra desarmamento avança com força com aproximação da eleição de 2018
Antes,
durante e depois da aprovação do Estatuto do Desarmamento, em 2003, a
legislação que controla as armas de fogo no Brasil tem sido alvo de
disputas. Com o crescimento das redes sociais e a aproximação da eleição
de 2018, o tema voltou com força.
Pelo menos três projetos
legislativos – entre as dezenas de propostas no Congresso que tentam
alterar ou até extinguir o estatuto por meio de plebiscito em 2018 –
contam hoje com grande apoio de ferramentas de participação popular no
Congresso para seguir em frente.
Defensores da revisão do Estatuto
do Desarmamento argumentam que a legislação atual é muito restritiva no
acesso de civis às armas e que se este acesso fosse ampliado, a
crescente violência no país poderia ser contida.
“Com o estatuto, o
uso de armas de fogo foi legalizado para os bandidos. O número de
mortes por armas de fogo só aumentou no país. Antes, a violência só
estava nos grandes centros, mas hoje está no Brasil inteiro”, defende o
senador Wilder Morais, autor de um dos projetos que tramitam no
Congresso sobre o estatuto.
Um dado comumente citado por
defensores de um acesso ampliado de civis a armas é o do aumento dos
homicídios no Brasil desde a aprovação do estatuto. Segundo o Atlas da
Violência 2017, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP),
os homicídios no Brasil passaram de 48,1 mil em 2005 para mais de 59 mil
em 2015 (com uma média anual de 53,5 mil homicídios no período).
O
dado, porém, é lido de outra forma por defensores da legislação atual,
para quem o estatuto contribuiu para desacelerar a escalada dos
homicídios no país. É o que diz o Mapa da Violência 2016, estudo
desenvolvido pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz.
Considerando
que as armas de fogo são responsáveis por cerca de 70% dos homicídios no
país, o trabalho afirma que, entre 1980 e 2003, o crescimento dos
homicídios por armas de fogo cresceu 8,1% ao ano. Mas de 2003 a 2014, a
escalada desacelerou, com crescimento de 2,2% ao ano. “O estatuto e a
Campanha do Desarmamento, iniciados em 2004, constituem-se em um dos
fatores determinantes na explicação dessa quebra de ritmo”, diz o
estudo.
Ivan Marques, diretor do Instituto Sou da Paz, ONG que se
propõe a assessorar o poder público na implementação de políticas para
reduzir a violência, defende que os volumosos números de mortes não
sejam colocados apenas na conta do controle de armas. “O homicídio é um
fenômeno complexo. Não há solução simples: ela passa por investigação,
pela melhora na perícia, na taxa de esclarecimento de crimes”, afirma.
O
instituto aponta, inclusive, que o estatuto pode ser melhor aplicado,
com aprimoramentos como o reforço de campanhas de entrega voluntária de
armas pela população e uma melhor de gestão de dados sobre as armas no
Brasil.
Como outros defensores da legislação em voga, Marques teme
que a ampliação ao acesso às armas pela população possa intensificar a
violência no país: “Ampliar o porte, especificamente, é muito
problemático. Isso não é segurança pública. Eu não gostaria de viver
nessa sociedade.”
Mas, para aqueles que atacam o estatuto, o povo
brasileiro fez sua escolha pelo acesso às armas no referendo (que se
diferencia do plebiscito por ser realizado após a aprovação de uma regra
legislativa) realizado em 2005. O referendo perguntava se “o comércio
de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil”, e a resposta de
63% dos brasileiros foi pelo não.
Segundo projeto do deputado
Rogério Peninha (PMDB-SC), que tenta revogar o estatuto, o resultado
“externou seu [da população] maciço descontentamento para com a norma,
repudiando veementemente a proibição ao comércio de armas no país e, por
conseguinte, toda a estrutura ideológica sobre a qual se assentou a
construção da Lei”.
O comércio foi mantido, ainda que com uma
série de exigências por parte dos interessados em adquirir e possuir
armas e munições. Segundo Peninha, estas exigências não são objetivas,
dificultando “muito” o acesso da população.
O estatuto – que
começou a ser moldado durante a Presidência de Fernando Henrique Cardoso
e foi aprovado no governo Lula – abarca, porém, muitos outros temas
além da comercialização. A legislação centraliza o controle das armas na
Polícia Federal e no Exército; exige a comprovação pelo requerente –
avaliada pela PF -, de que tem “efetiva necessidade” da arma de fogo; e
tipifica o tráfico de armas como crime específico, além de aumentar a
pena para o crime de porte ilegal de arma de fogo, entre outros.
E
não é só no Brasil que o tema causa divisões. Nos Estados Unidos, onde é
regulado por leis estaduais, ele polariza a sociedade há tempos e
sempre é abordado em campanhas eleitorais. O assunto voltou à tona com
força nesta semana após um atirador matar pelo menos 59 pessoas em show
em Las Vegas, no domingo. Foi o tiroteio mais letal da história do país.
Democratas como a ex-candidata Hillary Clinton pediram, após o
episódio, um endurecimento das leis que controlam as armas no país –
onde matanças provocadas por atiradores solitários têm sido uma constant
Na Câmara
No
Brasil, os projetos legislativos mais pertos da votação em plenário
seguem na direção oposta. Apresentado em 2012, o projeto do deputado
Peninha pretende revogar o Estatuto do Desarmamento. O PL 3722/2012 é a
segunda proposta com maior procura do Disque Câmara neste ano – com 861
manifestações a favor e apenas sete contrárias.
No canal, a
proposição fica atrás apenas da quantidade de manifestações recebidas
sobre a PEC 287/2016, que reforma a Previdência Social, com 1.100
manifestações.
Outra ferramenta de participação popular da Câmara
também tem chamado a atenção dos brasileiros ao PL. Na Pauta
Participativa, lançada no último dia 12 pelo presidente da Câmara,
Rodrigo Maia, internautas escolhem pautas a serem levadas à votação no
plenário. Na primeira rodada, encerrada na semana passada, participantes
foram convidados a escolher projetos relacionados à política, saúde e
segurança.
No quesito segurança, o projeto de Peninha foi o mais
votado dentre os seis candidatos para ir a plenário, com saldo positivo
de mais de 5,2 mil votos. Em segundo lugar, está outro projeto
relacionado a armas de fogo – que amplia a possibilidade de porte para
moradores de áreas rurais.
O projeto defendido por Peninha, entre
outras coisas, altera para 21 anos a idade mínima (hoje em 25) para
posse de armas por civis; valida o registro de armas permanentemente
(atualmente, é preciso renovação periódica); e amplia para os civis o
porte de armas – para que possam portá-las fora do local de residência
ou trabalho – mediante alguns requisitos.
“O projeto está
prontinho para ir ao plenário. Colocar na pauta foi um compromisso do
Rodrigo Maia em sua eleição [para a presidência da Casa]”, disse o
deputado Peninha à BBC Brasil. “Depois do Estatuto do Desarmamento, sem
dúvida a violência só aumentou. Vimos que caiu o uso de armas por
cidadãos de bem, enquanto os criminosos ampliaram o acesso a elas.”
Para ele, é inadequado relacionar o atentado em Las Vegas à legislação de controle de armas.
“Na
França, não faz muito tempo, um maluco usou um caminhão para matar 80
pessoas [em julho de 2016, um caminhão matou 87 pessoas atropeladas na
comemoração do Dia da Bastilha na cidade francesa de Nice]. Não é a
legislação que vai impedir um maluco de fazer o crime”, aponta Peninha.
“De qualquer forma, não queremos uma legislação flexível como é nos
Estados Unidos. Vamos abrandar algumas coisas, mas não vamos chegar
perto do que é lá.”
O Pauta Participativa, ferramenta que pode
alçar o projeto de Peninha ao plenário, é, porém, alvo de críticas pelo
diretor do Sou da Paz. “Não há transparência dos critérios para a
escolha dos projetos aptos a serem votados. Também não sabemos se há
mecanismos para conter o mau uso da ferramenta – por exemplo, se há
robôs votando. Em um momento em que o Brasil poderia discutir de maneira
mais estruturada e qualificada a segurança pública, são colocados para
votação projetos polêmicos e com teor popular”, diz Marques.
Por
nota, a Câmara dos Deputados afirmou que a ferramenta apresenta projetos
que “já preencheram todos os requisitos do processo legislativo para
votação em Plenário”, combinando, por escolha de parlamentares e
técnicos, “propostas de grande apelo popular, demandas de setores
específicos e projetos que estimulem a formação política dos cidadãos”.
A
Casa afirmou ainda que exige o cadastro e validação de conta do
usuário, além do recurso reCAPTCHA, para conter a participação de robôs.
“A ideia foi dar segurança contra participações automatizadas, mas não
colocar excessos de controles que inibissem a participação. Vale
destacar que essa mesma linha é adotada por várias soluções de consulta
popular de natureza similar, como o e-Cidadania, do Senado Federal, e o
portal de petições públicas do Parlamento Britânico”, escreveu a
assessoria da Câmara à BBC Brasil, afirmando também que os projetos
vencedores na primeira rodada serão encaminhados ao plenário “em breve”.
Também no Senado
Outro
projeto que busca revogar o Estatuto do Desarmamento e que se mostrou
popular nas ferramentas de consulta do Congresso é o de autoriado
senador Wilder Morais (PP-GO) que propõe a convocação de um plebiscito a
ser realizado junto com as eleições de 2018.
Em enquete no portal
e-Cidadania do Senado, a proposta tem apoio de mais de 231 mil votos.
Há apenas 9,5 mil posicionamentos contrários.
“O eleitorado será
chamado a responder ‘sim’ ou ‘não’ às seguintes questões: I – ‘Deve ser
assegurado o porte de armas de fogo para cidadãos que comprovem bons
antecedentes e residência em área rural?’; II – ‘O Estatuto do
Desarmamento deve ser revogado e substituído por uma nova lei que
assegure o porte de armas de fogo a quaisquer cidadãos que preencham
requisitos objetivamente definidos em lei?'”, diz um trecho do projeto.
Recentemente,
o Senado recebeu outro projeto, do senador Cidinho Santos (PR-MT), que
também propõe a convocação em 2018 de plebiscito “para consultar o povo
sobre porte de arma de fogo e munição”.
“O projeto que avançar
primeiro, na Câmara ou no Senado, está bom. Ninguém aguenta mais”,
afirma o senador Wilder Morais, que se diz “muito confiante” sobre a
tramitação de seu projeto.
Morais também refuta a defesa do controle de armas motivada por ataques como o que aconteceu no domingo em Las Vegas.
“Poderia
ter sido com uma bomba, um caminhão, qualquer coisa. Ele [o autor do
tiroteio em Las Vegas, Stephen Paddock] queria matar: quando você quer
fazer um negócio desses, ninguém segura. Ele foi covarde, atirou de cima
e se suicidou. Se tivesse atirado de baixo, isso não teria acontecido”,
diz o senador, justificando que o ataque poderia ter sido contido por
outras pessoas armadas em solo.
Neste ano, também no Senado, a
Comissão de Direitos Humanos chegou a analisar uma proposta feita por um
cidadão alagoano no e-Cidadania, que pedia a revogação do Estatuto do
Desarmamento. A “sugestão popular”, como é chamado este tipo de projeto,
foi rejeitada pela comissão em maio, mas chegou inicialmente à casa
após o apoio de 20 mil votos no portal.
Procurado pela reportagem,
o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) preferiu não se posicionar sobre os
requisitos e cronogramas necessários para uma eventual realização de
plesbiscito em 2018.
Mudanças em curso
Por
meio de decretos e portarias, porém, o presidente Michel Temer já
alterou alguns dispositivos do estatuto. Por exemplo, a renovação do
registro da arma passou de três para cinco anos, e armas apreendidas,
antes destruídas, podem ser agora doadas para órgãos de segurança
pública e para as Forças Armadas.
Além de parte importante da base
aliada de Temer, grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL) e o Partido
Novo também se dizem contrários ao estatuto do desarmamento.
Para Ivan Marques, tal pauta é aquecida com a aproximação das eleições.
“Em
meio a uma crise de segurança pública, os deputados se aproveitam para
trazer essa solução fácil, de que armar melhoraria a situação. Isso é
eleitoreiro e ineficaz”, aponta Ivan Marques. “O brasileiro não aguenta
mais, mas essa é uma discussão que precisa ser feita com evidências
científicas.”
BBC Brasil
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