sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Relembre as entrevistas com a “mulher do fim do mundo”

"Se fosse uma cantora loira, seria mais reconhecida", disse Elza Soares em entrevista ao Correio Braziliense

A cantora deu várias entrevistas ao Correio Braziliense, onde falava sobre a carreira, sonhos, vida pessoal e preconceito


(crédito: Stèphane Munnier/Divulgação)
Cantora Elza Soares - Crédito: Stéphane Munier/Divulgação

A cantora Elza Soares poderia ter morado em Brasília, mais especificamente, no Lago Sul. Essa é uma das histórias que a “mulher do fim do mundo” contou ao Correio Braziliense em entrevistas durante as últimas décadas.

“Ganhei dele (do então presidente, Juscelino Kubitschek) um terreno no lugar mais importante da cidade (o Lago Sul), mas não fui buscar. Achava que não ia dar em nada. Era tanta lama que pensei: isso vai dar em quê?”, contou a cantora ao Correio, em 2009.

Elza riu ao lembrar das ruas barrentas que hoje tornaram-se a região administrativa mais rica do DF. “Tinha muita lama na cidade, os hotéis eram grandes dormitórios e eu tive o prazer de dormir nesses hotéis feitos para os candangos. Era uma lama terrível. Me lembro da galocha que Juscelino usava, que vinha até o meio da perna, eu usava também uma. Lamento não ter filmado, deveria ter documentado”, contou.

Em outra entrevista, Elza refletiu sobre a vida e a carreira e como gostaria que a história dela fosse contada. Ao ser questionada sobre o que faltava falar sobre ela, após, na época, quase seis décadas de carreira, ela foi categórica: “A verdade”, disse.

“Mostrar para esse povo como é duro chegar ao ponto que cheguei, como lutei, como disse o Nei Lopes: ‘Como lutei, como lutei, para chegar aonde cheguei’. Enfrentando o preconceito, fingindo que não fedia e passando por cima de tudo isso. Eu podia estar trabalhando muito mais, ser mais reconhecida neste país, como tive o reconhecimento da BBC de Londres, como a cantora do milênio. Talvez, se fosse uma cantora loira, seria mais reconhecida. São poucas as negras que você vê no país cantando”, disse.

Relembre trechos de entrevistas da cantora ao Correio Braziliense:


A cantora Elza Soares morreu aos 91 anos de idade nesta quinta-feira (20/1)
A cantora Elza Soares morreu aos 91 anos de idade nesta quinta-feira (20/01) - Foto: Gustavo Moreno/CB/D.A Press 

11 de outubro de 2009:

O ensaísta e compositor José Miguel Wisnik disse que você canta como se cada sílaba fosse um parto. Como você analisa essa declaração amorosa?

Eu acho que comecei a tirar o parto muito cedo e eu sei o que é um parto: ao mesmo tempo dor e carinho. E quando canto, eu canto o amor

Diga duas coisas boas que marcaram sua vida...

Dinheiro para matar a fome e filhos.

Agora duas coisas ruins...

Perder um filho e ter de sair do meu país

Como anda a vida amorosa, com agenda tão cheia?

Maravilhosa. Sempre tiro uma hora para ter prazer. Sempre há um momento, no banheiro, atrás da porta, mas tem o momento (risos). Deitada na mesa da sala, na mesa da cozinha…

Do que ou de quem você sente mais saudades?

Não gosto da palavra saudade. Detesto. Eu não sei o que é sentir saudade, porque mato a saudade pelo caminho. Mas eu gostaria de ter minha casa, que levaram na época da ditadura. Fui expulsa do país e ficaram com a minha casa. Nessa época, a casa foi metralhada e tomaram tudo que eu tinha. E hoje eu cobro do governo, do senhor Lula. Eu trabalhei tanto de graça para ele, na época em que era sindicalista.

Você enfrentou muito preconceito na sua carreira. Como deu a volta por cima?

Chutando o preconceito, passando por cima dele, dando descarga. Você dá descarga naquele vaso, mas ele está em outro e mais outro.

Sua vida foi contada, escrita e filmada. O que falta falar de você?

A verdade. Mostrar para esse povo como é duro chegar ao ponto que cheguei, como lutei, como disse o Nei Lopes: ‘Como lutei, como lutei, para chegar aonde cheguei’. Enfrentando o preconceito, fingindo que não fedia e passando por cima de tudo isso. Eu podia estar trabalhando muito mais, ser mais reconhecida neste país, como tive o reconhecimento da BBC de Londres, como a cantora do milênio. Talvez, se fosse uma cantora loira, seria mais reconhecida. São poucas as negras que você vê no país cantando.

De que você tem medo?

De nada. Tenho medo de ter medo, só isso.

E de que você se orgulha?

De ser a mulher que sou. Da coragem que carrego.

Há uma crítica contra a vulgarização e o empobrecimento das letras do funk. Como você vê o funk carioca?

Eu me assusto um pouco, sabe. Mas é isso que leva gente. Me assusta, mas reconheço que só assim o neguinho vai. Para ver a audácia, porque as coisas estão muito certinhas. Todo mundo quer ver as coisas bem tortas, como eram as pernas do Mané. Eu sou atrevida, cara. Só não tenho as pernas tortas, mas são bonitas e gostosas. Acho que o funk tem isso, essa rebeldia.

O samba resiste à padronização do mercado e ao aparato de comunicação do mundo globalizado?

O samba consegue sobreviver, como diz o Marcelo D2, dentro de outros gêneros, como o hip hop, por exemplo. Foi assim que fiz no CD Do cóccix até o pescoço. Até Arlindo Cruz teve de abaixar a cabeça e entrar no samba do Marcelo D2. E fico feliz vendo isso. Porque eu sou do atrevimento.

Você acha que o Brasil ainda é Brasil ou já foi engolido pela americanização, a mercantilização e a globalização? Ou o Brasil tem saída?

O Brasil está pensando que ele é o Brasil, mas ele já foi tragado. Não resta a menor dúvida. Já levaram ele pra lá. Mas chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor.

E o que fazer?

É reclamar, juntar e bater panela, como os argentinos fazem. O que eu sinto falta é da mulherada gritando, se integrando, reivindicando seus direitos, para melhorar esse país, melhorar a mulher mais ainda, deixar de ser submissa. Vamos ser mais unidas — o que não somos. A mulher se veste para outra mulher, ela não se veste para o homem dela não. Se quiserem, contem comigo. Precisamos melhorar a vida dos nossos filhos no futuro. A minha filosofia é a seguinte: todo dia acordo, digo que tenho 24 horas de vida e preciso aproveitá-las.

A cantora Elza Soares morreu aos 91 anos de idade nesta quinta-feira (20/1)
A cantora Elza Soares morreu aos 91 anos de idade nesta quinta-feira (20/01) - Foto: Joaquim Firmino/CB/D.A Press

10 de novembro de 2014

Você disse que não queria um documentário que falasse de dor e sofrimento. Qual é a essência do seu documentário?

Desde o começo a proposta foi essa. É muito chato ficar falando de dor, de sofrimento. Não! Vamos falar de vida. Acho que o povo está necessitado de abraço, de carinho. Eu sinto isso e tenho certeza que muita gente sente também. Aquele abraço, aquele carinho, aquela verdade. Acho que é disso que todos estamos precisando.

Sua vida tem mais episódios de prazer ou de dor?

Acho que de prazer. Porque toda dor se torna um prazer depois. Não é isso?

De onde vem essa voz que parece uma onomatopeia? Quando começou a cantar assim?

Desde criança. Quando comecei a cantar, eu tinha uma voz diferenciada. Meu pai e minha família não queriam porque, naquela época, mulher que cantava era prostituta. E, até hoje, a palavra que eu mais gosto é “prostituta”… Juro… Porque, no fundo no fundo, todo mundo se prostitui. Acho que no fundo a gente se prostitui muito…sem saber.. mas se prostitui.

Como, por exemplo?

No trabalho, o salário, aguentar empresário, aguentar patrão. Às vezes, a mulher está menstruada, morrendo de cólica, mas ela tem que ir trabalhar. Brigou em casa com o marido, com o namorado, tem que chegar em casa carne negra”… Como vou cantar isso sem dar um berro? Quando eu canto Meu guri também procuro contar uma história. O Chico (Buarque) escreveu uma história de uma mãe pobre inocente que achava que aquele guri era a coisa mais linda e mais certa do mundo e que um dia chegaria a um lugar muito alto. Meu Guri também é meu grito.

Quando canta Carne você faz uma interpretação emocionante, bate no peito… De que forma o racismo afetou sua carreira?

Como eu disse, eu nunca tive patrocínio. Meu patrocínio sou eu. É por isso que dizem que eu sou uma fênix. A fênix quando volta, volta inteira. É o que acontece comigo. E quando eu canto, eu troco o bico, a pele e a carne, a carne negra que é linda e maravilhosa. E isso vale para qualquer mulher. A gente fez tanta coisa para chegar a algum lugar, queimou sutiã para ter direitos iguais. Se nós, mulheres, não lutarmos, isso não vai ter valido de nada. Temos que fazer alguma coisa

Conseguiu se recuperar da cirurgia na coluna?

Estou me recuperando. Não é fácil. Eu descobri que tenho vértebra de criança, não é vértebra de adulto.

Das coisas que fazia antes e não pode mais, o que mais te faz falta?

Salto alto. Eu também tinha um piercing no umbigo e tive que tirar. Não era um piercing qualquer, tinha um brilhante. O piercing nem faz tanta falta, mas o salto alto me faz uma falta louca.

E sambar?

Claro, faz muita falta, porque ficar sem sambar é um castigo.

Você se considera uma sobrevivente?

Não sei o que eu me considero, não. Juro que eu não sei. Acho que eu sou um ser humano estranho. Talvez por tudo que aconteceu comigo, tanta coisa na vida… aprendi a ter paciência resignação. A vida me acalma. Tem hora que a vida dá umas porradas e diz: “acorda, pô!”

Como você vê o tratamento que o governo e a sociedade tem dado às minorias?

Hoje, fazendo um retrocesso, eu vejo que a minoria é a maioria. Esse povo, que faz parte de mim, hoje pode estudar, viajar de avião. Sei que ainda falta muita coisa para a saúde, para educação… Mas eu acho que houve uma melhora tão grande que nós, a minoria, considerados os descartáveis, estamos melhorando de vida. O filho do porteiro faz faculdade. Isso é muito bom. E eu não quero retroceder.

O que precisa ser feito, com mais urgência na luta contra o racismo e a homofobia?

Consciência, vergonha, educação. Com isso melhora. O problema é falta de educação e de consciência do corpo e da mente.

Você conheceu alguns dos grandes nomes da música internacional. Como foi seu encontro com Louis Armstrong?

Ele me chamou de “my daughter”, mandaram eu chamá-lo de “my father”. Pensei que estava chamando ele para fazer outra coisa (risos). Falaram: “Vai lá e chama ele de “my father”, falei: “não, não vou fazer isso, tá louco. E se ele aceitar, se ele gostar, o que eu faço?”. Mas cheguei perto do negão e ele: “yeah, my daughter”, e eu ainda entendia que ele estavame chamando de“doutora, (doctor) e eu pensando: “Pô, o cara me chamando de doutora o tempo todo, meu nome é Elza, Elza Soares”. Aí me explicaram que ele estava me chamando de “filha” e falaram também o que era “my father”.

A cantora Elza Soares morreu aos 91 anos de idade nesta quinta-feira (20/1)
A cantora Elza Soares morreu aos 91 anos de idade nesta quinta-feira (20/01) - foto: CARL DE SOUZA

30 de julho de 2017

A senhora é uma das artistas mulheres com mais representatividade por sua força, história e militância. Como vê o fato de ter se tornado um símbolo para as mulheres brasileiras ao longo dos anos?

Eu não consigo ver tudo isso como dizem... Eu vou vivendo... Enquanto eu puder, vou lutar pelas mulheres, pelos negros e pelos gays. Fiquei sabendo hoje que transexuais e travestis agora podem ter nome social no CPF, fico tão feliz, é uma notícia boa, até que enfim. Vou lutar até o fim!

O álbum A mulher do fim do mundo tem muito de resistência e autobiografia e foi um material que lhe rendeu bastante reconhecimento. A que atribui o grande sucesso e repercussão desse material?

Acredito que foi o encontro com essa meninada muito talentosa. Esse grupo de paulistanos da nova cena da música brasileira (nomes como Guilherme Kastrup, Rômulo Fróes, Alice Coutinho) que vem fazendo já há algum tempo um trabalho inovador.. Cara, achei a minha praia...(risos).

A senhora já está há muito tempo no mundo da música. O que a inspira a sempre continuar cantando,fazendo shows e lançando novos materiais?

Não sei fazer outra coisa além de cantar.Ah! Sei sim, sei cozinhar...(risos). Olha que eu sou boa na cozinha, faço um peixe que todo mundo gosta. Agora não posso ir para a cozinha por conta deste meu problema de coluna... Eu sou muito feliz quando estou no palco, é muito bom ser acolhida por este público que me segue,recebo muito carinho. Foi lindo no teatro Municipal do Rio de Janeiro, todos de pé me homenageando no Prêmio da Música Brasileira pela vitória na categoria de melhor álbum pelo CD e DVDElza canta e chora Lupi. Nesta hora, eu acho que vale a pena continuar.

A sua história de vida tem muitas batalhas. O que a fez tão guerreira e de onde tira essa força?

A vida e as circunstâncias me fizeram assim... Eu tenho fé! Quando as coisas não estão do jeito que eu gostaria, paro e respiro e penso que tudo passa. As coisas boas passam, as coisas ruins passam. Tem que ter paciência e fé, cara.

Apesar de estarmos no século 21, o radicalismo impera, assim como o preconceito. É mais fácil ou mais difícil ser hoje uma mulher negra? O que mudou para melhor e o que piorou?

Ser “humano” hoje é que está difícil. Está difícil presenciar tantas injustiças, tanto desrespeito com outro, não somos nada, absolutamente nada, somos uma folha de papel. Qualquer coisa nos destrói, mas o ser humano é de uma empáfia que eu não entendo...

A senhora sempre se posiciona politicamente. Como vê o atual cenário político brasileiro?

Terrível! Me dá medo! O Brasil é um país lindo, não troco isso aqui por nada, mas está difícil ver o que estão fazendo com o nosso país.

Correio Braziliense - Pedro Grigori

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