Nonato Guedes

Uma reportagem de capa da revista “Veja”, intitulada “O retorno do Dragão”, aponta que a inflação renasceu no Brasil em meio à instabilidade política e já compromete a retomada da economia, sobre a qual havia expectativas favoráveis devido ao avanço do combate à Covid-19 e retomada gradativa das atividades do setor produtivo. Em artigo publicado na mesma revista, da qual é articulista, o ex-ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, alerta que o Brasil enfrenta uma “tempestade perfeita”, o que complica sensivelmente a situação, e explica, de forma didática, por que é difícil baixar a inflação. “Sem reformas, bons governos e mudanças de mentalidade, continuaremos a ter dificuldade em vencer aumentos súbitos da inflação. Felizmente, não há risco de revivermos a hiperinflação”, afirma Maílson, que é paraibano e foi ministro no governo de José Sarney, na década de 80.

A “tempestade perfeita” que Maílson identifica seria formada pela alta de commodities, efeitos climáticos e crise hídrica – esta com reflexos perceptíveis em Estados do Nordeste. Ele pontua que a inflação brasileira é influenciada por fatores culturais e institucionais e pela má distribuição de renda. Assim, choques de preços por condições climáticas ou por altas em cotações de commodities tendem a ter efeitos mais duradouros. “O país não está preparado para absorver esses choques em prazo razoável”, pondera Maílson, lembrando que, durante décadas, dizia-se que o Brasil precisava de um pouco de inflação para desenvolver-se, o que era “pura leniência”. Com a correção monetária, acrescenta, “passamos a conviver com a inflação e não a combatê-la; seu uso se generalizou nos contratos, nos salários e nos preços – em parte, ainda hoje”.

Até na hiperinflação, de acordo com Maílson da Nóbrega, o Brasil foi peculiar. E exemplifica: “Em outros países, a alta inflação provocou o abandono da referência dos preços na moeda nacional. Migrou-se para o dólar. Os preços variavam com a taxa de câmbio. Quando o câmbio se estabilizou, a hiperinflação acabou. Aqui, a saída foi a indexação à inflação passada ou residual e não ao dólar. A indexação gerava a inércia inflacionária: a inflação de hoje determinava os reajustes de amanhã e assim sucessivamente”. A inércia, detalha o ex-ministro, cria uma rigidez para baixo na taxa de inflação, inibindo a ação da política monetária. Assim sendo, a inflação tornou-se imune aos remédios convencionais e ao congelamento geral de preços e salários. O Plano Real inventou a Unidade Real de Valor (URV) para vencer a inércia e, deste modo, estabilizar os preços.

O diagnóstico de Maílson menciona como um outro problema a má distribuição de renda que se verifica no Brasil e que já foi tema de muitas teorias e de muitos estudos acadêmicos, além de formulação de políticas públicas a pretexto de eliminar distorções do modelo vigente. Lembra que a renda das classes menos favorecidas é em boa parte direcionada ao consumo de itens essenciais, com pouca margem de manobra. “Quando há um choque, não é viável substituir esses itens por outros mais baratos. O consumo cai, mas isso não tem o mesmo impacto de uma substituição. A elevação dos juros, enquanto isso, pouco ou nada sensibiliza os gastos das camadas mais pobres”, interpreta Nóbrega. O ex-ministro diz que em outros países o esforço do governo para combater surtos inflacionários costuma associar a alta de juros com uma política fiscal contracionista e que gastos públicos são inapelavelmente cortados como arranjo para readequação da conjuntura.

– Aqui, 95% das despesas primárias da União são incomprimíveis, casos de benefícios previdenciários, gastos com pessoal e transferências constitucionais a Estados e municípios. Desse modo, o papel da política fiscal é nenhum. O Banco Central fica sozinho na luta. Questões culturais e distributivas levam tempo para ser resolvidas. O lado fiscal exige reformas complexas. No atual momento, entraram em cena dois outros fatores: a fragilidade fiscal e a instabilidade política, as quais geram incertezas que afetam a taxa de câmbio, cuja variação amplia o efeito inflacionário dos bens e dos serviços importados – conclui Maílson, assinalando que “tudo fica mais complicado” diante da “tempestade perfeita” que está formada e da própria dificuldade do governo para impor controles. Há opiniões abalizadas na reportagem que reforçam os pontos de vista e, em certa medida, os temores de Maílson.

Uma dessas opiniões é a do ex-presidente do Banco Central, Gustavo Loyola: “A situação fiscal não está resolvida. Esse é o nó macroeconômico que leva a uma volatilidade excessiva da taxa de câmbio”. Edmar Bacha, economista e membro da Academia Brasileira de Letras, sustenta: “No passado, o Brasil resolveu conviver com a inflação. Hoje em dia, ninguém quer ter esse tipo de vida novamente”. E Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central e atualmente sócio da Gávea Investimentos, é taxativo: “Estamos correndo o risco de colocar a perder todo o trabalho de controle da inflação. Seria pior do que frustrante. Seria uma grande pena”. O resumo da ópera está num trecho da reportagem de “Veja”: – Ninguém deseja reviver um passado em que os salários se desvalorizavam imediatamente depois de recebidos, e em que os repasses de preços aconteciam diariamente, obrigando as pessoas a fazer compras no mesmo dia que tivessem dinheiro na mão.

Os Guedes