Brasil já perdeu mais profissionais de saúde para o coronavírus do que Itália e Espanha juntas
Coube
 à enfermeira veterana Carla Mileni Siqueira dos Santos, 49, colher o 
material para exames da primeira pessoa com suspeita de Covid-19 na 
pequena cidade de Rondon do Pará (PA), em meados de março. A situação 
era assustadora: uma doença sem cura, sobre a qual pouco se sabia, em um
 hospital modesto de um município de 52.000 habitantes. Com mais de 20 
anos de profissão, Carla fez aquilo que sempre fez ao longo da carreira:
 tranquilizou a paciente, uma idosa, e calmamente realizou o protocolo 
para testagem da doença. Mesmo tomando todos os cuidados, dias depois 
ela própria adoeceu. Ficou alguns dias em isolamento em casa, mas a 
situação piorou e ela precisou ser internada no final de abril. “No 
domingo de manhã, 3 de maio, ela teve uma piora e pediu para ser 
entubada. Mas teve uma parada cardiorrespiratória e não resistiu”, conta
 Nathalia Roberta Siqueira dos Santos, 25, filha de Carla. “Foram 21 
anos dedicados à enfermagem com muito amor. Ela era apaixonada pela 
profissão, uma líder que além de trabalhar na linha de frente dava 
cursos e ajudava a formar profissionais de saúde, enfermeiros, técnicos e
 auxiliares”, conta.
Estas mulheres —quase 85% dos trabalhadores 
de enfermagem são do sexo feminino— e homens que estão todos os dias na 
linha de frente do combate ao coronavírus nos hospitais brasileiros 
estão morrendo a uma taxa alarmante, uma das maiores do mundo. De acordo
 com o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), até esta quarta-feira 
foram identificados 73 óbitos de profissionais pela covid-19 no país. 
São vítimas jovens: a maior parte (41) tinha menos de 60 anos, sendo uma
 delas de apenas 29 anos. A cidade de São Paulo, maior epicentro da 
crise sanitária no país, lidera o ranking com 18 mortos, seguida por Rio
 de Janeiro, com 14 casos. O Cofen laçou uma plataforma para monitorar 
as mortes na enfermagem em todo o Brasil, com o auxílio dos Conselhos 
Regionais. Além destas vítimas, outros 16 óbitos envolvendo 
trabalhadores da área ainda estão sob análise, aguardando resultado de 
testes.
Para efeito de comparação, os Estados Unidos, país com 
maior número vítimas da pandemia (mais de 71.000), perdeu 46 
profissionais de enfermagem, segundo entidades de classe. A 
Itália, segunda nação mais afetada pela doença com mais de 29.000 
vítimas, teve 35 óbitos, de acordo com informações da Federazione 
Nazionale degli Ordini delle Professioni Infermieristiche, entidade 
equivalente ao Cofen no país europeu. A Espanha, que vem logo atrás com 
mais de 25.000 mortos, teve apenas quatro óbitos entre profissionais da 
área, segundo o Consejo General de Enfermería. Os dois países europeus 
tiveram o início da crise antes que o Brasil e já passaram do pico de 
casos. Os dados da China, apesar da terem a confiabilidade contestada, 
somam 23 até o final de abril. Por fim, o Conselho Internacional de 
Enfermagem estima que “mais de 100 enfermeiros e técnicos perderam a 
vida pela covid-19 enquanto trabalhavam na linha de frente”. Ou seja, o 
Brasil corresponde à maior fatia do total global de óbitos na profissão.
 O órgão, no entanto, reconhece que este balanço é apenas a ponta do 
iceberg.
“Um
 dos fatores [para a alta mortalidade] é que boa parte dos serviços de 
Saúde não afastou profissionais com idade avançada, acima de 60 anos, e 
com comorbidades. Eles continuam atuando na linha de frente da pandemia 
quando deveriam estar em serviços de retaguarda ou afastados”, afirma 
Manoel Neri, presidente do Cofen. Foi este o caso da enfermeira Maria 
Aparecida Duarte, 63, conhecida pelos colegas como Cidinha. Ela 
continuou trabalhando praticamente na porta de um pronto-socorro em 
Carapicuiba, na Região Metropolitana de São Paulo, apesar de ser parte 
do grupo de risco. Contraiu a doença e morreu em 3 de abril.
A técnica de enfermagem Maria Aparecida Duarte, 63.
Um dia depois de sua morte a Justiça Federal determinou que 
profissionais de enfermagem do sistema público que façam parte de grupo 
de risco (por idade ou doença) devem ser realocados para funções que não
 envolvam contato com pacientes de qualquer síndrome gripal. A decisão 
veio tarde para Maria e dezenas de outros profissionais. Uma outra ação 
semelhante pede que esta medida seja ampliada para os trabalhadores da 
rede privada.
Outro problema enfrentado pelos profissionais da 
enfermagem é a falta de equipamentos de proteção individual, os EPIs. 
“Não apenas escassez quantitativa desses produtos, mas também a 
qualidade do material é questionável. Outra questão é o treinamento das 
equipes para usá-los: muitos profissionais se contaminam ou pelo uso 
inadequado do EPI, ou então na hora da desparamentação [retirada da 
máscara, luvas e avental]”, diz Neri.
O técnico de enfermagem Luís
 Cláudio Bernarda, 43, foi testemunha direta das tragédias que a falta 
de condições mínimas de segurança no trabalho podem provocar. “Ele tinha
 me alertado de irregularidades que estavam ocorrendo no hospital onde 
trabalhava, em Itapevi [Região Metropolitana de São Paulo]. Reclamou 
especificamente da falta de EPIs”, conta o colega Jefferson Caproni, 35.
 Dias depois, o teste de Luís deu positivo para a covid-19. Em duas 
semanas ele morreu de insuficiência respiratória. Além de um 
profissional da Saúde, se foi também o amigo e companheiro de Jefferson 
em ações sociais de prevenção nas periferias de São Paulo: “A gente 
fazia ação voluntária juntos, de prevenção da Saúde em Osasco e 
Carapicuíba, nos bairros mais pobres”.
A
 situação dos profissionais de Saúde é crítica em todas as cidades onde o
 sistema sanitário se aproxima (ou já chegou) ao colapso, como Manaus, 
Belém, Fortaleza, Recife, São Paulo e Rio, por exemplo. Com as unidades 
de tratamento intensivo quase lotadas, prefeituras e Estados tentam como
 podem abrir mais vagas para atender a população com coronavírus. Mas 
isso pode ter um efeito negativo: “Muitos leitos de UTI estão sendo 
abertos sem enfermeiros e médicos especializados em UTIs. Então o 
profissional acaba sendo colocado nesse serviço extremamente 
especializado sem o treinamento adequado”, diz Neri. “Todos estes 
fatores que levam à morte de profissionais da Saúde existem tanto nos 
hospitais públicos quanto nos privados”.
Fonte: EL País - Publicado por: Fabricia Oliveira
 

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