Os desafios do centro em meio à polarização entre Jair Bolsonaro e o ex-presidente Lula
Enquanto o país se divide, as forças políticas menos radicais tentam sobreviver no ar rarefeito da polarização ideológica
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INIMIGO IDEAL - Jair Bolsonaro e Lula: após o petista sair da cadeia, os dois trocaram acusações, em clima de campanha para 2022 - (Alan Santos/PR/Amanda Perobelli/Reuters) |
Quanto maior o barulho na política, mais difícil é ouvir
argumentos, debater ideias, fazer prevalecer o bom-senso. E o volume da
gritaria aumentou bastante nos últimos dias, em razão da volta às ruas
do ex-presidente Lula
na sexta-feira, dia 08 de novembro. Logo ao sair da cadeia em Curitiba, onde ficou 580 dias
cumprindo pena por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, o petista
atacou Jair Bolsonaro, a política econômica de Paulo Guedes,
a “entrega” do país e a retirada de direitos sociais. O presidente
rebateu no seu tom habitual: “canalha” e “presidiário” foram alguns dos
termos escolhidos. “Está solto, mas continua com todos os crimes nas
costas”, completou (corretamente). Nas redes sociais, em algumas
manifestações e articulações, petismo e bolsonarismo vêm se
retroalimentando desse ódio e reforçam um momento que tem dominado a
política no Brasil e no mundo: a era dos extremos. Com Lula solto, tal
histeria tende a crescer.
Diferentemente daqueles que o seguem na base da emoção, Lula possui
um objetivo claro em mente: a campanha eleitoral de 2022. Embora ele
esteja impedido de ser candidato porque continua enquadrado pela Lei da
Ficha Limpa, suas falas e movimentação mostram que a prioridade é
colocar o PT como protagonista, assenhoreando-se do eleitorado de
esquerda. Dizendo-se com “tesão de 20 anos”, Lula falou à militância em
Curitiba e em São Bernardo do Campo, reuniu-se com aliados como o
ex-governador da Paraíba Ricardo Coutinho (PSB), anunciou um “discurso à
nação” para este domingo, 17, no Recife, e participará de dois
encontros cruciais para definir o voo petista nas eleições: a reunião da
Executiva Nacional em Salvador na quinta-feira 14, e o congresso
nacional da legenda, no dia 22, em São Paulo. Também pretende voltar a
fazer suas tradicionais caravanas pelo país.
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EXEMPLO - João Doria: esforço para fazer de São Paulo uma vitrine para o país - (Governo do Estado de São Paulo/Divulgação) |
No extremo oposto do ringue, Bolsonaro está convencido de que a saída
de Lula o beneficia diretamente. Antes do julgamento sobre a segunda
instância, ele deu alguns sinais claros ao presidente do STF, Dias
Toffoli, de que não questionaria a decisão em si. Na verdade, com Lula
nas ruas, o capitão ganha a oportunidade de fazer aquilo que faz melhor:
guerrear. Ele agora tem um inimigo temido por boa parte dos brasileiros
e que vocifera de volta.
Enquanto o Brasil perde com essa radicalização, as pesquisas mostram
que os dois protagonistas, de fato, precisam um do outro. Conforme
revelou uma pesquisa VEJA/FSB
realizada em outubro com presidenciáveis, Lula ainda é disparado o nome
mais forte da esquerda e, mesmo se não puder concorrer em razão da Lei
da Ficha Limpa, tem poder para reorganizar as forças dentro desse
espectro político, e nada melhor que um presidente com tendências
ditatoriais para Lula exercer sua verve de “protetor dos pobres” e dos
direitos humanos. Bolsonaro também sai no lucro. A volta de um Lula
radical pode ter o efeito de levar o presidente a reaglutinar em torno
dele os eleitores que vinham se desapontando com seu governo, já que o
fantasma do retorno do petismo ainda seria o mal maior. Em um possível
confronto entre ele e Lula nas eleições de 2022, o capitão, por
enquanto, se sai melhor, vencendo por 46% a 38%, conforme mostrou o
levantamento VEJA/FSB.
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EM CAMPANHA – João Amoêdo: tuíte curto e grosso chamando Lula de corrupto - (Crédito: Bruno Rocha/FotoArena) (Bruno Rocha/Fotoarena) |
Tal estágio de polarização, baseado no ódio e na repulsa ao outro,
torna o ar bem mais rarefeito para as forças políticas de centro, que
querem se apresentar com argumentos equilibrados e racionais. Em um
ambiente conflagrado, fica difícil para um político (ou para o leitor de
VEJA) defender pautas da direita, como a liberdade econômica e as
privatizações, e adotar algumas ideias da esquerda, como os programas
sociais, dentro de um governo que respeite a democracia, as liberdades
individuais e os direitos humanos. O risco é não agradar a ninguém com
essa postura. Quando prega maior liberdade na economia, essa pessoa
passa a ser vista como “bolsominion”, amante da ditadura ou contra o
aborto. Quando apoia programas de distribuição de renda, é encarada como
“petralha”. Tamanha simplificação da política, ancorada em rótulos e
associações mentirosas, só traz dividendos para os extremos,
dificultando o diálogo e a criação de uma alternativa baseada no
bom-senso.
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INDECISÃO - Luciano Huck: movimentação política, mas silêncio sobre candidatura - (Bruno Rocha/Fotoarena/Agência O Globo) |
Um dos maiores obstáculos para que o centro ocupe hoje o espaço entre
Bolsonaro e Lula é justamente a inexistência de um rosto que
personifique essas ideias. Não por falta de pretendentes, mas pela
ausência de uma liderança natural nesse campo. Atualmente há pelo menos
quatro potenciais presidenciáveis (uns mais à direita, outros à
esquerda) nessa fatia do espectro político — João Doria, Luciano Huck, João Amoêdo e Rodrigo Maia.
Mas, por motivos diversos, nenhum deles consegue hoje assumir essa
condição. “Para a população é muito fácil identificar os extremos. Já o
centro não tem uma cara definida”, afirma Mauro Paulino, diretor-geral
do Datafolha. Ainda que não admita publicamente, Doria é o que mais tem
se empenhado em viabilizar sua candidatura e surgir como alternativa.
Sua principal estratégia é fazer de sua gestão em São Paulo uma vitrine,
principalmente em crescimento econômico e segurança pública, sem perder
de vista a agenda social. Na última terça, 12, ele visitou a região do
Vale do Ribeira, uma das mais pobres de São Paulo, e lançou ali projetos
de geração de emprego e empreendedorismo. Na economia, tem se esforçado
para trazer investimentos americanos, chineses e japoneses para o
estado. Além disso, quando a hora chegar, vai investir na comparação com
Huck, mostrando que, não bastasse ter sucesso na iniciativa privada,
possui experiência na vida pública, o que faz dele um candidato mais
confiável. Confiança, aliás, será a palavra-chave na construção da sua
plataforma. Ele quer deixar claro que pode melhorar a vida do brasileiro
e dos investidores, com estabilidade e cumprindo o que promete. Outra
aposta do tucano é nas eleições municipais de 2020, com a conquista de
prefeituras importantes que lhe dariam uma rede de apoio estadual para o
voo nacional. O desafio de ganhar espaço fora de São Paulo, porém, se
reflete no desempenho modesto de seu nome na pesquisa para 2022. Nos
três cenários de primeiro turno abordados no levantamento VEJA/FSB, o
tucano tem no máximo 5% dos votos. Em confronto direto com Bolsonaro no
segundo turno, perderia por 46% a 26%.
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RIVAL - Ciro Gomes: tentativa de construir alternativa de centro-esquerda contra o PT - (Sergio Moraes/Reuters) |
Em paralelo, outro nome que pode consolidar uma liderança ao centro é o outsider
Luciano Huck. No mesmo levantamento, Huck aparece hoje com a melhor
performance ao centro. Numa das simulações para o segundo turno, por
exemplo, ele perde para Bolsonaro no limite da margem de erro de 2
pontos (43% a 39%). Oficialmente, Huck também não assume a condição de
candidato, mas vem participando de inúmeros eventos e de movimentos de
renovação política. Nessas ocasiões, exibe um discurso que mistura a
social-democracia ao liberalismo econômico, entremeado de apelos à
moderação e histórias de pessoas pobres que ele costuma conhecer durante
as gravações. Entre seus interlocutores políticos estão o ex-presidente
FHC, o ex-governador Paulo Hartung (ES), o ex-deputado federal Roberto
Freire, presidente do Cidadania, sigla favorita a receber sua filiação,
e o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga. A questão é que
ninguém sabe se Huck vai mesmo arriscar a candidatura. Em 2018, ele
ciscou, ciscou e pulou fora — justamente em uma eleição em que o
eleitorado queria novidade. Sua cautela, porém, faz todo o sentido.
Jogar-se numa campanha traz um grau de exposição pública exponencial
para o pretendente e sua família. Qualquer deslize do passado ganha
visibilidade imediata, gerando crises e trazendo dores de cabeça. Além
disso, Huck terá de abrir mão de todos os seus contratos publicitários e
do emprego na Globo, que lhe rendem, somados, cerca de 30 milhões de
reais por ano. Mas, até aqui, ele está no jogo. Huck vem demonstrando
excelente trânsito entre os caciques do DEM, como o próprio Maia e o
prefeito de Salvador, ACM Neto, presidente da sigla. Embora o DEM ocupe
três ministérios importantes no governo Bolsonaro (Casa Civil,
Agricultura e Saúde), a cúpula evita se aproximar do Planalto e busca
uma alternativa de centro, dividindo-se, por ora, entre Doria e Huck — a
candidatura de Maia, apesar do seu desejo, é mais difícil. Na análise
de um dirigente do DEM, a polarização chegará esgotada a 2022, a mesma
avaliação feita pelo entorno de Huck. Em entrevista recente a VEJA, o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse considerar forte a
possibilidade de que a população se canse da gritaria dos extremos —
ainda mais em um contexto em que a eleição está distante três anos.
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DESAFETO – Wilson Witzel: eleição apoiada por Bolsonaro e aliado do clã até dizer que também queria a Presidência - (Carlos Magno/Divulgação) |
É difícil avaliar o futuro, mas o cenário que acontece hoje no Brasil
é o mesmo do exterior. O quadro político mundial da atualidade é de
radicalização, como demonstram os grandes e recentes tumultos de rua no
Chile e na Bolívia. Ou a vitória do kirchnerismo na Argentina, com
Alberto Fernández — resultado eleitoral que anima Lula e a esquerda, que
apostam no chamado “efeito Orloff”, materializado na volta da esquerda
ao poder depois de uma experiência fracassada da direita. Ainda não há
no horizonte demonstrações de que esse estado de espírito dê sinais de
arrefecimento. Ao contrário. A frustração com o status quo é o
combustível que faz com que os humores do eleitorado balancem de um
extremo ao outro. “As pessoas que foram demitidas ou que viram seu
salário perder poder de compra ficam mais suscetíveis aos discursos
radicais”, afirma o ex-embaixador Rubens Barbosa. O caso brasileiro tem
ainda uma peculiaridade: o enfraquecimento de toda a classe política, a
partir dos inúmeros escândalos de corrupção levantados pela Lava-Jato. O
PT é exceção porque seus seguidores são como torcedores de um clube de
futebol. Mesmo que o time ganhe com um pênalti inexistente, continuam a
defender suas cores. Para Bryan McCann, professor de história brasileira
da Universidade Georgetown, em Washington, a perda de
representatividade do MDB, que ocupava esse lugar de fiel da balança
desde a redemocratização, deixou um vazio, apesar de todos os inúmeros
defeitos do partido. “O MDB sempre teve esse papel de abafar extremismos
ideológicos”, diz. Verdade. Mas outra fórmula precisa ser criada.
Afinal de contas não dá para construir equilíbrio com práticas
reprováveis e corrupção.
Se a situação já é difícil para Doria e Huck, mais desafiador ainda é
o tabuleiro para candidatos que estão mais próximos dos extremos, como o
ex-ministro Ciro Gomes (PDT), o terceiro colocado no primeiro turno de
2018, e o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC). Ciro
sentiu-se traído pelo ex-presidente e pelo PT na eleição do ano
passado, quando Lula atuou para esvaziar suas alianças eleitorais, e
agora pretende, com Rede, PSB e PV, criar uma alternativa de
centro-esquerda e isolar o petismo. “Fora o PCdoB, aliado histórico do
PT, não sei qual aliança eles (petistas) vão fazer”, diz Carlos
Lupi, presidente do PDT. O sonho é livre, mas mesmo quem não gosta do
Lula sabe que ele hoje é o líder inconteste da esquerda. Do outro lado,
eleito na onda bolsonarista e há pouco afastado do clã presidencial
justamente após deixar claro que almeja o Planalto, Witzel teria
dificuldades de ir em direção ao centro, muito em razão da sua política
de segurança pública, ideologicamente tão à direita quanto a do capitão.
Realmente será muito complicado ocupar um espaço já dominado pelas
figuras de Lula e Bolsonaro, com quem ambos são identificados e de
alguma forma disputam.
Os mais otimistas defensores da volta ao centro acham que a política
do ódio, um jogo de tamanha intensidade e que terá de ser jogado por
tanto tempo, pode levar à busca por vozes mais moderadas. Na visão dessa
corrente, além da saturação do tom bélico, o vazio de ideias dos
radicais em algum momento gerará interesse por uma terceira via. De
fato, o Brasil já viveu — e superou — outros momentos agudos de
radicalização política, caso do segundo governo de Getúlio Vargas, entre
1951 e 1954, e da gestão de João Goulart, entre 1961 e 1964. “Um
resultou no suicídio do presidente, e o outro no golpe militar que levou
à ditadura”, lembra a historiadora Lilia Schwarcz. Nas últimas décadas,
Itamar Franco destacou-se como figura de centro — ele herdou o fiasco
do governo Collor sem provocar sobressaltos e teve a sabedoria de
apostar no Plano Real. Michel Temer seguia um caminho parecido de
reconstrução do país pós-PT até ser abatido pelas denúncias de
corrupção. No período de redemocratização, no entanto, nenhuma figura
encarnou tão bem o dom da moderação quanto Tancredo Neves, que articulou
a sua eleição pelo Congresso pavimentando de forma pacífica o fim do
regime militar. “Não são os homens, mas as ideias que brigam”, ensinava
ele. O Brasil precisa exatamente disso: de menos insultos e de mais
soluções.

(./.) -
Publicado em VEJA de 20 de novembro de 2019, edição nº 2661 - Por João Pedroso de Campos, Mariana Zylberkan e Roberta Paduan
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