Sargento reformado vira réu por sequestro e estupro na Casa da Morte durante a Ditadura Militar
O
sargento reformado Antônio Waneir Pinheiro Lima, também conhecido como
‘Camarão’, se tornou réu hoje por crimes cometidos durante a Ditadura
Militar, especificamente na Casa da Morte — órgão clandestino montado
pelo Exército durante o regime em Petrópolis (RJ). A denúncia foi
recebida pela 1ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª
Região (TRF-2). Waneir é acusado pelo MPF de de cometer sequestro,
cárcere privado e estupro de Inês Etienne Romeu, considerada a única
sobrevivente da Casa da Morte.
Conforme
a decisão do TRF-2, o militar responderá por sequestro qualificado e
estupro — fato inédito envolvendo agentes do regime. A decisão da Turma
foi por maioria, e os votos decisivos foram da desembargadora federal
Simone Schreiber e do juiz federal Gustavo Arruda, convocado para o
pleito. Ambos divergiram do relator Paulo Espírito Santo, que tinha
votado anteriormente contra o recurso do MPF.
Os
magistrados contestaram a fundamentação do juiz da primeira instância, o
qual afirmou que não haveria indícios suficientes para a sustentação da
denúncia. Schreiber afirmou em seu voto que, mesmo com a
constitucionalidade da Lei de Anistia respaldada pelo Supremo Tribunal
Federal (STF), os crimes praticados por ‘Camarão’ foram contra a
humanidade, e, nestes casos, aplica-se a Convenção Americana dos
Direitos Humanos.
Além de única sobrevivente da Casa da Morte,
Inês foi a última presa política a ser libertada na ditadura brasileira.
Ela integrou grupos de luta armada contra o regime, militando em
organizações como Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares
(VAR-Palmares) e a Organização Revolucionária Marxista Política Operária
(Polop).
Detida
pelos órgãos de repressão em São Paulo, acusada de ter participado do
sequestro do embaixador suíço Giovanni Bucher, Inês Romeu foi levada ao Rio
nos dias seguintes. Ela permaneceu por 96 dias presa na Casa da Morte,
local em que foi torturada e estuprada pelos militares.
A denúncia
Após
a decisão da 1ª Vara Federal Criminal de Petrópolis de rejeitar a
denúncia pela primeira vez, o MPF recorreu ao TRF-2 com o pedido para
tornar ‘Camarão’ reú. O recurso, segundo o próprio MPF, foi “retido”
pela Justiça Federal, que postergou seu envio para análise dos
desembargadores, “mesmo após pedidos reiterados”. A Justiça de
Petrópolis argumentava que documentos incluídos nos autos deveriam ser
traduzidos para o português.
Superado o entrave, o julgamento fora
marcado para o dia 3 de julho, mas a desembargadora Simone Schreiber
pediu vistas do processo.
O MPF sempre deixou claro neste caso que
discorda da interpretação feita pela primeira instância em relação à
Lei de Anistia. “O MPF contestou esse alcance da lei de 1979, pois os
crimes cometidos foram de lesa-humanidade, segundo o Estatuto de Roma
(ratificado pelo Brasil), o que os tornou imprescritíveis e não sujeitos
à anistia. Para o MPF, a palavra da vítima devia ser considerada, ainda
mais em crime sexual como o estupro.”, diz nota do órgão.
A
Câmara Criminal do MPF (2CCR/MPF) também já se posicionou neste caso
afirmando que “nenhuma mulher, ainda que presa ou condenada, merece ser
estuprada, torturada ou morta. E tampouco pode o sistema de justiça
negar desta maneira a proteção da lei contra ato qualificado no direito
internacional como delito de lesa-humanidade”.
Caso emblemático
Morta
em 2015, Ines Etienne Romeu foi a única sobrevivente entre os que foram
presos pelo regime militar na Casa da Morte — chamado oficialmente de
Centro de Informações do Exército (CIE), mas que funcionava como um
órgão institucional de tortura. A informação foi compilada pela Comissão
Nacional da Verdade, criada pelo governo brasileiro para destrinchar os
crimes cometidos pelos militares durante a repressão.
Há a suspeita de que pelo menos 22 pessoas tenham sido assassinadas no local pelos militares.
A
Casa da Morte consolidou-se, durante os anos da Ditadura Militar, como
um dos principais centros clandestinos de tortura e extermínio do
regime. Cinco anos após o fim do regime, Romeu recorreu ao jurista Fábio
Konder Comparato para detalhar tudo que viu e sofreu durante os mais de
três meses em que permaneceu enclausurada. Diz Inês, segundo os
documentos da Comissão Nacional da Verdade:
“Professor, eu não
quero um tostão de indenização. Esse dinheiro de indenização vem do povo
e a grande vítima é o povo. O que eu quero é que a Justiça do meu País
reconheça oficialmente que eu fui sequestrada, mantida em cárcere
privado, estuprada 3 vezes por agentes públicos federais pagos com o
dinheiro do povo brasileiro”.
De
acordo com a CNV, a Casa da Morte “foi criada pelo Centro de
Informações do Exército (CIE), no início do ano de 1971, para atender a
uma nova estratégia de intensificação do combate às organizações armadas
de esquerda pela ditadura.” O relatório cita bases secretas e equipes
especializadas do Exército treinadas para uma “política de extermínio e
desaparecimento forçado.”
A
de Petrópolis, como suscitada pelo jornalista e historiador Elio
Gaspari, autor de cinco livros sobre a Ditadura brasileira, era
apelidada de “Codão” pelos militares. O apelido é referência aos
Destacamentos de Operações de Informação (DOIs), e as Casas eram
consideradas “dispositivos complementares” destes aparelhos. A Casa de
Petrópolis constava no radar do alto escalão militar do governo,
incluindo o então ministro do Exército e irmão do ditador Ernesto
Geisel, Orlando Geisel.
“[Orlando Geisel] era sempre informado.
Estava sabendo. Relatórios eram feitos e entregues ao chefe da seção com
os EEI, Elementos Essenciais de Informações. Então, através desses EEI,
eles sabiam tudo.”, disse o militar e torturador do regime, Paulo
Malhães, em entrevista ao jornal O Globo em 2014.
Fonte: Uol
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