“Eu me sentia uma aberração”, diz mulher de 41 anos que nasceu sem vagina
Síndrome de Rokitansky, caracterizada por uma má formação do órgão sexual feminino |
O início da vida sexual da dona de casa Márcia Marques, 41 anos, não
foi nada fácil. Transar com o namorado da adolescência – com quem é
casada até hoje – era sinônimo de sofrimento. “Sentia muita dor e
sangrava. Como tive uma criação conservadora, não conversava sobre isso
com ninguém. Simplesmente fui levando”, conta. Com o passar dos anos,
ela começou a ficar mais confortável na cama com o parceiro. Mas o
diagnóstico de seu problema veio bem mais tarde: Márcia é portadora da
Síndrome de Rokitansky, caracterizada por uma má formação do órgão
sexual feminino, que pode ter a vagina encurtada ou até ausente,
e inexistência de útero.
Como Márcia, as portadoras da doença demoram para se dar conta de que
há algo errado. A parte externa da vagina é completamente normal e
as mulheres sentem prazer por estimulação clitoriana. Os problemas
começam quando há penetração.
Em geral, o tratamento da doença é realizado com a introdução de
moldes de plástico que esticam o canal e, em casos mais severos, com
cirurgia corretiva. Mas Márcia não precisou de nenhum dos dois. Os anos
de prática sexual dolorosa ao menos serviram para fazer uma abertura na
vagina. “A dilatação natural pode ocorrer e é indicada principalmente
para as mulheres que têm parceiro fixo, que tenha compreensão do
problema”, afirma a médica Aline Pic, do Observatório de Doenças Raras
da Universidade de Brasília.
“Médico duvidou que eu fosse mulher”
Mesmo não tendo que enfrentar o tratamento, Márcia viveu situações
constrangedoras, causadas principalmente pela falta de informação dos
médicos. “O primeiro ginecologista disse que eu teria que fazer um teste
de cromossomo para confirmar se eu era mesmo uma mulher”, explica. “Na
época, eu tinha 24 anos, e fiquei arrasada! Como contar para o meu
marido que ele poderia ter se casado com um homem?”
Para evitar que outras portadoras da síndrome vivessem esse drama,
Márcia criou um blog com dados sobre a doença, que atinge 1 em cada 5
mil mulheres. Em suas primeiras pesquisas sobre o tema, há 17 anos,
encontrou conforto ao obter informações online, no perfil de uma
portuguesa em uma rede social, que também tinha a doença.
“Quando recebi o diagnóstico, me sentia uma aberração. Sozinha,
única”, conta. Além da questão sexual, o ponto de não poder gerar um
filho sempre mexeu muito com Márcia, que sempre sonhou ser mãe. Mas a
doença não foi impeditivo e ela realizou seu sonho através da adoção.
“Meu namorado terminou pelo celular”
“Não há riscos de vida para quem tem a síndrome”, explica a
ginecologista Cláudia Takano, uma das poucas especialistas no assunto.
“Apesar disso, ela afeta completamente a vida dessas mulheres que não
podem ter filhos e encaram problemas para ter uma vida sexual saudável.
Elas relatam um sentimento de ‘incompletude’ ou de ‘ser menos mulher”.
A atendente de telemarketing Nayara*, 22, começou a notar que havia
algo diferente em sua vagina aos 18. Ao transar pela primeira vez com o
namorado, sentiu dores e o pênis não entrava. Quando teve acesso ao
diagnóstico, em 2013, ela ainda precisou lidar com a incompreensão do
parceiro, que terminou a relação.
Bem mais grave que o caso da dona de casa Márcia, Nayara teria que
passar por uma cirurgia para ter uma vida sexual regular. “Eu
precisaria usar dilatadores de diversos tamanhos por aproximadamente
seis meses para moldar o meu canal vaginal. Ao saber disso, meu namorado
foi se afastando e rompeu comigo por mensagem de celular.”
Nayara abriu mão da cirurgia e optou por fazer a dilatação, mas não
conseguiu levar o tratamento adiante. “Doía e eu me sentia um lixo
fazendo isso. Minha cabeça ficava me dizendo que ninguém nunca ia me
querer”.
Ela adiou por quase dois anos a busca por uma solução. Durante todo
esse caminho, foi na internet que ela encontrou apoio, em um grupo do
Facebook que reunia outras mulheres com a síndrome, trocando
experiências e informações. “Foi muito importante, a gente entende o que
a outra sente”, explica ela. Hoje o grupo tem 280 mulheres com a
síndrome e Nayara é uma das administradoras da comunidade.
“Depois do tratamento, passei a sentir prazer”
A causa da Síndrome de Rokitansky ainda não foi identificada.
“Provavelmente é genética, mas não se sabe quais genes exatamente estão
envolvidos”, afirma Cláudia Takano. Ela explica também que, além do
útero e do canal vaginal, a doença pode estar associada a tipos de
malformações, principalmente do sistema urinário. “Em até 30 % dos
casos, a mulher pode nascer com apenas um dos rins”.
As mulheres afetadas pela doença não podem ter filhos, mas a questão
da sexualidade pode ser resolvida com tratamentos que criam o canal
vaginal. A dilatação traz menos riscos e envolve o uso de próteses,
metálicas ou de silicone, para ir moldando gradativamente os músculos da
vagina. A técnica de informática Tamires Coutinho, 29, optou por esse
tratamento.
“Eu preciso ficar no mínimo 10 minutos por dia com o molde. Dói um
pouco, incomoda, mas em cinco meses meu canal foi de meio centímetro
para quase cinco”, conta. Segundo as especialistas da Rede Raras da UnB,
uma vez aberto, o canal não volta a fechar.
A segunda opção de tratamento para que a mulher tenha a vida sexual
com penetração é a cirurgia, que foi o que Nayara acabou optando por
fazer em 2015. O procedimento dura cerca de uma hora, durante a qual os
médicos constroem com enxertos um canal vaginal. Depois da operação, a
mulher precisa usar por até um ano um molde de silicone que garante que o
canal não se feche.
“Depois de dois meses e meio de operada, eu tentei transar pela
primeira vez com meu novo namorado e foi perfeito. Eu senti prazer e até
minha lubrificação foi normal”, garante. O caso de Nayara não é
exceção. Em qualquer uma das opções de tratamento, as portadoras da
síndrome de Rokitansky podem ter uma vida sexual completamente normal.
Bol
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