ACREDITE QUEM QUISER: Levantamento afirma que infidelidade pode salvar casamentos – Por Ana Canosa

Recebi um release com o seguinte título: “A infidelidade pode salvar relacionamentos? Pesquisa revela que sim!” Me deu calafrios.
Primeiro que a infidelidade é uma quebra de confiança que, se descoberta, vai cobrar muito caro depois. São meses, às vezes anos, para que a parte traída volte a confiar novamente, se é que isso acontecerá.
A questão de longe não é só sexual: o que se quebra é a crença de que a parceria está cuidando do amor. Que me perdoem os infiéis — e sim, eu os entendo —, é uma deslealdade sem tamanho, uma decisão de casal que é feita por um só.
Essa história de “ser fiel” aos seus próprios sentimentos e desejos, como uma justificativa para a traição, é infantil e egocêntrica. Quando você está em um relacionamento monogâmico e seus sentimentos e desejos passam a ser contrários à manutenção do contrato, o melhor que se tem a fazer é mudar o formato da relação, questionar, revelar a insatisfação.
Eu entendo que seja difícil, que somos covardes, nos iludimos, nos confundimos, mas daí concordar com a frase clichê de uma psicanálise de fundo de quintal, me recuso. Reconhecimento de desejos e necessidades faz parte de um processo que não se refere só ao gozo, mas envolve dor, raiva, contradições e solidão.
A autoaceitação é uma jornada longa e difícil. Então, de qual “fidelidade a nós mesmos” estamos falando, se precisamos mentir e dissimular, a fim de esconder a vontade de variação sexual, aventura, uma fugidinha da mesmice da vida adulta? Se você faz isso, já está sendo desleal consigo.
Outra bizarrice é sobre o título que sugere traição como a “salvação do relacionamento”. Tenha dó. O que reconecta um casal é a vontade de ambos em mergulhar nos desafios da vida conjunta, da disposição de aceitar a alteridade do cônjuge, de encontrar meios-termos, de investir no amor e de crer, legitimamente, que essa união pode gerar satisfação — seja ela monogâmica ou não.
Sim, posso concordar, como revela o levantamento, que uma vivência extraconjugal pode aumentar a autoestima (36%), gerar algum tipo de crescimento e aprendizado pessoal (34%), realizar fantasias (33%) e ser uma espécie de “respiro dentro da relação oficial’ (18%).
Mas percebam que essas respostas dizem respeito somente ao infiel. São “benefícios” baseados em escolhas de ordem pessoal e não do casal. Reforço que os pesquisados são usuários do Gleeden, plataforma de relação extraconjugal e relações não-monogâmicas. Então é um resultado completamente enviesado.
Seria interessante ampliar a pesquisa para os ex-infiéis, a saber o que aconteceu quando a infidelidade foi descoberta. Quem sabe perguntar aos traídos, aos terapeutas que recebem os casais nessas situações e daí chegar a uma discussão bem mais fidedigna e ampla, para validar — ou não — a “conclusão” a que chegam.
Pior é quando o release diz que: “Especialistas concordam que a infidelidade pode ser melhor para todos” — usando recortes de falas de um “jornalista especialista em relacionamento” — vejam vocês. Nada contra jornalistas, mas convenhamos — cada um que se ocupe de sua profissão.
A discussão sobre a diminuição do desejo sexual em relações longas, a variação sexual como um motor interessante, a diferença entre desejo sexual e amor, a posse e o controle, a necessidade de exclusividade e o que está em jogo nos formatos monogâmicos — tudo isso é legítimo e importante.
Exatamente por compreender os desafios e os pressupostos que regem a monogamia — e o sofrimento que uma traição gera — é que se faz a proposição de formatos mais abertos. Mas misturar relações não-mono com relações extraconjugais é ferir princípios fundamentais das discussões sobre não-monogamia.
Em 30 anos de profissão, sim, eu vi casais que se reconectaram a partir de uma crise conjugal que se legitimou com a descoberta de uma traição. À base de muita raiva, dor, generosidade, vulnerabilidade e amor. Alguns, inclusive, fazem novos contratos, e/ou passam a inovar no sexo.
Segundo o Gleeden, 18% dos entrevistados disseram que “reestruturam o relacionamento”. Mas concordar que uma infidelidade pode ser, em alguns casos, uma virada de chave em um casamento — e reforço, isso só acontece a depender da maturidade dos envolvidos — é muito diferente de indicar a traição como um remédio para “salvar casamentos” — uma proposta irresponsável, leviana e imoral. Favor não misturar os canais.
Fonte: Ana Canosa - Polêmica Paraíba - Publicado por: Bruno Marinho**
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