segunda-feira, 21 de março de 2022

Brasileiro arrochado!

‘Os russos que venham me tirar daqui’, diz empresário paulistano que mora em Kiev, capital da Ucrânia,  desde 2008 

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“Pau no cu dos russos!”, vocifera, indignado, o empresário paulistano Arício Filho, 41, em Lviv (oeste da Ucrânia). No início de março, explicava que estava prestes a cumprir um serviço que se voluntariou: ir até Zamość, na Polônia, dirigindo uma van Volkswagen T3, em um comboio de três carros. A empreitada tinha como meta transportar as crianças ucranianas que acabavam de se despedir dos pais, que entrariam em combate.

Em Lviv, Arício também participou dos trabalhos de soldagem de barreiras metálicas para proteger os acessos à cidade. “Mas vou voltar para Kiev, com um misto de raiva e de cuidado com as minhas coisas, já que os apartamentos estão sendo saqueados”, continua Arício, que mora na capital do país desde 2008.

O brasileiro é dono do hostel Kiev Central Station, situado na rua Hoholivska — o estabelecimento tem capacidade para 40 hóspedes, mas está em reforma para comportar até 60 clientes. Em novembro passado, Arício também abriu o bar São Miguel, ao lado do Mosteiro de São Miguel das Cúpulas Douradas.

“Não é uma questão de oportunidade de pegar em armas: é necessidade. Desde que saí do Brasil, construí tudo do zero, criei raízes aqui. Tenho um sentimento de perda da casa, dos negócios, dos amigos. Por que vou abrir mão de tudo? Os russos que venham me tirar daqui”, explicou.

O empresário contou ter doado cerca de 4 mil dólares em comida para abrigos e soldados. Enquanto isso, o bar está controlado pelos vizinhos, pois pode funcionar com um bunker.

Arício espera que os jogadores brasileiros de futebol que estavam na Ucrânia não esqueçam o país e se empenhem em campanhas de doação, além de doações próprias. “Eles podem ajudar muito”, observa.

Quando não há solução

“Pegar em armas é sempre a última ação, quando não há solução. A razão de defender esse país não se compara à razão de quem o ataca. Não é mole deixar tudo pra trás”, diz o brasileiro.

Na Polônia, Arício ficou impressionado com a quantidade de refugiados ucranianos, que não pagam pelo transporte e recebem doações de comida da população local. “Faz uma semana que só ouço gente perguntando onde é o abrigo e onde pode ajudar ou receber ajuda.”

Parte do comboio de Arício seguiu até a Cracóvia (Polônia). A mãe de uma das crianças transportadas administra uma ONG e iria organizar as doações para voltarem à Ucrânia com as colaborações reunidas.

“Minha bagagem e meu gato também foram para a Cracóvia, devo passar poucos dias na cidade para retornar a Kiev. Temos que conseguir um carro maior — e com documento. Viemos pra cá em um veículo sem documentação, e eu, com a carteira vencida”, diz o brasileiro, que conta ter convencido os soldados e guardas com que cruzaram no caminho a permitirem a continuidade da viagem com as crianças.

O empresário confessa que, nos momentos em que se permite parar por um instante, chega a ficar confuso tentando entender como a vida se transformou radicalmente na última semana. “É tudo muito chocante. Abrir fogo contra prédios civis, usar bomba termobárica, destruir a estrutura de um país que vive em paz… Minha mulher [uma polonesa que conheceu na Ucrânia em 2008] não para de chorar no telefone, é muito difícil conseguir se concentrar, mas tem muita gente precisando de apoio”.

Por outro lado, Arício sublinha como a ajuda humanitária pode se organizar de maneira rápida, com todos se entendendo e dividindo o que há disponível para a sobrevivência. Para ele, não há só a frieza e maldade no cenário.

100 tiros por 175 euros

Antes de se sentir em casa na Ucrânia, Arício trabalhava como fotógrafo no Brasil, recebendo prêmios pelos cliques produzidos durante os principais ralis disputados no país. Tinha o hábito de viajar de bicicleta, em roteiros cada vez mais longos.

Em 2008, se lançou em uma pedalada sem destino definido, a partir de Ankara (Turquia). “Resolvi que [após essa viagem] tentaria empreender em um local diferente.” Inicialmente, a ideia era ir para Escandinávia, cruzando Bulgária, Sérvia, Romênia, Ucrânia, Bielorússia, países do Báltico e Escandinávia, para sair de lá no pico do inverno e seguir para a Espanha, rumo ao continente africano.

“Me diverti nas estradas sinuosas da Sérvia e da Romênia, mas em Kiev, tive problemas burocráticos para extensão do meu visto, já que queria muito conhecer Chernobyl [usina nuclear, palco do maior desastre nuclear da história, próxima à cidade de Pripiat, em 1986] e não era um passeio simples de se fazer.”

Foi quando acabou baixando âncora no país. E o louvor a Chernobyl transformou a visita ao local em um dos principais diferenciais das experiências oferecidas por seu hostel, o Kiev Central Station. Antes de começar a guerra, os tours para a usina eram quase diários, com preços de 89 e 132 euros, dependendo do tamanho do grupo — que variava de 8 a 30 pessoas.

Outro destaque do cardápio de atividades, o “Shooting Range” disponibiliza, por 175 euros, 100 tiros divididos entre as pistolas Glock e Makarov; o fuzil AK74; a carabina M4 e a Pump Shotgun, sucesso no Fortnite.

É possível também pilotar tanques soviéticos e, uma vez por mês, atropelar um carro velho à escolha do hóspede com o tanque T34, brincadeira que sai por 1.800 euros.

Futuro incerto

Arício acha difícil, agora, pensar onde e como será seu futuro, mas ele não se vê em outro lugar: quer retomar a vida na Ucrânia mesmo. “Se eu perder tudo, coisa de R$ 1 milhão, tenho uns R$ 10 mil para sobreviver”, calcula. “Talvez seja difícil recomeçar como empresário, mas poderia buscar outras frentes. Entendo, até um certo nível, de programação, mas ficar sentado não é muito para mim.”

Ele conta que tem conexões suficientes para se virar. Assim, não teme o futuro incerto. “Não estou emigrando ou me posicionando como refugiado.” Arício pondera um pouco e finaliza: “Não está perdido ainda. Uma hora o bar abre de novo.”

Fonte: UOL - Publicado por: Larissa Freitas

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