Curva do novo coronavírus sugere imunidade maior e segunda onda menos provável
A tendência é a mesma na Europa e nos estados brasileiros e norte-americanos mais contaminados
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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) -
Em praticamente todas as regiões do mundo mais duramente afetadas pelo
coronavírus e que retomaram as atividades há queda sustentada no número
de mortes e infecções.
A tendência é a mesma na Europa e nos estados
brasileiros e norte-americanos mais contaminados. Nos que vinham sendo
poupados, os casos estão subindo, elevando a média geral tanto no Brasil
quanto nos Estados Unidos.
Na Europa, onde a epidemia chegou
antes, ela está em declínio, apesar de muitos países terem voltado a
funcionar quase normalmente.
Nos EUA, cidades mais afetadas e que
tiveram ondas de protestos de rua contra o racismo após a morte de
George Floyd, em 25 de maio, também não tiveram novos surtos.
Já estados como Califórnia e Texas, alheios à irrupção inicial, são os novos focos.
No
Brasil, cidades como São Paulo, Manaus, Rio e Recife, já fortemente
afetadas, estão reabrindo até agora sem repiques. Mas a epidemia se
alastra no interior, assim como nas regiões Sul e Centro Oeste, até
então poupadas.
Epidemiologistas e novos estudos sugerem que a
chamada imunidade coletiva necessária para conter a expansão da Covid-19
pode ter sido superestimada ou estar sendo calculada de forma
imprecisa.
Isso explicaria a não ocorrência de uma segunda onda de
infecções até agora. Mesmo que, nos locais inicialmente mais afetados e
reabertos, menos de 20% da população tenha desenvolvido anticorpos para
o novo coronavírus.
Há alguns meses, estimava-se que até 70% das
pessoas deveriam contrair o vírus antes que ele não encontrasse
hospedeiros para se propagar.
O motivo pode ter relação com ao menos dois fatores:
1)
Muito mais pessoas pegaram o vírus e desenvolveram anticorpos que
diminuem com o tempo, resultando depois em testes negativos; ou elas se
curaram mesmo sem a criação de anticorpos;
2) O principal vetor de
transmissão do vírus seriam os adultos jovens, que circulam mais pelas
cidades, sobretudo em transportes coletivos.
Tome-se o caso de
Manaus, considerada por epidemiologistas como um campo de provas para a
livre evolução da epidemia devido ao baixíssimo isolamento social que
resultou no colapso dos sistemas de saúde e funerário.
Segundo a
Epicovid19, maior mapeamento do coronavírus do país conduzindo pela
Universidade Federal de Pelotas, o máximo de prevalência de anticorpos
na população da capital do Amazonas foi encontrado entre os dias 4 e 7
de junho: 14,6%.
Na rodada seguinte de testes, entre 21 e 24 de junho, a pesquisa encontrou só 8% dos manauaras com anticorpos.
Junho
foi o mês em que os sepultamentos e cremações em Manaus se
reaproximaram das taxas pré epidemia; e julho vem sendo marcado pela
desmobilização de parte do aparato para a Covid-19.
Na cidade de
São Paulo, com mais isolamento e menos mortes que Manaus,
proporcionalmente, o máximo de prevalência de anticorpos encontrada na
população foi de 3,3%, entre 14 e 21 de maio.
Mesmo
assim, e apesar da reabertura gradual, a capital registra queda
sustentada de novos casos, a ponto de oferecer leitos a cidades onde a
epidemia agora avança.
Segundo imunologistas, é provável que o
Sars-CoV-2 possa estar sendo combatido em duas frentes: pelos linfócitos
(células) B, que produzem anticorpos, na resposta imune denominada
humoral; e pelos linfócitos T, que não fazem isso, mas que também
combatem o vírus eliminando células infectadas –nesse caso, por resposta
citotóxica.
Como a ação dos linfócitos T não produz anticorpos,
muitas pessoas teriam defesa contra o vírus sem que a maioria dos testes
hoje aplicados (não celulares) detecte isso.
Outro ponto é que os
anticorpos produzidos pela ação dos linfócitos B podem diminuir com o
tempo, mas sem que se perca a imunidade.
Isso explicaria a redução
da prevalência, com o tempo, de anticorpos detectados na população nos
testes em Manaus e em outras cidades monitoradas pela Epicovid19 – e sem
que haja novos surtos.
Para Julio Croda, infectologista da
Fiocruz, a imunização contra o coronavírus pode estar se dando de forma
"cruzada": pela suscetibilidade individual (com linfócitos B e T) e por
outros fatores genéticos combinados às políticas de distanciamento
social e o uso de máscaras.
"Sem o distanciamento e a máscara, o
percentual de infectados e mortos na população teria de ser muito maior
para chegarmos à imunidade comunitária", afirma.
Por discordar do
presidente Jair Bolsonaro na questão do isolamento social, Croda deixou a
direção do Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis do
Ministério da Saúde no final de março.
Para Natalia Pasternak,
doutora em microbiologia pela USP e presidente do Instituto Questão de
Ciência, o ataque ao vírus pelos dois tipos de linfócitos (B e T) e o
fato de os anticorpos poderem cair abaixo do detectável, sem prejudicar a
imunização, tornam difícil aferir o tamanho da população ainda
suscetível ao vírus.
"Ela
talvez já não seja tão grande, mas não sabemos. O que não podemos é
tratar isso de forma que dê a impressão de um liberou geral [onde o
vírus já fez muito estrago]."
Pasternak afirma que a imunidade
total só pode ser obtida com um número muito elevado de mortes ou com
uma vacina –as principais em elaboração hoje tentam emular os dois
caminhos (humoral e citotóxico) para a destruição do novo coronavírus.
Para
Daniel Soranz, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da
Fiocruz, o número elevado de mortes em algumas cidades do Brasil
ajudaria a explicar a inexistência de uma segunda onda de infecções,
apesar da reabertura desses locais.
"Isso ocorre às custas de
muitas mortes. Pois se fossemos desenhar um cenário ruim, não poderíamos
criar nada pior do que o que vimos em algumas cidades do Brasil,
sobretudo nas comunidades mais pobres, como as daqui do Rio", afirma
Soranz.
Agora, sem nenhuma fila e com cerca de mil pacientes em
leitos de UTI no Sistema Único de Saúde, em menos de 20 dias a capital
fluminense poderá zerar as internações –a um ritmo de 50 saídas ao dia,
por alta hospitalar ou morte.
Esper Kallás, infectologista e
professor da USP, suspeita que tenham sido justamente os moradores das
comunidades menos ricas, sobretudo os adultos jovens, os maiores
responsáveis pela disseminação do coronavírus e da obtenção de uma
imunidade comunitária maior nas cidades mais afetadas até agora.
Mesmo
que não detectada totalmente nas pesquisas de prevalência imunológica,
como as da Universidade Federal de Pelotas, essa imunidade maior
impediria agora uma segunda onda de infecções.
"Os adultos jovens,
que se locomovem muito mais em transporte público, e que não apresentam
sintomas importantes, parecem ter sido os grandes disseminadores do
vírus e os responsáveis, neste segundo momento, pela contenção de sua
propagação."
Kallás
afirma que, no caso da gripe comum, a imunidade comunitária é atingida
com 33% a 44% da população infectada. Em se tratando da Covid-19, a taxa
necessária para que isso ainda é incerta, mas ele suspeita que seja
menor.
Sergio Cimerman, coordenador científico da Sociedade
Brasileira de Infectologia (SBI), alerta, porém, para os cuidados que
devem ser tomados onde as atividades vem sendo retomadas.
"Estamos
longe de qualquer sinal de uma segunda onda, apesar da flexibilização
em muitos locais. O que é certo é que o risco aumenta quando existem
aglomerações."
Para a professora e infectologista Raquel Stucchi,
da Unicamp, a dinâmica da pandemia do novo coronavírus tem sido um
aprendizado –e ele ainda não teria terminado.
"O Brasil foi o
único país que iniciou a flexibilização na subida da curva. Quem fez
isso próximo do platô, parece ainda estar em situação adequada. Já o
interior, que tentou flexibilizar antes, acabou se dando muito mal",
afirma.
Agora, com a epidemia avançando mais no Sul, no Centro
Oeste e no interior, esse conjunto de decisões estaduais e municipais,
combinado ao enorme grau de desorganização do governo federal, ainda
provoca cerca de 40 mil infecções e mais de 1.000 mortes no Brasil todos
os dias.
Campanha incentiva o uso de oxímetros e tratamento precoce
Diante
da interiorização da epidemia e da prevalência de infecções pela
Covid-19 nas áreas mais pobres, o Instituto Estáter e a Sociedade
Brasileira de Infectologia (SBI) lançam nesta segunda (13) o Projeto
Alert(ar), uma campanha nacional para estimular o uso de oxímetros no
combate precoce ao coronavírus.
A iniciativa tem a parceria de entidades médicas, empresas e lideranças comunitárias, além de prefeituras.
A
campanha surge da constatação de que as chances de recuperação são
muito maiores quando os doentes são tratados antes de terem os pulmões
severamente comprometidos pela Covid-19 –daí a necessidade de medir
frequentemente, com oxímetros, a taxa de oxigênio no sangue.
Apesar
de não sentirem dificuldade para respirar, muitos infectados apresentam
queda perigosa do nível de oxigenação. No jargão médico, a chamada
hipóxia silenciosa pode tornar irreversível, e em pouco tempo, o quadro
pulmonar.
O presidente do Instituto Estáter, Percio de Souza,
considera fundamental ampliar a conscientização e o uso de oxímetros
para tentar diminuir a taxa de óbitos no país.
"A interiorização
da epidemia torna mais crítica a necessidade do acompanhamento da
oxigenação e o tratamento inicial, especialmente para os mais
vulneráveis e idosos, que não têm meios de correr sozinhos aos locais
onde há leitos de UTI", diz Souza.
No Brasil, só 6% das cidades
têm leitos de UTI; e embora as 27 capitais agrupem menos de um quarto da
população, elas detêm quase a metade das vagas.
Já os leitos no
interior estão concentrados em cerca de 300 municípios, deixando quase
100 milhões de brasileiros longe das UTIs. Com as distâncias e sem
atendimento inicial, há cada vez mais mortes nas pequenas cidades.
O
Projeto Alert(ar) prevê conscientizar a população sobre o uso frequente
do oxímetro em casos suspeitos e pretende disponibilizar milhares de
aparelhos no país a pessoas treinadas que possam monitor conjuntos
populacionais.
Basicamente, a infecção pelo coronavírus se dá na
sua ligação às enzimas conversoras da angiotensina 2 (ECA2). Abundantes
no bulbo carotídeo, esse órgão responsável por alertar o cérebro para
que o doente respire com força quando o ar falta entra em pane –e o
indivíduo não percebe a queda de oxigênio em seu organismo.
A
mucosa nasal também tem muitos receptores das enzimas ECA2 –e a mesma
pane explicaria a perda de olfato relatada por muitos infectados.
Embora
haja queda de oxigênio, na infecção pelo coronavírus os doentes também
não retêm gás carbônico, e não sentem muita falta de ar.
Os dados
de algumas cidades monitoradas pelo projeto revelam que cerca de 40% dos
doentes que morrem o fazem em casa ou nas primeiras 24 horas de
internação –e que outros 40% chegam direto às UTIs, sem que tenham
passado por nenhum outro tipo de atendimento.
Já entre os
pacientes atendidos em enfermarias (com oxigênio, corticoides e
anticoagulantes), apenas 20% acabam precisando de UTI. Na maioria das
vezes, não necessitam sequer de ventilação mecânica; só de oxigênio de
alto fluxo –e ficam internados por um tempo bem menor.
Segundo
Clóvis Arns da Cunha, presidente da SBI, a falta de oxigenação no sangue
começa por volta do sétimo dia. Daí a necessidade de monitorar casos
suspeitos com os oxímetros e encaminhá-los a unidades de saúde sempre
que a taxa de oxigenação cair abaixo de 95%.
"A iniciativa vai nessa direção, de alerta e de conscientização", afirma.
O
Instituto Estáter e a SBI terão o apoio técnico da Sociedade Brasileira
de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), que representa médicos
atuando em 47,7 mil equipes de atenção básica, e da Associação de
Medicina Intensiva Brasileira (Amib).
A Central Única das Favelas
(Cufa), com representação em vários estados, dará capilaridade à
divulgação, e empresas como Boticário, Embraer, Klabin, Gol, Grupo Ultra
e o banco Voiter entrarão com apoio institucional.
Segundo Denize
Ornelas, diretora da SBMFC, uma das maiores falhas dos gestores da
saúde pública no Brasil nessa epidemia foi não ter disponibilizado
oxímetros para as esquipes de atenção básica.
Com a exceção das cidades maiores, poucas equipes têm o aparelho –que pode ser comprado pela internet ao preço médio de R$ 200.
Baseando-se
nas curvas de infecções no Brasil e em outros países, Percio de Souza,
do Estáter, também não enxerga até agora indícios de uma segunda onda
que possa interromper novamente a atividade econômica.
"Mas isso não justifica abandonarmos as políticas públicas para
conscientizar a população e buscar meios técnicos para combater essa
fase da epidemia. É preciso evitar que medidas tomadas sem embasamento
acabem prejudicando ainda mais a sociedade pela via econômica."
Notícias ao Minuto
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