Dobra o número de pessoas com faculdade sem emprego ou em trabalho precário
“Até
agora, meu curso de ensino superior não serviu para nada.” A frase é de
Dager Lameck, 28, que concluiu engenharia de produção na UFF
(Universidade Federal Fluminense), em 2018, e está desempregado.
A
história do engenheiro recém-formado simboliza a situação de milhões de
profissionais brasileiros qualificados que foram empurrados para
situações precárias no mercado de trabalho nos últimos anos de crise
econômica.
“A gente pensa que se capacitou, realizou um sonho e
que o próximo passo será conseguir um bom emprego. Mas esse passo, para
mim, ainda não aconteceu”, afirma ele.
Segundo dados levantados
pelo IBGE a pedido da Folha, a fatia da população com ensino superior
completo que está desempregada, desalentada ou trabalhando menos horas
do que gostaria saltou de 930 mil para quase 2,5 milhões entre o segundo
trimestre de 2014 e o mesmo período deste ano.
Parte desse
aumento se deveu à saudável expansão da parcela da população que
conseguiu um diploma universitário no Brasil ao longo desse período de
cinco anos.
Mas a fatia dos profissionais com ensino superior
desocupados, desalentados ou subocupados por insuficiência de trabalho
cresceu em ritmo muito mais rápido do que o universo de escolaridade que
eles representam. Com isso, seu peso no grupo dos mais escolarizados
dobrou, passando de 5% para 10% do total.
Os dados do instituto incluem tanto os trabalhadores com carteira assinada quanto aqueles que atuam informalmente.
Levantamento
feito pela Folha, com foco apenas no mercado formal, descortina uma
outra tendência de inserção precária dos profissionais qualificados no
mundo do trabalho. Trata-se da busca de refúgio de muitos desses
trabalhadores em postos que exigem menos anos de escolaridade e menos
qualificação.
Entre 2013 e 2018, o mercado de trabalho formal
absorveu quase 1,7 milhão de trabalhadores com diploma universitário.
Desse total, 318 mil aceitaram vagas em uma das 50 ocupações que mais
empregavam trabalhadores com ensino fundamental completo ou médio
incompleto no início do período analisado.
Ou seja, pelo menos 2
de cada 10 novos contratos para profissionais com ensino superior no
período caracterizaram um possível desperdício de capital humano, de
acordo com a análise dos dados da Rais (Relação Anual de Informações
Sociais).
Esse número, porém, deve ser ainda maior, pois o
exercício feito pela reportagem analisou apenas as 50 carreiras mais
típicas da mão de obra com menor escolaridade.
Na
lista dessas ocupações estão auxiliar nos serviços de alimentação,
operador de empilhadeira, cuidador de idosos, recepcionista de
consultório médio, motorista de ônibus, frentista e faxineiro.
Diferentes modalidades de vendas são outro ramo no qual muitos brasileiros com faculdade completa têm atuado.
André Luís Matías do Santos, 29, formado em administração de empresas, tem trabalhado como vendedor da Stone Pagamentos.
“Eu
sinto que tenho mais capacitação do que o demandado pela função. Sempre
fui bom aluno, nunca perdi um ano, terminei um curso inglês junto com o
colégio e tenho ensino superior”, diz ele, que também se formou na UFF.
Quando
lhe foi perguntado como encara sua escolha de carreira hoje, André
respondeu não ter se arrependido. “Gostei do que aprendi em disciplinas
como psicologia, recursos humanos, e também de frequentar a
universidade.”
Em relação ao futuro, no entanto, seu sentimento é de grande insegurança.
“Estou
com a expectativa de crescer dentro da empresa. Com essa crise, me
sinto inseguro de me mudar para outra cidade maior sem saber se
encontrarei trabalho na minha área”, diz.
André e Dager são
amigos. Além de terem cursado a mesma universidade pública, no mesmo
campus —em Volta Redonda (RJ)—, cresceram em Paraíba do Sul, no interior
do Rio de Janeiro. André ainda mora na cidade.
Assim como ele,
Dager também chegou a trabalhar como vendedor. Pediu demissão porque
teve a sinalização de que conseguiria um trabalho melhor, nessa mesma
área, em São Paulo.
A oportunidade acabou não saindo e —com o
apoio da família— ele se mudou para o Rio de Janeiro em busca de uma
nova posição, seja em engenharia ou em outro campo.
“Tenho mandado diversos currículos, e está difícil conseguir até entrevista”, diz.
Quando
lhe é perguntado se teria feito a mesma escolha de cursar engenharia de
produção, Dager fica em silêncio por uns segundos e responde: “Não.
Talvez tivesse feito um curso técnico”.
Os dados da Rais mostram
que posições técnicas —em áreas como eletromecânica, instrumentação,
manutenção de sistemas e de máquinas— absorveram grande quantidade de
profissionais com ensino superior nos últimos anos.
Apesar
da decepção por não terem conseguido uma inserção melhor no mercado,
Dager e André não chegaram a sucumbir ao desalento, que caracteriza a
desistência de buscar um emprego apesar da vontade de trabalhar.
A
recessão seguida da recuperação mais lenta da história republicana do
país levou muitos trabalhadores brasileiros a essa condição.
Segundo
o IBGE, o desalento aumentou em todas as faixas de escolaridade, mas
seu salto mais marcante —de 875% entre o segundo trimestre de 2014 e o
mesmo período deste ano— se deu entre a população em idade de trabalhar
com superior completo.
A analista de sistemas Rita Urquidi, 56, é
um exemplo de profissional que desistiu —pelo menos, temporariamente— de
se reinserir no mercado de trabalho.
“Coloquei meu currículo na
internet, usei o LinkedIn, mas não fui chamada para nada”, diz ela, que
foi demitida da empresa em que trabalhava no início da recessão, em
2014.
“Tentei de tudo, aí fui diminuindo [minhas exigências].”
Moradora
de São Paulo, Rita conta que chegou a tentar uma vaga em telemarketing,
setor em que houve uma disparada na quantidade de profissionais com
ensino superior completo nos últimos anos.
Em 2013, havia 8.593
operadores de telemarketing com diploma universitário contratados no
mercado formal, segundo a Rais. Em 2018, esse número havia
quadruplicado, atingindo 33.735.
Rita, porém, não teve sorte na
área. Chegou a avançar em um processo seletivo, mas foi barrada na etapa
final. “Acho que foi pela idade”, afirma.
Depois de um tempo, ela
acabou desistindo de procurar emprego e foi atrás da aposentadoria.
Conseguiu o benefício por tempo de serviço e, hoje, vende pães de mel
para complementar a renda.
Em 2020, talvez a analista de sistemas
volte a buscar emprego. Agora, no entanto, diz preferir cuidar da mãe,
que está doente. Sobre o passado, Rita conta se arrepender de não ter
feito cursos de especialização, caminho que se tornou mais difícil para
ela no atual contexto de renda menor.
Para Cimar Azeredo,
coordenador de trabalho e rendimento do IBGE, um efeito colateral da
crise é que profissionais como ela deixam de acumular habilidade
adquiridas pela prática do emprego ou por formação complementar.
“Isso
vai ter repercussão [na economia] quando o mercado retomar a atividade.
O nível [de qualificação] das pessoas pode ter se tornado insuficiente
para ocupar certas vagas.”
QUEM TEM MENOS QUALIFICAÇÃO É EMPURRADO À INFORMALIDADE
Quando trabalhadores com curso superior ocupam vagas menos qualificadas, abre-se espaço para inúmeras distorções.
Segundo
Cimar Azeredo, coordenador de trabalho e rendimento do IBGE, a situação
de quem tem curso superior completo costuma não ser tão grave quanto a
de trabalhadores menos qualificados, que tendem a ser empurrados para a
informalidade.
“Quem tem nível superior completo acaba tendo uma
reserva [de dinheiro] ou vive em um domicílio em que as condições são
melhores, o que permite que fiquem subutilizados ou desalentados”, diz.
Bruno
Ottoni, pesquisador do Ibre/FGV e da consultoria IDados, concorda que o
trabalhador menos qualificado é mais vulnerável. Uma evidência disso é
que, embora tenha aumentado em todas as faixas de escolaridade, a taxa
de desemprego de quem tem ensino fundamental completo é o dobro de quem
tem ensino superior (13,9% contra 6,1%).
Porém, ressalta Ottoni, é
importante analisar as duas situações separadamente porque ambas
demandam atenção. “A população brasileira fez um enorme esforço para
aumentar sua escolaridade média nos últimos anos e os dados mostram que
parte dele tem surtido pouco efeito.”
O descasamento crescente
entre qualificação e ocupação, diz ele, é sinal disso. Um levantamento
do IDados, com números do IBGE, aponta a mesma tendência identificada
pela Folha, na Rais.
O estudo da pesquisadora Ana Tereza Pires
aponta que “o percentual de indivíduos com diploma de nível superior
ocupando cargos de nível médio ou fundamental cresceu de 25% em 2014
para 29,5% em 2019”.
Para Ottoni, deveria haver iniciativas no
Brasil, similares às existentes em outros países, que ofereçam
sinalização sobre a demanda do mercado por diferentes carreiras.
Outra
prática que ajudaria o país, diz Ottoni, seria o acompanhamento por
parte das instituições de ensino superior do desempenho de seus
ex-alunos no mercado.
“Eu me surpreendo que as universidades aqui não façam isso e que os pais e alunos não cobrem isso delas”, diz.
Entre
ocupações de baixa qualificação que têm absorvido profissionais com
escolaridade alta estão operador de empilhadeira, vendedor e repositor
de mercadorias
A maior compreensão sobre a dinâmica do
mercado de trabalho se torna mais premente à medida que novas
tecnologias abrem espaço para novas ocupações e ameaçam carreiras
antigas.
Segundo especialistas, parte desse processo pode estar
por trás do que vem ocorrendo com parcela dos profissionais mais
qualificados no Brasil.
“O Brasil tem falta de trabalhadores em
diversas áreas, que normalmente requerem altíssima qualificação. Por
isso não significa que basta ter ensino superior para se enquadrar na
categoria de profissionais qualificados”, diz Cosmo Donato, economista
da LCA Consultores.
Para ele, o fato de que muitos profissionais
com ensino superior estão fora do mercado de trabalho ou em profissões
que exigem menor ocupação agrava a falta de oferta de talentos no país.
“Você
está desperdiçando capital humano. Essas pessoas não têm condições de
se manter em um processo de contínua capacitação para se adequar às
novas realidades”, diz Donato.
O custo para o país no futuro,
alerta ele, pode ser alto. “No médio e longo prazo, o estoque de mão de
obra qualificada pode cair e acabar afetando o potencial de crescimento
da economia”, afirma.
Fonte: Folha de S.Paulo - Publicado por: Gerlane Neto
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