ATO INSTITUCIONAL Nº 5: Quase 80% dos brasileiros rejeitam o retorno de um regime autoritário
Pesquisa exclusiva VEJA/FSB mostra que a grande maioria da população, apesar de preferir a democracia, vê um risco razoável de retrocesso
A democracia no Brasil é uma criança que teima em crescer em
um terreno acidentado, daqueles que dificultam uma caminhada sem
tropeços. Desde a independência, em 1822, a nação passou mais da metade
do tempo sob regimes totalitários, considerando-se a monarquia e as
ditaduras do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945) e militar
(1964-1985), em que a tônica foi a repressão, a perseguição política, a
censura, o esfacelamento das instituições, os assassinatos e as
torturas. Os anos de chumbo pareciam enterrados com a chamada
“Constituição cidadã”, de 1988, e o retorno das eleições diretas, em
1989. Pouco mais de três décadas depois, no entanto, o país se vê às
voltas com esse fantasma, na forma de discursos que louvam figuras
indesejáveis do passado, citações ameaçadoras de instrumentos
totalitários como o abominável Ato Institucional Nº 5, o AI-5 —
ferramenta responsável pelo endurecimento da repressão nos anos 60 —,
gestos de aparelhamento que eliminam de órgãos públicos pessoas não
alinhadas com o pensamento dos poderosos de plantão, combate furioso à
imprensa e desprezo a instituições como o Congresso e o Supremo Tribunal
Federal. Boa parte da onda é comandada pelo próprio Jair Bolsonaro, que
não faz questão nenhuma de esconder seu apreço a tudo isso, com o apoio
de gente do seu entorno, como o filho Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o
deputado mais votado do país em 2018, de alguns ministros e de
seguidores radicais do governo. O coro é engrossado por uma parcela da
população que inunda as redes sociais com palavras de ódio e, nas ruas,
protagoniza gestos como atirar tomates em cartazes com fotos de
ministros do STF. Ironicamente, é a democracia que garante ao presidente
e a todas essas pessoas o direito de se expressar sem amarras, mesmo
que seja para louvar os tempos em que não havia essa mesma liberdade.
O consolo diante desse panorama vem de uma constatação: a grande
maioria do país não compactua com essa recaída autoritária, como
demonstra a pesquisa exclusiva VEJA/FSB, que ouviu por telefone 2 000
eleitores de 26 estados e do Distrito Federal entre 29 de novembro e 2
de dezembro. Quase 80% dos entrevistados acreditam que a democracia é
sempre, ou na maior parte das vezes, o melhor sistema de governo. Apenas
10% apontaram a ditadura como uma alternativa ideal. O mesmo
levantamento, porém, também trouxe um alerta: 40% dos consultados acham
que é média, grande ou muito grande a possibilidade de o Brasil virar
novamente uma ditadura. Outros 28% acreditam que essa possibilidade é
pequena — e só 26% estão razoavelmente tranquilos nesse aspecto. Em
resumo, embora a população continue professando a fé na democracia, uma
fração considerável dela enxerga o risco de nuvens negras no horizonte.
Como explicar esse temor em um país que não tem nenhum clima de
agitação nos quartéis, onde as instituições funcionam e há liberdade de
expressão? Infelizmente, a conhecida fixação de Bolsonaro pela ditadura
militar tem parte da responsabilidade pelo fenômeno. Quando ainda era um
inexpressivo deputado federal, todos os anos, em 31 de março, ele
cumpria religiosamente um rito. Subia à tribuna da Câmara para celebrar o
aniversário do golpe militar — nas palavras dele, a “segunda
independência do Brasil”. O plenário geralmente estava às moscas e pouca
gente se importava com o que ele dizia. Hoje, como presidente, suas
palavras são ouvidas por todos e têm muito mais peso. Em março, ele
orientou os quartéis a comemorar o dia do golpe de 1964. A ordem não
pegou bem nem entre a cúpula militar, que vê a ditadura como uma página
virada. Em agosto, recebeu em Brasília Maria Joseíta Silva, viúva do
coronel e torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, a quem chamou de
“herói nacional”. Em setembro, o filho Zero Dois, vereador Carlos
Bolsonaro (PSC-RJ), tuitou que, “por vias democráticas, a transformação
que o Brasil quer não acontecerá na velocidade almejada”. Em outubro,
foi a vez de o Zero Três, Eduardo, declarar em uma entrevista que se a
esquerda radicalizasse uma resposta possível seria a edição de “um novo
AI-5”. Em seguida, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional,
general Augusto Heleno, falando sobre a mesma hipótese, acrescentou que
“tem de estudar como vai fazer, como conduzir”. Há duas semanas, o
ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que o AI-5 era “inconcebível”,
mas que “não se assustem se alguém pedi-lo”. “Já não aconteceu?”,
perguntou. Todas essas manifestações receberam críticas pesadas e
merecidas da imprensa, do Congresso e do STF. Diante disso, o governo
tentou amenizar o estrago. “Acho que se exagerou na reação à fala dele”,
afirmou o ministro Sergio Moro. “Guedes falava contra o radicalismo,
não a favor de medidas de exceção.” O.k., mas por que razão esse assunto
retorna repetidas vezes?
![]() |
| FLERTE PERIGOSO – General Heleno apoiou Eduardo Bolsonaro, que em entrevista a Leda Nagle citou a hipótese de um novo AI-5 - (Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil) |
Por motivos eleitorais, a verdade é que tem muita gente interessada
nesse clima de radicalização. O discurso bolsonarista se alimenta do
ódio à esquerda — e vice-versa —, e ambos saem ganhando desse jogo
perigoso de polarização. Exemplo mais recente disso é a nova projeção
para as eleições presidenciais de 2022, na qual o presidente e o seu
rival Lula aparecem com destaque (veja o quadro).
Portanto, nada é por acaso. Ao acusar o petismo de ter feito um governo
comunista quando comandou o país, entre 2003 e 2016, Bolsonaro sabe que
a retórica contra a foice e o martelo rende apoio, mesmo três décadas
após a queda do Muro de Berlim. Enquanto as referências estão na esfera
da estratégia eleitoral, sem menções específicas a medidas de força, vá
lá. A direita é livre para apontar os problemas da esquerda, assim como
as críticas na direção oposta são legítimas. O problema é quando o
capitão e seus seguidores começam a invocar esse espectro de gaveta em
suas redes sociais para justificar ações extremadas, entre elas as
citações ao AI-5 como um instrumento para conter possíveis protestos
violentos dos inimigos vermelhos. Aí uma fronteira perigosa é
ultrapassada. “O anticomunismo virou uma palavra-valise, é oca, dá para
colocar o que se quiser lá dentro”, diz a historiadora Heloisa Starling.
Até recentemente, parcelas da população que apoiavam esse tipo de
ideia eram vistas como um nicho de excentricidade em meio às grandes
manifestações que tomaram as ruas do país pedindo o impeachment de Dilma
Rousseff em 2015. Aos poucos, porém, esses movimentos começaram a se
organizar e perderam a vergonha de expor seus objetivos — especialmente
nas redes sociais, onde fazem um barulho desproporcional ao seu tamanho.
“O ideal seria uma nova intervenção que acabasse com toda essa
bandalheira do STF e do Congresso, mas que não fosse de longo prazo”,
afirma o empresário Ricardo Rocchi, criador do grupo SOS Forças Armadas.
Com 49 anos, ele não era nascido na época do golpe de 1964 e integra a
onda de pessoas com nostalgia de um passado que não viveram. Ao
contrário do que essa turma prega, porém, a vida não era melhor no
Brasil daquela época. Em 1970, a taxa de analfabetismo estava perto de
30%, quase o triplo da atual. Houve um período de crescimento econômico
na casa de dois dígitos entre o fim da década de 60 e o início dos anos
70, o chamado milagre brasileiro, mas a crise do petróleo fez o país
desacelerar bruscamente e afundar em problemas gravíssimos como a
hiperinflação e o descontrole da dívida externa. Havia também corrupção,
e alguns casos vieram à tona, mesmo em meio à censura da imprensa, como
o envolvimento de dois ministros do governo de João Figueiredo, Delfim
Neto e Ernane Galvêas, em desvios de dinheiro público da Caixa Econômica
Federal em forma de empréstimos para a empresa Coroa-Brastel, à beira
da falência, em 1981. Para o professor de história da Universidade
Federal do Rio de Janeiro Carlos Fico, autor do livro O Golpe de 1964 — Momentos Decisivos,
a visão distorcida de muitos sobre esse passado ocorre porque a
ditadura brasileira dispunha de uma máquina poderosa de propaganda na
TV, lembrada pelos hits que são cantados até hoje durante as Copas do
Mundo, e de censura feroz aos meios de comunicação. Além disso, é
importante não esquecer que as ditaduras argentinas e chilenas mataram
muito mais do que a brasileira e de maneira mais escancarada, com
fuzilamentos nas ruas e campos de concentração. Mas, ao contrário de
outros países que tiveram regimes autoritários, o Brasil não exorcizou
por completo esse passado. A Comissão Nacional da Verdade, instituída em
2012 para rever os crimes perpetrados durante os anos de exceção,
acusou em seu relatório final 377 agentes públicos responsáveis pelas
agressões, entretanto nenhum chegou a ser punido. Valeu por aqui a Lei
da Anistia, “ampla, geral e irrestrita”, promulgada em 1979, que
concedeu perdão aos que cometeram crimes políticos.
![]() |
| FORA DO ARMÁRIO – Manifestação: sem pudor de defender um retrocesso - (Cadu Rolim/Fotoarena) |
A falta de informação sobre os aspectos concretos da última ditadura
no país, sem dúvida, ajuda a angariar algum apoio aos que defendem esse
tipo de regime. Mas obviamente não é o único fator. A crença nos valores
da liberdade está diretamente relacionada ao nível educacional de uma
nação, aspecto em que o Brasil também se encontra em desvantagem. Estudo
da plataforma americana Our World in Data (Nosso Mundo em Dados),
criada em parceria com a Universidade de Oxford, na Inglaterra, mostra
que países com menos anos de escolaridade tendem a ser submetidos a
regimes ditatoriais. No gráfico, o Brasil aparece com nota 8 no quesito
democracia, abaixo de Nicarágua, Indonésia, Índia e Argentina. Nessas
nações, a democracia hoje acaba sendo vítima de suas próprias
características. O professor de ciência política da Universidade de
Glasgow Christopher Claassen concluiu um outro trabalho em que analisa
as instituições em 135 países, incluindo o Brasil. Ao conceder direitos a
quem antes não poderia se manifestar, um regime democrático passa a
desagradar aos setores mais conservadores, especialmente os que, por
falta de uma educação mais sólida, nutrem preconceito contra raça,
religião ou preferência sexual. “A ampliação da democracia por parte do
Estado, sobretudo nos direitos às minorias, leva a uma reação negativa
na sociedade contra a própria democracia”, observa.
Não por acaso, um forte componente de sustentação ao flerte com o
totalitarismo no Brasil vem do apoio religioso, especialmente o
evangélico. Desde a condenação ao aborto e ao casamento gay até a
escolha de um versículo bíblico como slogan de campanha, o discurso
conservador de Bolsonaro soa como música aos ouvidos dos evangélicos. O
apoio maciço desse grupo é devolvido com gestos como as promessas de
indicação de um ministro “terrivelmente evangélico” para o STF e de
transferência da embaixada brasileira em Israel de Tel-Aviv para
Jerusalém. Para o sociólogo Reginaldo Prandi, da USP, as denominações
religiosas, sobretudo neopentecostais, servem de porta-voz a um
conservadorismo que sempre foi uma característica da sociedade
brasileira. O que Bolsonaro faz agora é instrumentalizar a religião em
seu proveito. “Na prática, a religião é uma espécie de disfarce de uma
ação que não é religiosa, mas que, por ser conservadora, cola muito com o
discurso dessa fração da população”, afirma. “Quem são os inimigos?
Tudo aquilo que é contrário a esse movimento.” O deputado evangélico
Marco Feliciano (Podemos-SP), apoiador de primeira hora do presidente e
em plena campanha para ser vice de Bolsonaro em 2022, é ainda mais
explícito: “A esquerda é a encarnação do mal! Seu líder é um condenado
por corrupção e defendem tudo o que não presta: bandido, aborto,
legalização das drogas, doutrinação ideológica e sexual de crianças”,
tuitou na quarta-feira, 4.
![]() |
| MODELO – Erdogan, na Turquia: ditadura construída aos poucos dentro da lei - (Kayhan Ozer/Presidential Press Service/AP) |
Evidentemente, as forças que põem em perigo os pilares da liberdade
não operam apenas no Brasil — trata-se de um fenômeno mundial. Na
Hungria, Viktor Orbán está no poder desde 2010 com um discurso
nacionalista, antimigração e como contraponto à esquerda do país
considerada burocrata e corrupta. Outro líder que surfa a onda da
decepção de seus compatriotas com as promessas de um futuro melhor
trazidas pela globalização é o presidente da Turquia, Recep Erdogan, que
foi o primeiro a cunhar o termo deep state (estado profundo).
Hoje largamente utilizada por apoiadores do presidente Donald Trump e de
Jair Bolsonaro, a expressão alimenta teorias da conspiração de que há
um conluio entre forças (Judiciário, empresariado e políticos) com o
intuito de derrubar o governo, o que justificaria medidas drásticas de
reação. “Quando você dificulta a vida da oposição, esmaga minorias,
elimina instrumentos de controle, reduz o pluralismo e aumenta a
intolerância, o que se tem é uma erosão do regime democrático. E o
Bolsonaro dá inúmeras mostras de que a perspectiva dele é essa”, afirma o
cientista político Cláudio Couto, da Fundação Getulio Vargas. Entre o
rosário de iniciativas com pendores autoritários do governo, o
especialista cita a insistência em projetos como o do excludente de
ilicitude, que defende as ações mais violentas por parte das forças de
segurança. Mas não só. Segundo Couto, é exemplo desse autoritarismo
também a atuação de Bolsonaro nas áreas científica e cultural, com a
nomeação do maestro terraplanista Dante Mantovani para a Funarte e a de
Roberto Alvim para a Secretaria da Cultura após chamar de “mentirosa” e
“sórdida” a atriz Fernanda Montenegro. “O sentido do que tem sido dito
por esses personagens é que existe uma cultura degenerada e eles
estariam ali para revelar a verdadeira cultura”, diz Couto.
Como alerta, nem sempre tal retrocesso institucional acontece de uma
maneira tão linear e visível. À esquerda ou à direita, a construção de
um regime totalitário não passa necessariamente por um golpe de Estado,
com tanques nas ruas e pessoas fuziladas na esquina. Em seu livro Como as Democracias Morrem,
o cientista político Steven Levitsky, especialista em América Latina da
Universidade Harvard, mostra que as ditaduras não surgem hoje na forma
de levantes militares clássicos. Atualmente, os regimes democráticos são
corroídos de modo sutil e gradativo por líderes que são legitimamente
eleitos, mas que utilizam instrumentos legais para eliminar seus
adversários. “É como usar a letra da lei para diminuir o espírito da
lei”, afirma Levitsky (veja a entrevista).Daí
a necessidade de uma vigília permanente dos valores democráticos. Na
Venezuela, por exemplo, a ascensão de Hugo Chávez ao poder aconteceu por
vias eleitorais. Aos poucos, ele foi utilizando o poder conquistado
para esmagar seus opositores. No início, o dinheiro do petróleo fazia
com que seus desejos fossem atendidos — e quem levantava a voz contra os
exageros era escanteado. Deu no que deu.
![]() |
| REPRESSÃO – O Brasil nos anos de chumbo: mito sobre uma época “melhor” - (Evandro Teixeira/CDOC JB/.) |
Se a democracia brasileira (assim como outras mundo afora) enfrenta
riscos, o espaço para as nuvens negras no horizonte se transformarem em
tempestade é restrito. Há solidez nas instituições, tanto estatais, caso
do Supremo, do Ministério Público e do Congresso, quanto da sociedade
civil, como a imprensa e a OAB. “Um retrocesso autoritário seria um
‘constituicídio’ porque a democracia é a menina dos olhos da
Constituição. Toda a arquitetura jurídica do país se estrutura em torno
dela. A ditadura não é alternativa, é barbárie”, diz o ex-ministro do
STF Ayres Britto. Para o cientista político Rui Tavares Maluf, professor
da Fundação Escola de Sociologia Política de São Paulo, a preocupação
com uma eventual volta da ditadura pode ser derivada de uma questão até
positiva: as pessoas estão mais atentas aos acontecimentos políticos e
às falas de integrantes do governo. Segundo ele, o temor vem também de
uma parcela que escolheu Bolsonaro apenas para evitar o risco de o PT
retornar ao poder e está assustada com o que vê. “Mas não encampa esse
repertório de defesa do regime autoritário”, afirma. Como mostra a
pesquisa VEJA/FSB, o receio existe, mas a crença no valor da liberdade é
ainda maior. Para Levitsky, sempre que um autoritário é eleito, é
preciso ficar vigilante todo o tempo. “Desde o primeiro até o último dia
de sua Presidência”, diz. De certo modo, é reconfortante saber que a
grande maioria da sociedade está disposta a fazer essa vigília em nome
do futuro dessa criança que é a democracia brasileira.
Colaboraram Mariana Zylberkan e Leonardo Lellis
Publicado em VEJA de 11 de dezembro de 2019, edição nº 2664
Publicado em VEJA de 11 de dezembro de 2019, edição nº 2664






Nenhum comentário:
Postar um comentário