Oitenta tiros disparados por militares do Exército e o risco da impunidade no Rio de Janeiro
Morte de músico no Rio reacende campanha para que militares respondam por crimes na Justiça comum. "Tudo isso junto com governantes que dizem que pode reagir e atirar. Há um impulsionamento que pode agravar esses casos", diz diretor da ONG Conectas
Luciana dos Santos, mulher de Evaldo, chora na zona oeste no Rio. Fabio Teixeira - AP |
Beatriz Jucá
O músico e segurança Evaldo dos Santos Rosa, 51 anos, levava a família para um chá de bebê de uma amiga no último domingo quando teve o carro alvejado por mais de 80 balas disparadas por militares que patrulhavam a Estrada do Camboatá, no bairro de Guadalupe, zona oeste do Rio de Janeiro. Foi atingido por algumas dessas balas e, pouco antes de morrer, ainda virou o carro na tentativa de proteger a esposa, o filho de sete anos e a afilhada de 13, que estavam no banco traseiro. Eles saíram ilesos, mas o padrasto da esposa de Evaldo, que estava ao lado do motorista, ficou ferido, assim como uma pessoa que passava pelo local no momento em que os militares abriram fogo, segundo eles em resposta a uma "injusta agressão" de "assaltantes" que teriam iniciado o tiroteio.
O músico e segurança Evaldo dos Santos Rosa, 51 anos, levava a família para um chá de bebê de uma amiga no último domingo quando teve o carro alvejado por mais de 80 balas disparadas por militares que patrulhavam a Estrada do Camboatá, no bairro de Guadalupe, zona oeste do Rio de Janeiro. Foi atingido por algumas dessas balas e, pouco antes de morrer, ainda virou o carro na tentativa de proteger a esposa, o filho de sete anos e a afilhada de 13, que estavam no banco traseiro. Eles saíram ilesos, mas o padrasto da esposa de Evaldo, que estava ao lado do motorista, ficou ferido, assim como uma pessoa que passava pelo local no momento em que os militares abriram fogo, segundo eles em resposta a uma "injusta agressão" de "assaltantes" que teriam iniciado o tiroteio.
A versão dos militares, porém, contrasta com os depoimentos dos
vizinhos e com a perícia que a Polícia Civil teve que realizar por conta
da dificuldade dos próprios militares para examinar a cena do crime
diante da revolta da população. O delegado Leonardo Salgado, que assumiu
os trabalhos, disse que tudo indica que os militares fuzilaram o carro
da família por "engano". Já o Comando Militar do Leste,
que investiga o caso e havia emitido nota corroborando com a versão dos
membros que participaram da operação, precisou voltar atrás "em virtude
de inconsistências identificadas entre os fatos inicialmente reportados
e outras informações que chegaram posteriormente". E determinou o
afastamento imediato e a prisão de dez dos doze militares que
participaram da operação por "descumprir as regras de engajamento".
Tanto as investigações quanto os possíveis processos criminais
gerados por elas estão a cargo das Forças Armadas, conforme estabelece
uma lei sancionada pelo então presidente Michel Temer em 2017. Nos
últimos três anos, o Exército vem ganhando protagonismo em ações de segurança pública no Brasil. Foi nesse contexto que os militares conseguiram aprovar a lei 13.491/2017,
que transfere para as Forças Armadas os casos de crimes dolosos contra a
vida de civis durante operações de garantia da lei e da ordem. A
legislação é interpretada como uma espécie de foro privilegiado para os
militares por ativistas de direitos humanos. Agora, o caso de Guadalupe
reabre o debate sobre a possível falta de isenção da Corte Militar para
investigar e julgar membros da própria corporação, e entidades de
direitos humanos pedem a revogação da lei.
"Existe um risco maior de impunidade quando você tem
pessoas da mesma corporação julgando seus colegas", argumenta o advogado
e diretor-adjunto da ONG Conectas, Marcos Roberto Fuchs. Ele chama
atenção para a letalidade em ações de segurança pública desenvolvidas
pelo Exército no Brasil, com vários casos de morte nos últimos anos. É o
caso, por exemplo, do assassinato do capixaba Matheus Martins da Silva,
de 17 anos, com um tiro de fuzil disparado por um soldado a um
quarteirão de sua casa em fevereiro de 2017 durante uma ação de
segurança pública. "Existe um procedimento padrão para abordar. Agora,
dar 80 tiros [como fizeram no domingo] é uma letalidade abusiva e
desproporcional. Esta é a nossa primeira preocupação. A segunda é a de
que o crime vai ser levado à Justiça Militar, então não vai ser um
julgamento isento e imparcial, já que os próprios militares vão julgar
os colegas", diz Fuchs.
No caso de Guadalupe, o Comando Militar Leste instaura o
inquérito e designa um encarregado para apurar o crime militar através
do Inquérito Policial Militar (IPM), que, assim como o Inquérito
Policial, reúne os elementos necessários para propor uma ação penal. É
nesta fase que se colhem dados e se realizam diligências que seriam
difíceis ou impossíveis de ocorrer no curso do processo, como exames
periciais, interrogatórios e reconstituições. Esta peça é então
encaminhada ao Ministério Público Militar, que oferece a denúncia na Justiça Militar.
O prazo para conclusão do inquérito quando os supostos autores do crime
estão presos — como é o caso dos militares que participaram do
fuzilamento em Guadalupe — é de 20 dias. Mas, segundo fontes da Justiça
Militar, não há um prazo específico para finalização do processo
judicial.
A Human Rights Watch Brasil, entidade que atua na defesa
dos direitos humanos, emitiu uma nota pedindo a revogação da lei de 2017
que coloca nas mãos das Forças Armadas as investigações de homicídios
cometidos por membros das Forças Armadas em operações, como a de
domingo. "Qualquer julgamento seria realizado perante um tribunal que
também não é independente, pois é composto por quatro oficiais militares
e um juiz civil", alega a entidade. O pesquisador sênior da Human
Rights Watch Brasil, César Muñoz, afirma que a lei brasileira vai de
encontro ao que defende o direito internacional, de que as justiças
militares devem julgar apenas infrações internas, como por exemplo
desacato e indisciplina. "Os juízes militares estão numa hierarquia e
têm que obedecer seus superiores. Talvez não haja uma pressão direta,
mas há uma relação ali. Não é uma situação que tem um juiz
independente", diz.
Muñoz diz que é difícil para as entidades da sociedade
civil acompanharem os casos investigados e julgados pela corte militar.
"Não é uma justiça muito aberta ao olhar externo", avalia. E levanta
questionamentos sobre a atuação dos militares na condução de um caso
emblemático: o da chacina de Salgueiro. Em novembro de 2017, um comboio de dois blindados do Exército e um da Polícia Civil entrou no complexo de favelas do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro,
e realizou uma operação que terminou com sete mortos. Uma investigação
conjunta entre Polícia Civil e Exército foi criada para investigar o
primeiro caso concreto desde a sanção da lei que amplia a jurisprudência
da corte militar, mas os responsáveis por essas mortes ainda são um
mistério.
O caso foi acompanhado de perto pela Human Rights Watch. Um
ano depois do episódio, a Justiça Militar sequer havia ouvido todas as
testemunhas e sobreviventes. "Nós, uma entidade da sociedade civil,
entrevistamos essas pessoas, como eles não conseguiram?", questiona
Muñoz. A Polícia Civil ficou com parte das investigações, mas, como
envolvia militares, não pôde avançar nas investigações. Testemunhas
contaram às autoridades que os atiradores vestiam roupas pretas, tinham
fuzis com mira a laser e capacetes luminosos. A descrição bate com os
equipamentos disponíveis aos militares, mas a Polícia Civil
não pôde apreender as armas para averiguar se os tiros foram disparados
por eles, e o Exército deu poucas respostas sobre isso. "A gente já
teve esse problema [de risco de impunidade na investigação de crimes
praticados por militares pelas Forças Armadas]
antes. Foi uma investigação que até hoje não foi esclarecida", declara
Muñoz, ressaltando que a corte militar não tem um sistema adequado para
julgar crimes que ferem os direitos humanos.
Marcos Roberto Fuchs, da ONG Conectas, teme que o discurso
do presidente Bolsonaro de parabenizar oficiais que matem bandidos em
serviço e mesma a proposta do pacote anticrime do ministro Sérgio Moro
para que agentes de segurança tenham a pena reduzida ou eliminada caso
matem em serviço pode agravar casos como este. "Parece que vai ser um expediente recorrente no Rio de Janeiro.
Quando não se tem mais poder da Policia, se usa o Exército. É uma
política que está errada no nosso modo de vista. Tudo isso junto com
governantes que dizem que pode reagir e atirar. Há um impulsionamento
que pode agravar esses casos sem dúvida", avalia.
El País
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