Princesa filha de um dos políticos mais ricos e poderosos do mundo desaparece após tentar fugir de Dubai
“Olá, meu nome é Latifa Maktoum, eu nasci em 5 de dezembro de 1985. Eu preciso me lembrar de falar tudo, porque esse pode ser o último vídeo que eu faço (…) E se vocês estão vendo esse vídeo, não é nada bom. Significa que ou eu estou morta ou em uma situação muito, muito, muito ruim.”
A mensagem acima faz parte de um vídeo gravado por Latifa,
princesa de Dubai, poucos dias antes de tentar fugir da cidade, que faz
parte dos Emirados Árabes Unidos (EAU), no Oriente Médio. Ela é uma dos
30 filhos do líder de Dubai e primeiro-ministro dos EAU, xeique Mohammed
bin Rashid Al Maktoum, uma das figuras políticas mais ricas e poderosas
do mundo.
“Muito em breve, eu vou fugir para algum lugar. E eu
não tenho certeza se isso dará certo, mas estou 99% otimista de que vai
funcionar”, disse Latifa no vídeo, gravado em segredo com o objetivo de
somente ser divulgado por seus amigos caso o plano de fuga não desse
certo. O depoimento era como um pedido de ajuda para o futuro.
Em fevereiro deste ano, a gravação foi postada no YouTube, sinalizando que algo pode ter ocorrido com a princesa.
A
história de Latifa foi contada por um novo documentário da BBC, Escape
from Dubai: The Mystery of the Missing Princess (A fuga de Dubai: o
mistério da princesa desaparecida), transmitido em 6 de dezembro. Neste
texto, a BBC News Brasil reconta a trajetória da princesa.
“(Dubai)
não é como tem sido retratada pela mídia. Aqui não há justiça. Eles não
se importam. Especialmente se você é mulher, sua vida é tão
descartável”, narrou Latifa no vídeo.
A vida da princesa Latifa em uma ‘jaula de ouro’
Como
filha do xeique Maktoum, Latifa vivia rodeada de muito luxo. “Ela vivia
com sua mãe e duas irmãs em uma casa particular, que, vista de fora,
parecia um palácio. Tinha piscinas, salas de massagem, provavelmente 100
funcionários”, conta Tiina Jauhiainen, que foi treinadora de capoeira
de Latifa e se tornou sua amiga de confiança.
“Para mim, parecia
que Latifa tinha tudo que uma garota poderia sonhar em ter”, contou
Tiina à BBC. “Vivia em um palácio, tinha muito dinheiro, não faltava
nada. Essa era a primeira impressão. Levou um tempo até que eu
percebesse a realidade da sua vida.”
Os Emirados Árabes Unidos se
apresentam como uma das sociedades mais liberais para as mulheres no
Oriente Médio, na qual podem desfrutar de liberdades e luxos do
Ocidente. Mas, assim como a Arábia Saudita, o país também é regido pela
sharia, a lei islâmica.
“As mulheres têm que ser obedientes aos
seus maridos. Os homens podem bater nas suas mulheres e filhos. Isso
está na lei dos EAU. Então, se uma mulher é considerada muito selvagem,
não controlada pela família, eles podem decidir confiná-la e puni-la,
para que ela não se comporte dessa maneira”, afirmou Rhothna Begum, da
organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch.
Em
2002, quando tinha 16 anos, Latifa tentou fugir pela primeira vez. Mas
foi capturada na fronteira e levada de volta para Dubai. No vídeo, a
princesa diz que foi duramente punida pela fuga.
“Eles me
colocaram na prisão e me torturaram. Basicamente, um cara me segurava,
enquanto outro me batia. Depois das sessões de tortura eu não podia nem
andar.”
A seguir, narra Latifa, ela foi confinada sozinha em um
quarto-escuro, sem saber o que era dia e o que era noite. No total,
teria ficado nesse confinamento por 3 anos e 4 meses, e liberada somente
aos 19 anos.
Latifa saiu dessa experiência completamente
diferente, segundo conta no vídeo. Deixou de confiar nas pessoas e
começou a passar mais tempo com animais – alguns desses momentos estão
registrados em seu perfil no Instagram.
Livre, mas impedida de
deixar Dubai, a princesa foi autorizada a contratar tutores privados.
Aos 26 anos, concluiu seus estudos. Também passou a fazer treinamentos
esportivos. Além das aulas de capoeira com Tiina, fez cursos de
paraquedismo e se juntou à comunidade de paraquedistas locais.
“Ela
me dizia que o paraquedismo dava a ela uma sensação de liberdade, ela
precisava de algo para se distrair da sua vida”, diz Tiina.
Pessoas que conviveram com Latifa disseram para a BBC que a princesa era calada, simples, e nunca falava sobre sua família.
Apesar
disso, fotos de Latifa pulando de paraquedas acabaram sendo veiculadas
na mídia local, passando a imagem que Dubai queria transmitir: a da
diversão e da liberdade feminina.
É tudo uma “farsa”, disse Latifa
no vídeo. “Não posso dirigir, não posso viajar, não saio (de Dubai)
desde 2000, não deixam. Pedi para estudar (fora), e me negaram”,
declarou. “Meu pai tem essa imagem de ser (um homem) moderno. É mentira.
É só marketing.”
Xeique Maktoum cultiva imagem de homem moderno
O
xeique Rashid al Maktoum cuida da sua imagem com esmero. Patrick Nixon,
embaixador britânico na região, descreveu o xeique como “carismático,
dinâmico, com certo encanto, mas muito determinado”. “É um personagem
muito público, que aparece na imprensa todo o tempo. Sabe o que quer,
como obter e quem pode ajudar”, destacou Nixon para a BBC.
Sob seu
comando, Dubai se transformou radicalmente: de uma cidade seca no
deserto a uma das metrópoles mais glamorosas do mundo, repleta de
imponentes arranha-céus e luxuosas ilhas artificiais. É uma “Las Vegas
do Oriente Médio”, “hedonista”, “com um pouco de tudo”, comentou Rhothna
Begum, da Human Rights Watch.
Em sua vida particular, Maktoum é
um dos mais importantes criadores de cavalos do mundo. Por conta dessa
paixão, o xeique viaja frequentemente à Inglaterra, para assistir às
famosas corridas de Ascot, onde tem uma mansão avaliada em US$ 95
milhões – o xeique é, aliás, o maior proprietário privado de terras no
Reino Unido. Em algumas dessas visitas, Maktoum chega a confraternizar
com a realeza britânica.
“O xeique é uma marca internacional”,
assinalou o jornalista inglês Sean O’Driscoll. “Mas, em Dubai, o
controle é completo. Não se pode escrever nada de negativo sobre Dubai.”
A fuga da princesa Shamsa, irmã de Latifa
Um exemplo da força repressiva do regime de Dubai é o que ocorreu a uma das irmãs de Latifa, a princesa Shamsa, em 2000.
Naquele
ano, Maktoum decidiu passar o verão na sua mansão na Inglaterra com
parte da família – Shamsa, inclusive, que tinha 18 anos.
A
comitiva era acompanhada por diversos seguranças e todos os
deslocamentos eram feitos em aeronaves particulares. “Shamsa odiava tudo
isso. Ela se queixava da sua jaula de ouro”, comentou Stuart Millar,
jornalista do jornal britânico The Guardian.
Cansada de viver aprisionada no luxo da família, sem ter “as liberdades do mundo civilizado”, segundo Latifa, Shamsa fugiu.
Ela
conseguiu ficar escondida por várias semanas, mas acabou localizada
pelos seguranças de seu pai há alguns quilômetros de Cambridge. “Ela foi
agarrada e colocada dentro de um carro, gritando. Depois, (foi levada) a
um helicóptero até a França. E da França até Dubai”, relatou Millar,
que fez a cobertura do caso.
A operação tinha a marca de um
sequestro, um delito grave no Reino Unido. A polícia de Cambridge chegou
a iniciar uma investigação, mas não conseguiu seguir adiante. O
investigador responsável pelo caso tentou ir para Dubai para falar com
Shamsa, mas teve negado seu pedido de ingresso nos EAU – nunca lhe
disseram o porquê.
Os EUA são um aliado estratégico do Reino
Unido, o que dificultou a continuidade do caso. “Você tem esse aliado
chave e fundamental no Golfo. Além disso, ele (Maktoum) é da realeza,
amigo da nossa realeza. É a tempestade perfeita”, concluiu Millar.
“Foi
uma das histórias mais estranhas em que já trabalhei. Em que uma
acusação de sequestro no Reino Unido não foi investigada”, disse Millar.
Shamsa foi dopada e feita prisioneira em Dubai, acusa Latifa
Não
se sabe o que ocorreu a Shamsa depois que ela voltou para Dubai. No
vídeo, Latifa contou que a irmã foi dopada e aprisionada em um quarto de
um palácio.
“Ela foi colocada nessa construção, Zabell Palace, e
ficou presa por oito anos. E então me permitiram que eu a visitasse. Ela
estava em um estado muito, muito, muito, ruim. Ela não abria os olhos. E
as pessoas precisavam dar a mão (a Shamsa) para que ela caminhasse.
Davam-lhe comida e um monte de comprimidos. Esses comprimidos faziam com
que ela ficasse como um zumbi”, narrou Latifa.
“Estava constantemente rodeada por enfermeiras, que dormiam com ela e anotavam tudo o que fazia ou dizia”, continuou.
Foi
após a fuga da irmã que Latifa decidiu escapar. Mas foi pega e, segundo
seus relatos, presa e torturada. É impossível verificar se isso
realmente ocorreu. Mas, Sima Watling, da Anistia Internacional, afirma
que alguns aspectos da descrição do que ocorreu com ela soam “familiar e
plausível”.
Organizações de direitos humanos já conseguiram
documentar diversos casos de tortura por espancamento em prisões do EAU e
confinamento solitário.
G1 - Foto: Reprodução/via BBC
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