Racismo não dá descanso e impacta a saúde e o trabalho dos negros no Brasil
“É
 coisa de preto”, teria dito o jornalista William Waackminutos antes de 
entrar no ar em uma transmissão ao vivo. A fala repercutiu como rastilho
 de pólvora acesa queimando o que houvesse pelo caminho. Foi afastado de
 sua função de apresentador no mesmo dia e incendiou a discussão sobre o
 racismo velado no Brasil. Enquanto jornalistas e até o ministro do 
Supremo Tribuna Federal (STF) Gilmar Mendes manifestaram apoio a Waack, 
nas redes sociais, os internautas resgatavam a memória e os feitos de 
grandes personalidades negras utilizando a hashtag #Écoisadepreto. Para a
 psicanalista Maria Lúcia da Silva, casos como esse são positivos pois 
descortinam o racismo e promovem o debate acerca do tema num país onde 
54% da população se declara preta ou parda.
Frases como a de Waack
 são repetidas em diversos contextos cotidianamente e segundo pesquisas,
 o estresse de lidar com a discriminação terminar por afetar a saúde dos
 negros. Silva alerta que para lidar com situações de racismo e 
preconceito, as pessoas negras demandam mais energia. “Essa situação 
acontece desde o nascimento, o tempo todo. O racismo não dá descanso”, 
ressalta.
Uma das primeiras distorções que episódios de 
preconceitos acarretam no organismo humano é o aumento da pressão 
arterial. Posteriormente esse aumento de pressão causa o endurecimento 
da veias que pode resultar em um ataque cardíaco ou em um acidente 
vascular cerebral (AVC). Mas para além disso, o racismo também impacta a
 saúde mental. Um estudo feito por pesquisadores da Universidade do 
Texas mostra que pessoas que sofreram com discriminação estavam sujeitas
 a desenvolver alcoolismo e depressão. Co-autora do estudo, a 
socióloga Trenette Clark diz que a discriminação tem efeitos semelhantes
 à perda do emprego ou à morte de um ente querido.
É para ajudar a
 reduzir os efeitos do racismo que existe o Instituto Amma Psique e 
Negritude, no qual trabalha Maria Lúcia. Uma das frentes do Instituto é 
preparar profissionais para que eles entendam melhor como os sofrimentos
 causados pelo racismo podem impactar nas relações sociais.
Para
 a psicanalista Noemi Kon, organizadora do livro O racismo e o negro no 
Brasil: questões para a psicanálise “obviamente que essa violência causa
 sofrimento psíquico”. Ela ainda acrescenta que o racismo “pode fazer 
com que as pessoas se sintam menos qualificadas a ocupar determinados 
espaços na sociedade e a estabelecer relações amorosas de qualidade, por
 exemplo”. A obra surgiu de um episódio de racismo vivenciado em sala de
 aula, apontado por Maria Lúcia Silva. Para resolver a questão, Noemi 
propôs um curso que tratasse do racismo nessa área e o passo seguinte 
foi a concepção do livro.
A psicanalista entende que os debates 
sobre o racismo estão ganhando mais visibilidade em um período recente. 
Segundo ela, esse movimento é importante para a desconstrução do mito da
 democracia racial. O conceito criado por Gilberto Freyre no século 
passado, segundo ela, prejudica ainda as pessoas que enfrentam situações
 de racismo e lidam com maiores dificuldades em diversos campos da vida,
 mas que não se manifestam sobre isso. “É um discurso ideológico que faz
 com que diferenças individuais sejam colocadas como responsáveis por 
fracassos individuais”, afirma Noemi.
O negro no mercado de trabalho
O racismo está engendrado de forma estrutural na nossa sociedade, e 
traz consequências práticas, uma vez que os negros possuem menos 
oportunidades em áreas essenciais. Um levantamento feita 
pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
 (Dieese) com dados de 2016 mostra, por exemplo, que quanto mais 
escolarizados os negros, maior a diferença de salário em comparação com 
uma pessoa não negra que tenha o mesmo nível de instrução. Os 
profissionais negros que não completaram o ensino médio ganhavam 92% do 
que recebiam os não negros com esse mesmo nível de estudo. Essa 
diferença cai para 85% entre os que têm ensino médio completo. Quando se
 tratam de trabalhadores com ensino superior, os negros ganham somente 
65% do que um trabalhador não negro com a mesma formação.
Os
 índices de desemprego também são mais altos entre pessoas negras do que
 no restante da população. Durante a recessão econômica, é este grupo o 
mais impactado. De 2015 para 2016, a taxa de desemprego total dos negros
 aumentou de 14,9% para 19,4%, enquanto a dos não negros passou de 12% 
para 15,2%.
Rodrigo Silva de 22 anos quase engordou essa 
estatística quando seu contrato de estágio estava próximo do fim, mas 
ele conseguiu outro emprego. A posição ocupada por Rodrigo na empresa, 
em um cargo auxiliar também é mais comum entre pessoas negras, segundo a
 pesquisa realizada na região metropolitana de São Paulo. Enquanto isso,
 nos cargos de chefia, a presença de pessoas negras é 13,6% menor. Para 
Maria Lúcia da Silva, isso se dá porque o racismo “dificulta a 
mobilidade e permanência social em caso de prestígio ou de construção de
 uma carreira”. Hoje ocorre maior inserção dos negros em segmentos onde 
tradicionalmente os rendimentos são mais baixos (construção, trabalho 
autônomo e doméstico) e menor incorporação em outros, que costumam pagar
 salários mais altos (Indústria, alguns ramos dos Serviços, setor 
público e o agregado que reúne empresários e profissionais 
universitários autônomos, entre outros). Na média, os negros receberam 
67,8% do rendimento dos não negros, em 2016.
Menos acesso à educação
Há um fosso, ainda, na comparação de acesso aos estudos. Há um evidente
 atraso escolar dos negros, que se perpetuou desde a abolição da 
escravidão, no século 19. Desde então, a falta de suporte que admitisse a
 diferença deixou um déficit na formação deste grupo. Na década passada,
 houve algum ajuste pelas políticas de cotas afirmativas. Em 2005, 
somente 5,5% dos jovens pretos e pardos em idade universitária 
frequentavam a faculdade. Esse número saltou para 12,8% em 2015, segundo
 o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em relação à 
população branca, contudo, a distância ainda é enorme: 26,5% dos 
estudantes brancos entre 18 e 24 anos estavam na univerdade em 2015.
O
 analfabetismo também revela a desigualdade de condições de negros e 
brancos. Um levantamento feito pelo movimento Todos Pela Educação em 
2016, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio 
(Pnad/IBGE), mostra que a taxa de analfabetismo é 11,2% entre os pretos;
 11,1% entre os pardos; e, 5% entre os brancos.
A relação entre escravidão e desigualdade
Por ter sido o último país do ocidente a extinguir a escravidão, a 
relação entre o Brasil e a “instituição”, eufemismo utilizado para 
nomear a escravatura, ainda é intensa. Segundo o sociólogo e 
especialista em políticas públicas Humberto Laudares cerca de 20% da 
desigualdade que acontece ainda hoje em municípios brasileiros tem como 
fonte a escravidão.
Laudares credita esse cenário a uma falha da 
sociedade e do Estado brasileiro em promover igualdade de oportunidades 
para os cidadãos. Para efeito de comparação, os municípios que abrigaram
 quilombos sofrem ainda mais. “Nós testamos o efeito dos quilombos na 
desigualdade e encontrarmos que locais que sediaram quilombos são hoje 
3% mais desiguais, são mais pobres e ainda têm um nível educacional 
inferior a municípios com características semelhantes”, relata. Para 
ele, há um caminho para reduzir o problema: “igualar as oportunidades — 
saúde, educação, segurança — a partir da infância”.
Fonte: El País - Publicado por: Ivyna Souto

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