Cocaína em rios está deixando enguias europeias doidonas – e muito doentes

Quase
tudo que o ser humano usa, de cotonetes a ácido sulfúrico, vai parar em
um rio eventualmente. Drogas não são exceção. No trecho do rio Tâmisa
que corta Londres, a concentração de benzoilecgonina (um resquício
metabólico que sai na urina de quem consome cocaína) é de 17
bilionésimos de grama por litro de água. Uma análise feita no rio
italiano Pó em 2005 revelou que ele dá vazão a 4 kg de cocaína
diariamente – o trocadilho fica por conta do leitor.
Quem
não gosta nada dessa história são os peixes. Mais especificamente,
as enguias de uma espécie com nome científico engraçado: Anguillaanguilla. Um artigo
científico publicado na semana passada demonstrou que a cocaína, na
concentração que é encontrada nos rios europeus, causa inchaço e
disfunções nos músculos e torna esses animais hiperativos – o que
poderia impedi-los de completar as loucas migrações que eles fazem para
se reproduzir.
As
enguias testadas em laboratório foram colocadas em água com 20
bilionésimos de cocaína por litro – uma concentração residual condizente
com a verificada em rios de verdade. Outras enguias, que serviram de
referência, ficaram em água pura, sem contaminantes. Após 50 dias de
exposição à droga, as narcóticas arriaram: exibiram sintomas similares
aos de uma condição chamada rabdomiólise, em que as fibras musculares se
desintegram. Outro problema é que, graças ao aumento da concentração de
cortisol, o hormônio do stress, elas pararam de acumular reservas de
gordura – que são essenciais para suportar viagens aquáticas longas.
Nem 10 dias de rehab em
água limpa ajudaram: os danos são praticamente irreversíveis. “Todos os
tecidos afetados tem funções essenciais para a sobrevivência das
enguias”, afirmou ao The Guardian Anna Capaldo, pequisadora da
Universidade de Nápoles Federico II que liderou o estudo. “Guelras
debilitadas podem reduzir a capacidade respiratória, um músculo avariado
pode afetar a habilidade de nadar.”
É
claro que qualquer peixe que esteja em risco por causa de contaminação é
motivo de preocupação. Mas as enguias europeias são um caso
especialmente delicado porque dependem da capacidade de nadar para
fechar seu ciclo reprodutivo e perpetuar a espécie. Entenda abaixo:
Enguias transatlânticas
Você
já viu um filhote de pombo? Pois é, eu também não. Mas que
eles existem, existem. Afinal, tudo que é vivo já foi bebê um dia. Por
uns bons séculos, os pescadores dos rios europeus devem ter feito uma
piada parecida com as enguias. Elas davam a impressão de já vir de
fábrica adultas, esbanjando comprimento. Ovos de enguia? Enguias
adolescentes? Ninguém nunca tinha visto (ou melhor, pescado).
Foi
só em 1920 que um biólogo dinamarquês chamado Johannes Schmidt matou a
charada. Os bebês de enguia europeia existiam – só não viviam na Europa.
Na verdade, a dita cuja está mais para Pokémon do que para peixe: muda
de forma e habitat várias vezes ao longo da vida. Acompanhe a história:
Os
ovos de enguia eclodem em uma região do Atlântico próxima ao litoral
americano chamada “mar de Sargaços”. Nessa velha infância, elas são
discretas: larvas de poucos centímetros, transparentes e achatadas, que
atendem pelo nome de leptocéfalos. Os leptocéfalos são tão diferentes de
sua versão adulta que, por muito tempo, ninguém percebeu que eles e as
enguias na verdade eram duas fases da mesma coisa. Eles eram simplesmente classificados como outro animal, de nome científico Leptocephalus brevirostris.
Só
depois que o quebra-cabeça reprodutivo foi montado que ficou claro o
que acontecia. As pequenas larvas, nadadoras talentosas, cruzam o oceano
sempre próximas à superfície, se alimentando de pequenas partículas
orgânicas até alcançar a Europa. A viagem, impulsionada por correntes
marítimas, leva 300 dias.
No litoral,
ainda mergulhadas em água salgada, elas crescem até atingir o próximo
estágio evolutivo, chamado “enguia-de-vidro”, ou meixão. Nessa altura,
penetram na foz dos rios, e nadando contra a corrente, passam a viver em
água doce. O meixão é cobiçado por restaurantes, e sua pesca excessiva
em países como Portugal compete pau a pau com a cocaína na longa lista
de ameaças às enguias.
As enguias
ainda passarão por um estágio – chamado “enguia-amarela” – até estarem
prontas para se reproduzir. Neste ponto, se tornam enguias prateadas,
adultas e com quase um metro de comprimento, e começam a acumular
reservas de gordura para aguentar a longa viagem de volta para o
Atlântico, onde deixarão os ovos. É aí que os músculos se tornam tão
importantes: elas precisam voltar para o mar de Sargaços em um pique só,
sem parar sequer para comer. Chegando lá, morrem logo após a
reprodução, fechando o ciclo.
Os
pesquisadores afirmam que ainda são necessários mais estudos para
descobrir o quanto a cocaína realmente afeta as enguias em rios reais,
fora do ambiente experimental – e por que a droga é tão nociva para o
organismo desses animais em particular. As perspectivas, porém, não são
animadoras. Afinal, além de substâncias ilícitas, a água também tende a
estar contaminada com pequenas concentrações de metais pesados,
pesticidas e antibióticos. Um coquetel de porcarias sutis que não dá
espaço para otimismo.
Fonte: Exame
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