Após 20 anos na selva, rebelde das Farc abandona fuzil e vê iphone pela primeira vez
“Quer ver minha
arma?” pergunta Yurluey Mendoza depois de meia hora de conversa. Entre
os guerrilheiros, esse seria o equivalente a um convite para entrar e
tomar um café. Estávamos no interior da Colômbia, controlado pelos
rebeldes, e viemos para aquela que foi anunciada como última reunião das
Farc.
Muitos, como Yurluey, estão se preparando para voltar ao
mundo moderno. Passaram anos vagando pelas montanhas e florestas
colombianas, tomando banho nos rios e dormindo em acampamentos
improvisados. Conversar com Yurluey é como encontrar alguém que saiu de
uma máquina do tempo. Ela nunca usou a internet, nunca viu o oceano,
nunca foi ao cinema nem andou de bicicleta.
Eu disse a ela que
queria conversar com alguém que tivesse passado a vida toda combatendo
na selva. Não um dos soldados mais jovens. Ela fechou a cara. “Acha que
sou tão velha?”
Yurluey, nome de guerra pelo qual ela é conhecida
por todos os “camaradas” rebeldes, se juntou às Farc quando tinha 14
anos, “uns 20 anos atrás”, disse. Ela viajou de helicóptero pela
primeira vez há poucos dias. Foi transportada pela Cruz Vermelha por via
aérea para a reunião das Farc. Quando ela embarcou com outros
combatentes, a tripulação entregou a eles protetores de ouvido, e um dos
guerrilheiros abriu a embalagem e colocou um deles na boca, pensando
serem balas.
Ela esteve na cidade grande apenas uma vez, depois
que uma bomba dilacerou seu pé, deixando-a quase aleijada. Ela saiu da
mata com uma identidade falsa, e rumou para a capital, Bogotá, num
ônibus, portando um envelope de dinheiro para um cirurgião ortopédico.
“Sabe
como é viver 20 anos em guerra?”, perguntou. Respondi que certamente
não sabia. “É difícil”, disse. “Muito difícil.” Yurluey, que faz parte
dos cerca de 6 mil combatentes das Farc, era membro da coluna Teófilo
Forero, temida e respeitada divisão rebelde ligada a alguns dos piores
episódios de violência da guerra. Na coxa direita, uma cicatriz de
combate, quando uma bala errou por pouco o osso. O tímpano direito foi
estourado em outro bombardeio, um dos seis aos quais ela sobreviveu.
Chegou
a passar vários dias sem comida, disse: “Há momentos em que não
conseguimos mais andar por causa das bolhas, e a mochila machuca as
costas. Há momentos em que passamos por cima dos corpos de camaradas
caídos a quem amamos como irmãos”.
Como muitos guerrilheiros, ela
fala usando termos recebidos da doutrinação. Os inimigos das Farc são “a
oligarquia”, os Estados Unidos são “o império”, e o exército
guerrilheiro é “o movimento”.
No acampamento rebelde, a cama dela
era um colchão feito de lama e gravetos, amaciado com grama seca sob uma
camada de plástico preto. Nas estacas que serviam de cabeceira pendia
uma submetralhadora. No cinto, uma pistola 9mm israelense envolta em
celofane.
Ela me entregou o fuzil, desgastado e oleoso. Mostrei a
ela o iPhone 6. Disse que o aparelho é capaz de tirar fotos e vídeos e
mandá-los para todo o mundo. Também funciona como lanterna, bússola e
mapa. Ela manteve o olhar fixo na tela por alguns instantes. “São tantas
as novidades que terei de conhecer”, disse.
Perguntei se todo o
sofrimento enfrentado valeu a pena. O acordo de paz não inclui nenhuma
das abrangentes e revolucionárias mudanças pelas quais as Farc lutaram
por tanto tempo. Mas Yurluey disse que ajudou na conquista de uma
vitória, ainda que esta seja apenas a promessa de plenos direitos
políticos feita por um governo no qual ela jamais confiou. Ela parecia
cansada, mas não arrependida.
“Fazemos isso porque dizemos a nós
mesmos que o sacrifício vale a pena”, disse ela. “Para que algo nesse
país mude.” Em questão de semanas, se o acordo de paz for aprovado no
plebiscito de amanhã, Yurluey e os demais guerrilheiros das Farc
começarão a entregar suas armas.
Yurluey disse que será difícil se
separar da metralhadora. “Essa arma me protegeu por tanto tempo”,
disse. “Mas se eles de fato abrirem para nós um espaço na política não
precisarei mais dela.”
Estadão
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