Ayres Britto: reforma política pode virar ‘cheque em branco’
Alessandra Duarte
RIO — Um plebiscito para tratar da reforma política — como foi
defendido esta semana pelo governo federal — pode fazer com que a
população aprove propostas que podem acabar sendo desvirtuadas depois,
ao chegarem ao Congresso, alertam juristas e pesquisadores do Direito. O
ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Ayres Britto afirma que
seria como a população dar um “cheque em branco” aos parlamentares.
Para um tema amplo e árido como a reforma política, poderia ser pensado
um outro instrumento de consulta popular, o referendo, no qual, em vez
de aprovar ou não uma proposta que depois iria ao Congresso, a população
votaria sobre pontos que já teriam sido discutidos e definidos pela
Câmara e pelo Senado, defende também o professor Gustavo Binenbojm.
No
entanto, também o modelo do referendo pode trazer um risco: o fato de
que, como a população votaria se quer ou não um projeto já aprovado no
Congresso, e como as perguntas do referendo não poderiam trazer todos os
detalhes desse projeto, a população poderia acabar ratificando algo sem
conhecer todos os detalhes do que foi votado no Congresso. Seja
referendo ou plebiscito, as perguntas que serão feitas à população
também precisam ser alvo de debate, ressalta o professor Ivar A.
Hartmann.
Gustavo Binenbojm, professor da faculdade de direito da Uerj:
O
plebiscito é um instrumento de consulta popular que pressupõe perguntas
sobre assuntos muito específicos, sobre os quais a população teria de
ter um entendimento claro, quando a reforma política é um tema muito
amplo. Por isso, pela natureza complexa desse tema, o instrumento mais
adequado de consulta à população seria o referendo. Primeiro, o
Congresso conduz uma discussão sobre os diversos pontos da reforma
política, e vota um projeto sobre isso. Então, a legitimação popular a
esse projeto viria depois, por meio do referendo; o projeto ou proposta
aprovado preveria que aquele texto só entraria em vigor após essa
legitimação da consulta popular.
Se for uma consulta
plebiscitária, por outro lado, haveria brechas para serem preenchidas
depois pelo Congresso, porque as perguntas necessariamente seriam mais
generalistas, não abrangeriam todos os detalhes que cada ponto da
reforma política tem. No plebiscito, se for uma pergunta muito
específica, corre o risco de a pessoa não entender o que está sendo
perguntado; se for muito genérica, seriam deixadas essas brechas para o
Congresso decidir depois, e ele poderia desvirtuar o que foi aprovado
antes pela população.
Ayres Britto, ex-ministro e ex-presidente do STF:
De
acordo com a Constituição, a soberania do povo pode ser exercida pelo
voto secreto universal, ou mediante lei, e aí caberiam três formas: o
referendo, o plebiscito e um projeto de iniciativa popular. Eu prefiro o
referendo, onde o Congresso prepara um projeto de lei ou PEC, discute,
delibera, e depois o que for aprovado é submetido à população,
dependendo, para entrar em vigor, desse endosso, desse aval do povo. O
povo votaria já sabendo do que se trata. O Congresso já fez seu papel
antes. O conteúdo está ali, não será uma surpresa que virá depois que
tiver sido aprovada pela população, como no plebiscito. E as perguntas
precisam ser claras, com base na vida vivida das pessoas, não da vida
pensada.
No plebiscito, o povo diz se concorda ou não com pontos
da reforma política, responde a perguntas que são alternativas radicais,
porque são mutuamente excludentes: quero isso ou não, aprovo aquilo ou
não. Mas, quando o que foi aprovado chegar ao Congresso, o projeto que o
Congresso vai elaborar e votar pode mudar alguma coisa. É dar cheque em
branco a ele. O plebiscito é menos confiável, porque é menos provável
que o teor da vontade popular seja totalmente acatado depois pelo
Congresso.
Ivar A. Hartmann, professor da FGV Direito Rio:
Seja
plebiscito ou referendo, o principal problema é a formulação das
perguntas que serão feitas à população. Podemos até dizer que,
dependendo das perguntas, o resultado pode ser um ou outro; a definição
das perguntas já carrega um ou outro resultado. Se for uma consulta por
referendo, seria apresentada à população uma lista de itens tirados do
projeto aprovado no Congresso, e algumas coisas poderiam entrar
embutidas ali, já que as perguntas não poderiam trazer todos os detalhes
do projeto aprovado. As pessoas poderiam acabar votando sobre o todo, e
detalhes sobre os quais a população não votou acabariam entrando de
contrabando. Por isso, vejo mais desvantagens no referendo do que no
plebiscito.
De qualquer forma, sendo referendo ou plebiscito, vejo
que a formulação das perguntas é o maior desafio. Além de ser feita uma
grande campanha de divulgação das propostas pelo governo e pela
imprensa, as próprias perguntas, antes de serem levadas para votação da
população por plebiscito ou referendo, devem ser submetidas a discussões
e consultas: ser alvo, no mínimo, de audiências públicas e, mais que
isso, ser colocada à disposição para consulta na internet. A formulação
das perguntas deve ser aberta a comentários e consultas mais de uma vez,
nos moldes do que ocorreu com a formulação do marco civil da internet,
por exemplo.
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