Vladimir Putin formaliza em Pequim entrada na Guerra Fria 2.0 ao lado da China contra os Estados Unidos
Putin tem cerca de 130 mil homens mobilizados em torno das fronteiras ucranianas
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IGOR GIELOW - SÃO
PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Os líderes da China e da Rússia formalizaram
nesta sexta-feira (04) uma aliança que vinha ganhando corpo nos últimos
anos contra as políticas ocidentais personificadas na agenda dos Estados
Unidos, apontada como "abordagem ideologizada da Guerra Fria".
Assim,
Xi Jinping e Vladimir Putin concordaram em um comunicado em denunciar a
expansão da Otan, a aliança militar ocidental, que está no cerne da
grave crise em curso na Ucrânia, e também os pactos militares americanos
na região do Indo-Pacífico.
Esses são os exemplos
mais vistosos, mas não únicos, do texto de 5.300 palavras em russo
divulgado pelo Kremlin, do que ambos os líderes chamaram de "amizade sem
limites" entre Pequim e Moscou. Algo "sem precedentes", na voz de
Putin.
Vistosos por exemplificar os principais problemas
estratégicos que afetam, respectivamente, o maior país do mundo que
formava o centro da União Soviética e a segunda maior economia global,
uma ditadura comunista adepta da economia de mercado.
"As
partes se opõem à expansão adicional da Otan e pedem que a aliança
abandone a abordagem ideologizada da Guerra Fria", diz o texto. Putin
tem cerca de 130 mil homens mobilizados em torno das fronteiras
ucranianas, um movimento que inicialmente parecia visar a resolver o
status do conflito no leste do país entre rebeldes pró-Rússia e Kiev.
A questão virou algo maior: a definição de uma paz europeia em termos aceitáveis para o Kremlin, o que não inclui a Ucrânia como parte da Otan e mesmo a presença de armas ofensivas em membros do Leste Europeu do clube. EUA e aliança rejeitaram o ultimato, e o impasse prossegue.
No
entorno chinês, a Guerra Fria 2.0 movida em reação à maior
assertividade de Xi já causou conflitos diversos com os EUA: guerra
comercial e tarifária, disputa sobre a autonomia de Hong Kong,
provocações nas rotas marinhas que Pequim considera suas e a ameaça da
China de tomar Taiwan.
"As
partes se opõem à formação de estruturas de blocos fechados e campos
opostos na região da Ásia-Pacífico e permanecem altamente vigilantes
sobre o impacto negativo da estratégia americana no Indo-Pacífico para a
estabilidade e paz na região", diz o texto.
No ano passado, o
governo de Joe Biden formalizou um pacto militar com Austrália e Reino
Unido e reavivou a aliança Quad (com australianos, japoneses e indianos)
contra a China.
Se alguém tinha dúvida acerca do afinamento
entre Xi e Putin, os líderes resolveram desenhar suas intenções. Elas
incluem esforços conjuntos contra "revoluções coloridas", o nome
genérico e de assimilação midiática fácil àquilo que Moscou chama de
golpes para derrubar governos pró-Kremlin na antiga periferia soviética.
Elas
ocorreram em locais como Ucrânia e Geórgia e não acabaram bem de todo
modo. A China acusa os EUA exatamente da mesma coisa ao patrocinar os
movimentos pró-democracia de Hong Kong, que foram esmagados com mão de
ferro após a revolta de 2019, e o governo taiwanês -na ilha que Xi chama
de sua, incursões aéreas com aviões militares chineses são eventos
semanais.
O
encontro de Xi e Putin ocorreu antes da abertura dos Jogos Olímpicos de
Inverno, em Pequim, evento boicotado diplomaticamente pelo Ocidente.
Pouco mais de 20 líderes participarão da abertura, mas o russo é a
estrela. Assim, o governo fortemente autocrático russo e a ditadura
chinesa dão as mãos oficialmente. Não há menção no documento a aspectos
práticos já em curso, como a crescente cooperação militar entre as
potências e os grandes projetos de energia.
Eles são a chave e também
o limite da associação. Do ponto de vista militar, Rússia e China são
rivais históricos, e seria surpreendente se chegassem a uma aliança
formal, integral, como por exemplo a que existe entre Moscou e a
ditadura da Belarus.
Economicamente, a deferência política de
Xi a Putin embute o risco percebido em Moscou de que a Rússia pode se
tornar uma província energética da China, ofertando gás natural barato
por meio de um projeto de US$ 400 bilhões chamado Força da Sibéria - o
segundo gasoduto da rede deve ser anunciado logo.
Para o
russo, contudo, é uma saída única. Se a pressão americana sobre países
como a Alemanha - que está adiando a abertura de um novo gasoduto a
ligá-la diretamente à Rússia - ou uma ruptura devido a uma guerra na
Ucrânia ocorrerem, o mercado europeu pode se fechar ao gás de Putin.
A
China, cujo consumo anual do produto deve ultrapassar o de toda a
Europa até o fim da década, pode oferecer uma linha vital para a
sobrevivência desse pedaço central da economia russa, que de resto tem
enfrentado bem as sanções que se abatem sobre ela desde que Putin anexou
a Crimeia, em 2014.
Naquele ano, um arremedo de "revolução
colorida", mais violento e menos romântico que as versões dos anos 2000,
derrubou o governo pró-Kremlin de Kiev. A anexação e o fomento à guerra
civil no leste ucraniano foram as respostas imediatas de Moscou, que
depois participou de um cessar-fogo frágil que agora Putin quer ver
implementado como plano de paz.
O
encontro de ambos foi altamente coreografado e, apesar de ambos os
líderes serem conhecidos pelos cuidados extremos para não contrair
Covid-19, não houve máscaras ou distanciamento. Trata-se da primeira
reunião deles desde a pandemia de coronavírus, e a 38ª desde que Xi
assumiu, em 2012 -Putin está no poder desde 9 de agosto de 1999, quando
virou premiê pela primeira vez.
No texto divulgado, um trecho
atribuído a Xi resume diversos discursos feitos pelo chinês nos últimos
anos, no qual discorre sobre sua visão particular de democracia.
"Estamos trabalhando juntos para trazer à vida o verdadeiro
multilateralismo. Defendendo o real espírito da democracia, servindo
como uma fundação confiável para unir o mundo nas próximas crises, e
defendendo a igualdade."
A visão, contraditória a olhos
ocidentais por partir do líder de uma ditadura, é compartilhada por
Putin. Ambos denunciam a defesa de valores democráticos feita pelos EUA
como hipócrita, já que há exemplos de sobra (Iraque, Afeganistão) de que
ela pode ser forçada por meios militares, gerando tragédias.
Os
americanos não comentaram oficialmente a declaração de chineses e
russos. O diplomata Daniel Kritenbrink, responsável por assuntos ligados
à Ásia no Departamento de Estado, se limitou a dizer que Xi "deveria
ter sido o líder de uma potência responsável" e usado o encontro desta
sexta para ajudar a reduzir as tensões com Kiev.
A principal
diferença entre Pequim e Moscou até aqui é a abordagem externa. Xi se
vale de instrumentos econômicos, enquanto Putin não hesita em flexionar
musculatura militar: nos últimos anos, suas tropas estiveram em guerras
ou intervenções em locais como Geórgia, Ucrânia, Síria, Líbia,
Azerbaijão e Cazaquistão. Moscou ainda tem um arsenal nuclear rival ao
americano, enquanto a China prepara uma expansão no campo.
Do lado ocidental, o exemplo
cotidiano da repressão nos dois rivais é suficiente para fazer a
acusação de hipocrisia no sentido contrário. A Guerra Fria 2.0, o embate
que define geopoliticamente o século 21, acaba de ganhar um terceiro
participante oficialmente, vindo da primeira encarnação do conflito.
Notícias ao Minuto
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