segunda-feira, 26 de julho de 2021

Conheça a história de Anayde Beiriz, paraibana marcada pelo amor

História 'oculta' de João Pessoa tem Anayde Beiriz como sinônimo de força, ousadia e poesia

Por Dani Fechine, G1 PB

Fotos de Anayde Beiriz guardadas pela sobrinha dela, Ialmita Beiriz — Foto: Dani Fechine/G1
Fotos de Anayde Beiriz guardadas pela sobrinha dela, Ialmita Beiriz — Foto: Dani Fechine/G1

Mulher, jovem, cabelos curtos e um talento infindável para poesia. Anayde Beiriz nasceu em João Pessoa e deu para esta cidade o nome de uma das pioneiras no Ensino de Jovens e Adultos (EJA) na Paraíba. Além disso, foi melhor aluna na Escola Normal, onde se formou em 1922, aos 17 anos. O que Anayde deixou de legado para a literatura está, principalmente, na sua escrita libertária e, antes de tudo, na sua força e ousadia de ser quem era. O acervo, no entanto, quase não existe. A memória sobre Anayde foi negligenciada, desde a sua morte.

A história de Anayde é contada apenas até a sua juventude e, ainda assim, de forma muito escassa. Os registros e recordações da poetisa estão dentro de uma caixa verde, na casa de dona Ialmita Beiriz, de 82 anos, sobrinha de Anayde. Dentro do acervo, é possível encontrar uma mulher romântica, de força e de coragem. A cópia do seu diploma mostra o quanto estava à frente do seu tempo. Segundo a professora Beatriz Xavier, que escreveu sobre a poetisa, foi uma mulher que abriu “caminho para a revolução na literatura, que tem estreita relação com a revolução na política”.

Depois de se formar, ela foi professora em uma colônia de pescadores em Cabedelo. Seus textos com características do modernismo foram publicados enquanto colaboradora em periódicos como a “Revista da Cidade”, de Recife, e a Era Nova, da Paraíba. A professora doutora Alômia Abrantes lembra que em seus poemas, Anayde reflete, por exemplo, “sobre o ‘destino’ das mulheres que culminava com o casamento, e em outras passagens, embora muito pontual, sobre o direito ao sufrágio feminino, mostrando convergência com a luta das sufragistas”, explicou.

Anayde Beiriz no ano de 1929, um ano antes da sua morte — Foto: Dani Fechine/G1

Anayde Beiriz no ano de 1929, um ano antes da sua morte — Foto: Dani Fechine/G1

Mas é na história das mulheres que Anayde Beiriz se faz presente com ainda mais força. Na época em que viveu (1905-1930) o feminismo começava a ganhar representatividade no Brasil. A própria construção estética da professora era capaz de revelar a sua força. O corte de cabelo ganhou destaque quando pareceu novidade um cabelo tão curto, em modelo francês, num corpo de uma mulher cujo apelido era “pantera dos olhos dormentes”, devido aos olhos negros.

As fotos guardadas por Ialmita mostram que Anayde gostava de se vestir com elegância. Nas imagens, ela sempre demonstra certa seriedade. “Importa para nós reconhecer que Anayde delineou as atitudes que construíam seu caráter e personalidade baseada em um conjunto de códigos, que demarcam o seu posicionamento de resistência diante do seu meio”, escreveu Beatriz Xavier.

Anayde ganhou um concurso de beleza, em 1925, promovido pelo “Correio da Manhã”. Sua beleza se destacava, mas seus ideais progressistas e seu comportamento, que iam contra o pensamento conservador da década de 20, também eram uma marca pessoal. Embora envolvida em uma trama política, segundo Ialmita, pouco se falava sobre o assunto na família. Mas Anayde já mostrava o desprazer de não poder representar a própria voz em uma eleição.

Capa da Revista Era Nova, com Anayde Beiriz — Foto: Dani Fechine/G1

Capa da Revista Era Nova, com Anayde Beiriz — Foto: Dani Fechine/G1

Por isso, ia às ruas e também mostrava força nas opiniões que não deixava se esconder. Isso é mostrado nas cenas do filme "Parayba mulher macho", da cineasta Tizuka Yamazaki. A atriz Tânia Alves interpretava Anayde, com um belo sorriso no rosto e uma liberdade que não cabia nos 90 minutos.

A professora doutora Alômia Abrantes revisitou a película na sua tese de doutorado. Embora tenha uma riqueza histórica tamanha para o pouco acervo que sobrou de Anayde, o filme ainda é alvo de polêmicas e contestações sobre a real história da escritora.

Para Alômia, o que Anayde representa no filme é muito do que ela também foi em vida. Anayde Beiriz é um corpo-manifesto. "Ela é construída como a protagonista de um jogo político em que se reivindica para as mulheres o direito não só de amar quem escolher, de fazer sexo e sentir prazer, mas de expressar essas escolhas, de publicizá-las e, desse modo, de ocupar espaços, inclusive do seu próprio corpo", escreveu Alômia.

Caderno de cartas em que Anayde Beiriz guardava as correspondências trocadas com Heriberto — Foto: Dani Fechine/G1

Caderno de cartas em que Anayde Beiriz guardava as correspondências trocadas com Heriberto — Foto: Dani Fechine/G1

Anayde marcada pelo amor

As principais referências sobre Anayde marcam o ano de 1930. No entanto, antes da sua relação com João Dantas, Anayde se apaixonou por outro rapaz de nome Heriberto Paiva, a quem chamava, em cartas, de amor, maridinho, querido, e trocava com ele palavras que se misturavam em romance.

Em uma das recordações guardadas por Imalmita está um caderno velho, de cor marrom, com folhas já desgastadas. Nas páginas, uma letra curvada, mas claramente envolvida com amor. Naquelas páginas, Anayde escrevia as cartas que recebia de “Heri” e também aquelas que enviava. O caderno guarda até a hora do adeus, quando Heriberto se despede da amada e encerram o relacionamento.

Depois disso, Anayde iniciou um romance com João Dantas, em 1928. Um advogado solteiro, que era contra os projetos políticos de João Pessoa e, por isso, passou a ser seu opositor. Na cidade de Princesa Isabel cultivavam-se as medidas coronelistas, através do chefe político, o fazendeiro José Pereira.

Devido aos fortes conflitos instalados entre as cidades de Parahyba (nomenclatura da capital à época) e Princesa, João Dantas foge para Recife, Pernambuco. A partir de então, ele passa a se corresponder com Anayde por cartas.

Última carta de Heriberto para Anayde Beiriz — Foto: Dani Fechine/G1
Última carta de Heriberto para Anayde Beiriz — Foto: Dani Fechine/G1

Para evitar uma revolta na capital, João Pessoa mandou que a casa de opositores fosse invadida, entre elas, a de João Dantas. Nessa invasão, todas as correspondências trocadas com Anayde Beiriz foram encontradas e publicadas na imprensa. Quando soube da divulgação, Anayde foi até Recife informar a João Dantas o que havia acontecido. João Pessoa também estava na cidade. No dia 26 de julho de 1930, portanto, João Dantas foi ao encontro de João Pessoa na confeitaria Glória, no Recife, e o matou.

“Temos mais referências sobre ela em 1930 e posteriormente, em virtude dos acontecimentos que culminaram com a morte de João Pessoa e passaram a alinhá-la com os interesses de João Dantas, traçando para ela, através dos relatos de memorialistas, um perfil que oscila entre cúmplice das forças que levaram ao assassinato de João Pessoa, que a colocam reiteradamente como amante de João Dantas, ou vítima destas relações de poder”, explica Alômia Abrantes.

Anayde Beiriz e João Dantas, em fotos guardadas pela sobrinha da poetisa — Foto: Dani Fechine/G1

Anayde Beiriz e João Dantas, em fotos guardadas pela sobrinha da poetisa — Foto: Dani Fechine/G1

Uma Anayde superior aos casos amorosos

Embora muito ligada ao episódio entre João Dantas e João Pessoa, principalmente em tom de responsabilização, as características mais marcantes de Anayde estão na inteligência, na ousadia vivida através da escrita, por cartas e poemas, e da corporeidade, com cabelos curtos e roupas da moda, que demonstram uma diferenciação estética. Além, claro, da paixão e da intensidade com que sua vida foi marcada pelo desejo de amor.

Para Ialmita Beiriz, sobrinha de Anayde, é difícil, como parente, falar da escritora. Baseada em depoimentos quem conviveu com Anayde e também nas memórias guardadas da história de Anayde, Ialmita conta que o perfil da tia era de uma vivacidade que marcava o seu espírito. “Realmente ultrapassou alguns limites sociais, de comportamento muito individual, visão larga, ia além de sua época, prevendo a emancipação da mulher no futuro”, diz. “Ela gostava de conversar com as pessoas mais velhas”, completa.

Ialmita Beiriz, sobrinha de Anayde Beiriz — Foto: Dani Fechine/G1

Ialmita Beiriz, sobrinha de Anayde Beiriz — Foto: Dani Fechine/G1

Lembra que a mulher escandalosa que vestem em Anayde não era exatamente quem ela era, de fato. “Tenho 14 retratos dela, não tem nenhum com decote”, faz questão de destacar.

Ialmita gosta de lembrar que, pela manhã, Anayde ensinava crianças. “O seu idealismo rompeu as rédeas do tempo”, declara. Ela diz que poderia falar muito mais, se algumas das memórias não tivessem sido perdidas ou levadas por outras pessoas.

Em 1928, Anayde Beiriz foi morar na Rua Santo Elias, no Centro de João Pessoa. A casa foi tombada e uma placa foi colocada em frente à residência, com informações sobre quem residiu no local. No entanto, o imóvel se transformou em uma loja e placa também já não se encontra mais.

Sobre os relacionamentos de Anayde, Ialmita é enfática em dizer: “sou fã de João Dantas”. Como muitos que tiveram a oportunidade se debruçar sobre as cartas de amor da professora, Ialmita fala com segurança sobre o que leu e conheceu dessas histórias. Embora as cartas com Heriberto estejam vivas no acervo, o namoro com João Dantas foi mais duradouro, mais firme e maduro.

Anayde em quadrinhos

Anayde foi personagem de alguns livros, entre eles clássicos da sua história, nascidos pelas mãos de Marcus Aranha e Jose Joffily. Dentro do projeto Primeira Leitura, com apoio da Energisa, a professora, poetisa, escritora e feminista ganhou vida em quadrinhos. A proposta é voltada ao resgate histórico sobre a vida e obra de paraibanos que construíram ou constroem o universo desta terra e desta gente.

Página do livro Anayde Beiriz, em quadrinhos, por Sabrina Rafael Bezerra — Foto: Sabrina Rafael/Arquivo Pessoal
Página do livro Anayde Beiriz, em quadrinhos, por Sabrina Rafael Bezerra — Foto: Sabrina Rafael/Arquivo Pessoal

O 10º volume contou a história de Anayde Beiriz, com roteiro da historiadora Sabrina Rafael Bezerra, de 29 anos. Na época, ela estava concluindo o mestrado na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e escrevendo uma dissertação sobre mulheres na Paraíba. A edição foi uma sugestão do dono da editora. Anayde Beiriz, segundo Sabrina, foi a primeira personagem feminina da coleção.

“Quando decidimos fazer o livro, aprofundei minhas pesquisas, até porque queríamos uma proposta nova. Queria trazer Anayde antes de João Dantas”, explica Sabrina. Por isso, o livro aborda com afinco o namoro entre Heriberto e Anayde.

“Os estereótipos escondem o potencial dela, muito inteligente, batalhadora, que tinha uma produção literária séria, que fez parte de grupos literários na Paraíba, que fez parte da construção da literatura paraibana”, enfatiza a historiadora.

Naturalmente, a história de Anayde invadiu a de Sabrina, no entanto, foi mais cedo do que esperava. Na graduação, quando foi aluna da professora Alômia, adentrou na vida da poetisa e fez desse momento um estágio importante da sua passagem pela universidade. “Ela tocou bastante, uma mulher forte e resistente, mas pouco reconhecida. Eu nutri uma admiração muito forte por ela desde o princípio”, esclarece.

Ialmita Beiriz segura a foto preferida da tia, Anayde Beiriz — Foto: Dani Fechine/G1

Ialmita Beiriz segura a foto preferida da tia, Anayde Beiriz — Foto: Dani Fechine/G1

A inspiração para escrever o livro, mesmo sem nunca ter feito um roteiro, saiu da própria coragem de Anayde. “Ela não tinha medo de ser e de assumir para a sociedade essa pessoa que ela era, mesmo que aquilo fosse um choque para alguns e até tornasse ela uma figura bem apedrejada”, conta Sabrina.

Anayde já se destacava antes da relação com João Dantas que, na verdade, trouxe um capítulo obscuro para sua história. “Admiro pela ousadia e coragem de ser quem ela era em uma sociedade patriarcal, repressora, machista e que não permitia a liberdade da mulher”, disse.

“Ela chocou por se permitir ter essa liberdade que não era permitida naquela época. Anayde merece esse destaque”, disse Sabrina. 
Casa de Anayde Beiriz foi transformada em estabelecimento comercial, na rua Santa Elias, em João Pessoa — Foto: Dani Fechine/G1
Casa de Anayde Beiriz foi transformada em estabelecimento comercial, na rua Santa Elias, em João Pessoa — Foto: Dani Fechine/G1

Anayde como lugar de memória

A história de Anayde se complementa às de outras mulheres paraibanas da sua época. Está inserida em uma sociedade que vivia intensamente o conflito entre a preservação das tradições e o medo e ansiedade que os tempos modernos pareciam trazer. “Dentre estes, o medo da emancipação feminina, o receio de que ao ocuparem espaços que antes lhes eram negados, as mulheres ameaçassem a ordem familiar, as normativas patriarcais”, explica Alômia.

Anayde traz à tona a reflexão das relações de poder que operam nas questões de gênero. “O que se produziu sobre ela, por muito tempo, fosse para diminuí-la ou para silenciá-la como parte da nossa história, traz as marcas do olhar colonizador do masculino sobre o feminino, e problematizar isso ensina muito ao nosso tempo”, enfatiza a professora Alômia.

Ilustração de Anayde Beiriz na sala de estar da sobrinha, em João Pessoa — Foto: Dani Fechine/G1
Ilustração de Anayde Beiriz na sala de estar da sobrinha, em João Pessoa — Foto: Dani Fechine/G1

Conhecer a história de Anayde Beiriz, colocá-la em um lugar de memória e de patrimônio, de certa forma, provoca a importância de fazer lembrar o conhecimento sobre a história de mulheres, não só na Paraíba, mas no Brasil inteiro, e do quanto essa pesquisa ainda permanece escassa.

“Aguça o interesse por saber dos esforços de muitas mulheres que na Paraíba, no início do século XX, vislumbravam outros lugares sociais para as mulheres e alinhavam-se com o ideário feminista, embora nem sempre assumissem isso totalmente. Mas, sobretudo, é importante porque sua história possibilita refletir sobre os silenciamentos, discriminações e violências, simbólicas inclusive, que perpassam a história das relações de gênero em nosso país”, diz Alômia.

Anayde Beiriz, após a morte de João Dantas, em 1930, sabendo que a polícia estava à sua procura, se refugiou no Asilo Bom Pastos, no Recife. As freiras contam que quando ela chegou ao local já havia ingerido veneno, no dia 19 de outubro. Segundo a carta da Madre Superiora enviada à família, ela sofreu muito. Morreu rezando o Pai Nosso, no dia 22 de outubro de 1930. 

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