A improvável história de Jackson do Pandeiro, o menino negro e pobre que gravaria cerca de 140 discos
Jackson do Pandeiro, nome artístico de José Gomes Filho, nasceu em Alagoa Grande, na Paraíba, e completaria 100 anos no próximo 31 de agosto - Foto: Mario Luiz Thompson / Divulgação |
José
Gomes Filho foi de tudo um pouco. Zé, Jack, José Jackson e Zé Jack, por
conta do fascínio pelos filmes de faroeste, cujo ídolo era o ator Jack
Perrin. Mas o que esse homem miúdo de bigode estreito e mãos
malabaristas melhor soube ser foi Jackson do Pandeiro. O Rei do Ritmo,
que chegaria aos 100 anos neste sábado, dia 31, começou a carreira
pelas beiradas, acompanhando a mãe Flora Mourão em rodas de coco,
morando em casa de taipa, nos arredores de um engenho do brejo
paraibano.
—
Jackson tinha tudo contra si. Um cara que foi alfabetizado aos 35 anos,
negro, pobre, em tese não teria condições de chegar aonde chegou —
analisa Fernando Moura, coautor da biografia “Jackson do Pandeiro: O Rei
do Ritmo”.
Debruçar-se sobre sua
discografia é ver um desfile de gêneros musicais, em seus quase 140
discos. Em 1953, estreia com um compacto com duas faixas que seriam hits
por longa temporada: “Forró em Limoeiro” e “Sebastiana”.
No mês de seu centenário, O Globo vai à Paraíba atrás da história e do legado do Rei do Ritmo, que gravou cerca de 140 discos
Embora seu nome esteja associado ao forró, o ritmo que o músico mais
gravou foi samba. Foram 117 músicas deste gênero, seguidas por rojão
(72), baião (42) e marcha (40), segundo pesquisa levantada por Sandrinho
Dupan, assistente de curadoria musical do Museu de Arte Popular
Paraibana (MAPP), em Campina Grande. Em 1964, por exemplo, lança o disco
“Coisas nossas” com uma sequência de afro-sambas, dois anos antes do
trabalho sincrético com o qual Vinicius de Moraes e Baden Powell,
acompanhados do Quarteto em Cy, dariam novos tons à MPB.
Desde
junho, o MAPP, mais conhecido como Museu dos 3 Pandeiros, abriga
“Jackson é 100, Jackson é Pop”, exposição que conta a história do músico
com fotografias, objetos como o pandeiro original e letras inéditas.
Ali perto, a Universidade Estadual da Paraíba guarda raridades como a
letra “Marco emocional”, registrada com a caligrafia do próprio músico.
Em
Alagoa Grande, onde Jackson nasceu, a relação com o filho ilustre não é
simples. Ele parece ter sido apagado da lembrança daquela gente que
carrega uma certa mágoa pelo distanciamento do compositor. “Acho que faz
mais de 900 anos que eu saí de lá. Passei uma fome da bexiga, por isso
não quero voltar lá”, confessou no programa “Ensaio” em 1973.
Rei do Ritmo e do forró?
Lá,
o Memorial Jackson do Pandeiro, localizado em uma casa de 1898, guarda
fotos, capas de discos, os inconfundíveis chapéus e camisas estampadas,
jornais de Almira Castilho (a ex-esposa, morta em 2011) e um violão de
Jackson, assinado por Juscelino Kubitschek.
—
A gente está plantando Jackson na terra em que ele nasceu, a fim de que
ele floresça — explica Gabriele Nunes, monitora do espaço inaugurado há
uma década.
— Aproveitemos o
centenário e ouçamos mais Jackson do Pandeiro. É preciso ouvir o lado B,
o C e o Z de Jackson para que a gente tenha noção da importância dele —
diz o biógrafo Fernando Moura.
‘Invasão estrangeira’
Não foi uma carreira estável. No início dos anos 1970, ele se queixava
em entrevista ao GLOBO: “Não tem lugar pra trabalhar, tudo isso por
causa da invasão da música estrangeira”. Em 1976, o disco “É sucesso”
traz faixas como ““Iê, iê, iê no Cariri”.
—
Jackson tocava no pandeiro dele qualquer música dos Beatles, fazendo na
base um coco, e provava que, assim como o reggae, o coco tem essa
capacidade de ter alma própria — descreve o pernambucano Lenine, que
compôs “Jack soul brasileiro” em homenagem (e sampleando) o mestre.
Jackson
chegou a ir da fama ao esquecimento, mas nunca saiu do repertório de
artistas consagrados, de Gilberto Gil a Zeca Pagodinho. Paradoxalmente,
os mesmos cabeludos dos anos 1970 que pareciam ameaçar a música regional
com suas novas batidas o trariam de volta à cena musical. A mistura
promovida pela Tropicália ressuscitava o paraibano em gravações como a
versão jazzística que Gal Costa gravou para “Sebastiana”, em 1969, e a
versão “bosseada” de “Chiclete com banana”, no antológico “Expresso
2222” que Gil lançou em 1972.
O
tempero extra viria naquele ano, quando Alceu Valença e Geraldo Azevedo
bateram à porta de Jackson, para convidá-lo para defender com eles
“Papagaio do futuro”, no Festival da Canção.
Cultura Racional
Naquela década, um reformado Jackson do Pandeiro compõe samba e forró inspirado na Cultura Racional. É dessa experiência curta, de 1973 a 1978, que o músico grava faixas como “Mundo de paz e amor” e “Alegria minha gente”, cuja capa tem Jackson com um colar com a imagem que ilustra a série de livros “Universo em desencanto” que fundamentam a seita, fundada pelo médium Manoel Jacintho Coelho e que também inspiraria Tim Maia.
Naquela década, um reformado Jackson do Pandeiro compõe samba e forró inspirado na Cultura Racional. É dessa experiência curta, de 1973 a 1978, que o músico grava faixas como “Mundo de paz e amor” e “Alegria minha gente”, cuja capa tem Jackson com um colar com a imagem que ilustra a série de livros “Universo em desencanto” que fundamentam a seita, fundada pelo médium Manoel Jacintho Coelho e que também inspiraria Tim Maia.
— Não são beatas
nem religiosas. São músicas que falam de questões universais com que
todo mundo se identifica, de paz, amor e consciência — analisa o músico
Arthur Pessoa, líder da Cabruêra, banda que, em 2019, toca com Os Fulano
o lado B de Jackson, em um repertório só com canções da temporada
Racional e músicas inspiradas nos terreiros de candomblé que o
compositor frequentou no Recife, como o batuque “Pai Orixá”.
Mas
Jackson gostava mesmo era de mulher. Desde o início, sua obra foi
marcada por algumas canções impensáveis para a época, como mudança de
sexo, em pleno início da década de 1960 (o forró “A mulher que virou
homem” é considerado uma das primeiras músicas brasileiras a tratar do
assunto).
Cantou não só a mulher que
“topa parada” (“Forró em Limoeiro”, 1953) mas também a enalteceu em
faixas como “História de Lampião” (1977), em que defende que o Rei do
Cangaço deveria pagar pelo que fez no sertão, mas Maria Bonita, não.
Exceto
por um primeiro casamento forçado, a mulher sempre foi uma espécie de
arrimo em sua vida pessoal e profissional. Almira Castilho, elegante e
bem formada, foi a mulher que lhe ensinou as letras; Neuza Flores, a
última esposa, é a ex-metalúrgica que largou tudo para acompanhar o
ídolo que viraria marido. A primeira esteve ao lado dele, em tempos de
sucesso e dinheiro rápido — apareceu em alguns dos nove filmes que ele
fez, por exemplo); a segunda foi a fisioterapeuta particular após um
acidente em 1968, e viu o Rei do Ritmo desaparecer dos palcos, aos
poucos.
Fonte: O Globo - Publicado por: Suedna Lima
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