Militarização na burocracia federal atinge segundo e terceiro escalões do governo Bolsonaro
Após a indicação para o comando de oito ministérios, presidente expande presença de integrantes das Forças Armadas; já são pelo menos 103 em diversos postos

© Marcos Corrêa/PR
O governo de Jair Bolsonaro
vai ampliar a militarização na máquina pública federal, com a entrega
para a Marinha de postos de comando nas superintendências de portos, no
Ibama e no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMbio). Após a nomeação para ministérios importantes, os militares
agora são chamados a ocupar também cargos no segundo e terceiro
escalões.
Trata-se de uma nova fase do movimento crescente de escolha de
oficiais da reserva das Forças Armadas para posições estratégicas e
setores historicamente envolvidos em denúncias de corrupção.
Levantamento feito pelo Estado contabiliza pelo menos 103 militares na
lista dos cargos comissionados de ministérios, bancos federais,
autarquias, institutos e estatais, entre elas a Petrobrás.
Segundo
analistas, fatores como o desgaste da classe política e uma estrutura
partidária ainda frágil do presidente Jair Bolsonaro permitem o avanço
dos militares na burocracia federal.
Na última semana, foram
escolhidos os almirantes da reserva da Marinha Francisco Antônio
Laranjeiras e Elis Triedler Öberg para comandarem os portos do Rio de
Janeiro e do Rio Grande do Norte, respectivamente. Para o cargo de
diretor-presidente da Companhia Docas de São Paulo, que controla o Porto
de Santos, o governo nomeou o engenheiro naval civil Casemiro Tércio
Carvalho. Ele, no entanto, terá a seu lado um militar da Marinha para
"sanear" o órgão e acabar com "entraves" burocráticos.
Em defesa
desse movimento do governo, um oficial do Alto Comando das Forças
Armadas disse que a escolha de militares para cargos de confiança tem
por objetivo conferir credibilidade aos postos com base em "um modo
eficiente de administrar", com "zelo pelo dinheiro público". Deputados
que procuram o governo para pedir cargos nos Estados relatam que recebem
de ministros um pedido: "Você tem um militar para indicar?"
'Verde-oliva'
Estudioso
da relação entre as Forças Armadas e a sociedade brasileira, o
cientista político Eliézer Rizzo de Oliveira afirmou que a participação
de dezenas de militares em um governo eleito democraticamente é uma
situação inédita no Brasil. E é resultado, segundo ele, da combinação
entre a descrença que abateu a classe política e a inexperiência
administrativa do novo presidente.
"É natural que ele queira se
apoiar em pessoas da área dele e que respondam a essa espécie de 'regime
civil com governo verde-oliva' que se instaurou no poder e tomou conta
da máquina pública", afirmou.
Ainda assim, para Oliveira, o
movimento atual não pode ser comparado a um aparelhamento da máquina
pública, a exemplo do que ocorreu nos governos do PT. A intenção agora,
diz, não seria a preservação do poder sindical ou partidário, mas a
gestão do governo. "O risco, neste caso, é o desprestígio das Forças
Armadas em caso de insucesso."
"Falar em aparelhamento me parece
prematuro. O partido do presidente não possui uma estrutura orgânica e
coesa. Há escassez de quadros. E, como o presidente não quer nomear
gente apadrinhada pelo sistema político, é legitimo, nesse contexto, se
servir de profissionais oriundos das Forças Armadas", afirmou o
cientista político Hussein Kalout, que atuou no governo de Michel Temer.
Portos
As
nomeações nos portos aumentaram a presença militar na pasta da
Infraestrutura. Até agora, o ministro Tarcísio Gomes de Freitas, um
ex-capitão do Exército, nomeou dez militares da reserva, incluindo a
chefia do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit).
Com histórico de irregularidades e denúncias de corrupção, o órgão foi
entregue ao general Antonio Leite dos Santos Filho.
Desde a
redemocratização nos anos 1980, a área portuária sempre foi controlada
pelo MDB. O ex-presidente Michel Temer enfrenta acusação por ter editado
um decreto que teria beneficiado uma empresa no Porto de Santos. Ele
nega.
Do quadro de reservas da Marinha também sairá o novo
superintendente do Ibama no Rio de Janeiro. O ministro do Meio Ambiente,
Ricardo Salles, escolheu o almirante Alexandre Dias para a vaga. O
maior número de militares está no Ministério de Ciência, Tecnologia,
Inovações e Comunicações - 13 no total. O ministro Marcos Pontes se
cercou de brigadeiros no seu gabinete e também escolheu nomes da reserva
da Aeronáutica para chefiar as secretarias de Políticas Digitais e de
Tecnologias Aplicadas.
Os militares abocanharam ainda cargos em
pastas sem conexão com a caserna. No Turismo, o ex-deputado Marcelo
Álvaro Antonio, do PSL, foi orientado pelo Planalto a nomear um militar
da Marinha para o posto de corregedor e um coronel do Exército para o
Departamento de Política e Ações Integradas.
Na gestão Bolsonaro,
oficiais terão como desafio gerir áreas que vão além daquelas mais
associadas a eles, como infraestrutura, ciência, tecnologia, mineração e
energia. Terão, por exemplo, de administrar de uma estatal responsável
por prestar serviços médicos ao Conselho Nacional de Educação, órgão que
atua na formulação e avaliação da política educacional.
Na prática, a lógica dos quartéis será testada no serviço público na atual administração federal.
'Convocação'
Como
não dispõem de um banco de dados de servidores para ocupar os cargos de
confiança, entre eles os chamados DAS (Direção e Assessoramento
Superior), a solução inicial encontrada pelo governo foi buscar
militares na reserva das Forças Armadas. "Quando precisamos substituir
inúmeras pessoas e trazer gente confiável, com capacidade técnica,
carreira ilibada é muito difícil", afirmou o ministro do Meio Ambiente,
Ricardo Salles.
Outra razão para a escolha dos militares, segundo o
ministro, é a dificuldade de atrair profissionais da iniciativa
privada, com a mesma qualificação, dispostos a receber salários que
variam de R$ 2,7 mil e R$ 16,9 mil, valores considerados baixos em
comparação aos pagos em cargos de direção.
Os militares da reserva
já têm um salário base e, no caso de voltarem a trabalhar, recebem
apenas uma complementação salarial. "É bom pra eles e é bom pra nós",
observou Salles.
O ministro nega que os militares estejam loteando
o governo. "Somos nós que pedimos as indicações e que eles venham. Não
são eles se impondo", afirmou. "Há uma gama enorme de cargos de
confiança, muito mal preenchidos, muitos deles aparelhados, ou com grau
de comportamento questionável."
Previdência
O
número poderá ser ampliado com a aprovação da reforma da Previdência.
Como revelou o Estado, o texto permite aos militares da reserva
exercerem atividades civis em qualquer órgão, mediante gratificação ou
abono. Hoje, só podem ser aproveitados em funções militares ou ocupar
cargos de confiança, o que limita o remanejamento.
Se as mudanças
forem aprovadas, eles poderão exercer funções na administração federal
sem ter de passar por concurso público. Isso aumentaria ainda mais o
contingente de militares dentro do governo - além do presidente
Bolsonaro e do vice-presidente Hamilton Mourão, há também oito ministros
com formação militar. Uma fonte da ala militar confirma que existe no
governo a intenção de ampliar o aproveitamento desse contingente de mais
de 150 mil reservistas.
O governo não fecha as portas para os
civis, mas busca neste grupo características que enxerga nos militares,
como conduta ética e capacidade técnica. "Preenchendo os requisitos não
tenho problema em receber indicações de governador, deputado, senador",
disse o ministro do Meio Ambiente. Em dezembro, a Justiça condenou
Salles por improbidade administrativa quando foi secretário estadual de
São Paulo. O ministro nega as acusações.
Em recente entrevista ao
Estado, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro-chefe da
Secretaria de Governo, disse ser contra dividir o governo entre civis e
militares. "A sociedade quer que você governe para ela de maneira limpa,
sem corrupção e que entregue o benefício no serviço público que ela
precisa. Quem está dirigindo, para ela não interessa. Interessa a
prestação do serviço público de qualidade e de maneira honesta",
observou.
Para o ministro, "a sociedade aceita perfeitamente bem" a
presença dos militares no governo. "Quem faz essa discriminação é
alguém interessado politicamente em fazer. Se a gente evitar viver
aqueles dez anos de escândalos diários é isso o que o pessoal quer. A
sociedade quer um governo limpo, transparente", disse.
3 perguntas para Hussein Kalout, cientista político e ex-secretário de Assuntos Estratégicos
1.
A oposição atacou os governos do PT por "aparelhar" a máquina pública.
Essa critica também vale para o governo Bolsonaro? Existe um
"aparelhamento militar" do governo?
O ângulo dessa
comparação precisa ser analisado sob um escopo mais abrangente. O PT
ficou 13 anos no poder e o governo Bolsonaro está há apenas dois meses
no poder. Portanto, a comparação não me parece justa. Falar em
aparelhamento me parece prematuro. O partido do presidente não possui
uma estrutura orgânica e coesa. Há escassez de quadros. E, como o
presidente não quer nomear gente apadrinhada pelo sistema político, é
legitimo, nesse contexto, se servir de profissionais oriundos das Forças
Armadas, provenientes de algumas das melhores instituições de ensino e
pesquisa do País. A chave dessa equação reside em duas avaliações, uma
quantitativa e a outra qualitativa. Primeiro, do universo dos servidores
nomeados, qual é a proporção de militares indicados? Não creio que seja
assim tão expressivo. E, segundo, as pessoas indicadas possuem a
formação, a competência e as qualificações necessárias? Temos que julgar
as pessoas pela sua capacidade e pelo seus resultados.
2. Em que medida a indicação dos militares serve ao propósito de recuperar a imagem das Forças Armadas junto à população?
A
instituição Forças Armadas já era bem avaliada pela população antes do
presidente Bolsonaro ser eleito. No fundo, é o presidente que está se
servindo da competência e do prestígio da instituição. É importante
lembrar que de Sarney à Dilma, o sistema político brasileiro tomou a
deliberada decisão de enfraquecer a instituição militar tracionando uma
falsa narrativa de que isso estava a serviço do fortalecimento da
democracia e do estado de direito. Nos EUA, na Rússia e na China é comum
indicar profissionais egressos das forças armadas para posições
estratégicas. Nós, no Brasil, precisamos quebrar esse estigma.
3.
O sentido de disciplina e pragmatismo dos militares será suficiente
para vencer a enorme burocracia que costuma emperrar da máquina pública
no Brasil?
É histórica a dificuldade de ministros de "transformar em realidade"
boa parte das suas ordens. O Estado foi capturado pelo corporativismo e
pelas corporações sindicais. Enquanto isso não for desmantelado, não há
como melhorar a gestão pública. Melhorar a eficiência da máquina e
racionalizar o seu funcionamento requer um esforço coletivo e reformas
estruturais. Enquanto o interesse político se sobrepuser aos interesses
do Estado, ai não há como materializar nada.
Política ao Minuto com informações do
jornal O Estado de S. Paulo
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