Bonner fez duas publicações no Instagram onde relata o processo de
despedida e aceitação da morte de seu pai, ocorrida há um ano.

A
não-cerimônia de despedidas do meu pai durou quase 3 anos. A químio e o
tempo se encarregavam de lhe embaralhar memórias, mas não
aleatoriamente. As mais remotas ganhavam prioridade sobre as menos
distantes. E as mais imediatas se apagavam. Ponto.
Talvez
por isso ele tenha intensificado as visitas ao local onde morou e
estudou, como interno, durante o fundamental 2 e o ensino médio. Era
onde tudo lhe parecia mais vívido, porque o cenário de sua vida uns 70
anos antes.
Ficava
perambulando. Cansava-se. Sentava-se num banco, olhando o movimento dos
estudantes no campus. Fazia isso todos os dias. Chegava a repetir o
programa matinal no meio da tarde. E me convidou a acompanhá-lo nas
andanças em todos os sábados que tivemos, no ano passado.
Numa
dessas ocasiões em que me guiou pelas ruas internas do Mackenzie, em
SP, pedi a meu pai que se sentasse num banco. Disse a ele: “Pai, me
deixa fazer uma foto sua com o Chamberlain ao fundo”.
Era o prédio de alguns dos alunos internos, apenas. Os que obtinham notas boas e que se comportavam adequadamente.
Um
dos maiores orgulhos do meu pai foi a postura que se viu obrigado a ter
quando chegou o momento de ingressar no ensino médio.
Como
interno, ou iria para o edifício Chamberlain, ou teria que arranjar um
pensionato qualquer nas redondezas. Só os mais aplicados tinham lugar
ali. Em maio do ano passado, 6 meses e meio antes de nos deixar, meu pai
exibiu o sorriso que o cansaço lhe permitia pra nos deixar essa foto de
presente. A imagem do orgulho dele. E do nosso.

Eu
gostei desse sapato logo de cara. Tinha um tom de couro cru, sem brilho
nenhum, e o conforto que só o mocassim pode oferecer a quem não pise
com solados emborrachados.
No
ano passado, nas idas semanais a SP pra visitar meus pais, meu pai
doente, elegi uma espécie de uniforme. Todo sábado, pegava estrada às 6
da manhã pra almoçar com eles. E calçava esses sapatos.
Meu
pai tinha 86 anos e um mieloma. É um câncer de agressividade baixa,
comum em velhinhos. Em parte pela idade, em parte pela medicação, meu
pai vivia naquele universo infantil dos senis.
Emocionava-se
com quase tudo, compreendia quase nada e se envolvia em repetições de
afazeres e de dizeres. Perguntava dezenas de vezes a mesma coisa e
demonstrava surpresa a cada vez que ouvia a mesma resposta como se fosse
única, inédita.
Nas mais
de 40 viagens de fim de semana a SP, devo ter calçado esse sapato umas
30 vezes. E, em quase todas, ele recebeu os cuidados do meu pai.
“Júnior, esse sapato não vê uma graxa há quanto tempo?”
Júnior sou eu. “Pai, esse sapato não leva graxa. É assim mesmo. Fosco.”
E ele: “Sei… Isso é falta de graxa! Que vexame! Me dá isso aqui que eu
vou dar um trato.” E não adiantava argumentar. Meu pai me fazia entregar
os sapatos, que limpava com pano úmido. Aplicava cera marrom. Esperava
secar. E lustrava por minutos seguidos, no vai e vem da escova marrom
que usou por mais de 40 anos. Tingia de marrom o couro sem tintura. E
lustrava o que não tinha brilho nenhum.
Ao
longo de 11 meses, enquanto nos despedíamos, meu pai foi modificando
completamente meu mocassim. Pondo cor e luz na opacidade.
Depois
que o velhinho partiu, guardei esses sapatos num lugar onde não
pudessem me ver. E fugi deles por um ano inteiro. Hoje de manhã, sei lá
como, do fundo de uma prateleira, me acharam de novo, quando me vestia
pra sair.
E me ocorreu de
usá-los com a roupa que tinha escolhido pro dia. E nunca, desde que me
interessei por eles numa vitrine, nunca me foram tão deliciosamente
confortáveis.
DCM
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