Reminiscências do Canadá: o dia em que o sangue deu na canela em meio a uma briga de faca - Por: Wellington Farias
O cenário era de tragédia. Os personagens que se engalfinhavam
eram parentes entre si. Familiares meus de grande estima. O lugar já
tinha histórico de outras refregas dignas de registro em boletins de
ocorrência: o Sítio Canadá, uma boa porção de terra que pertenceu ao meu
avô paterno Valentim Martys de Abreu, mas que depois do primeiro
inventário, para contemplar três gerações de filhos caiu para em torno
de 30 hectares cravados na Zona Rural de Serraria, Brejo da Paraíba, e
que por herança hoje me pertence.
O Sítio Canadá é a minha Macondo em que os Buendia são os Farias; o
gelo não aparecia nem por obra de ciganos, como na imaginação de Gabriel
Garcia Marquez no seu monumental Cem Anos de Solidão. Ciganos por ali
nunca andaram e, naquele tempo, a novidade mais aguardada eram as
incursões esporádicas de Biu Mascate com suas malas atadas a lombos de
mula e abarrotadas de peças de linho, brim, cachemira, sedas,
mararrafas, espelhos, brincos, broches, água-de-cheiro para os gostos
duvidosos da época e outras quinquilharias.
Barulho
Não passava das 10 horas da noite, mas parecia madrugada adentro,
porque era assim em tempos de candeeiros a querosene, até a chegada da
energia elétrica, quase 50 anos depois. Eu devia ter em torno de cinco a
seis anos, e era a única testemunha ocular daquele episódio que jamais
se evadiu da minha memória.
Meu sono de inocente foi abruptamente perturbado pelo alarido. Ainda
recompondo a consciência, sonolento sobre a cama que fora da minha avó,
Mamãe Mocinha, e pela porta entreaberta pude ver, em meio a pouca luz
das lamparinas, o vermelhão de sangue que encharcava o chão e manchava
as paredes à minha frente. Era briga pra valer, travada a golpes de
faca-peixeira e traves. Perto da casa grande, do lado oposto ao antigo
engenho movido à tração animal, onde rolava a confusão, não morava mais
ninguém além de nós, para ajudar a acabar com aquele “barulho”. Em
pânico e impotente para por um fim àquilo, vi a minha tia Ovídia em
estado de total desespero, tentando apartar aqueles que lhe eram mais
preciosos: de um lado, Antônio Benício (Tota), que era meu irmão adotivo
e que ela criou como se fosse um filho; do outro, Elias Eusébio de
Farias, seu querido irmão (e meu tio) que, na briga, contava com o
reforço de Céu, sua brava mulher.
Personagens
Adotado pelo meu pai, Sales Farias, “irmão de Elias”, Tota era um
magricela com tórax do tipo titela de pombo. Cabra disposto, tomava
conta do Canadá e era chegado a umas carraspanas daquelas… Não
dispensava uma “lambedeira” à cintura e, quando “triscado” pelo álcool
parecia estar ávido por sangrar um.
Elias Farias que morreu há cerca de 14 anos na cidade de Pilões era
um homem de bem à toda prova. Homem honestíssimo, não dispensa um 38 à
cintura. Neste dia, porém, para a sorte de todos e a sobrevivência de
Tota, o meu tio havia deixado o revólver em sua casa que ficava a 30
metros distante da nossa.
Àquela altura, de quando acordei, Tota já havia desferido dois golpes
de faca na mulher de Elias. De grande coragem pessoal, mesmo se
esvaindo em sangue, ela conseguiu segurar o punho do adversário fazendo a
peixeira resvalar de um golpe certeiro à altura do coração do marido.
Elias sobreviveu, mas até os seus últimos dias de vida carregou no peito
esquerdo a marca que a lâmina de aço lhe deixou. Como costumando dizer
aqui entre nós, o querido tio Elias “escapou fedendo”.
O fim
A última cena desta tremenda confusão foi a que mais me marcou e,
segundo a minha psicóloga, vem daí os meus momentos de pânico sempre que
presencio uma discussão ou uma briga: Não lembro ao certo se foi Elias
ou se foi sua amada esposa Céu quem, mesmo ferido, foi à janela da
porta, desencaixou a trave e com esta desferiu um golpe certeiro na
testa do meu irmão de criação, que caiu com todo peso do corpo à porta
do quarto em que eu dormia. E assistia a tudo tomado de pavor,
sobretudo, com a situação da minha tia Ovídia de ter que, sozinha, evitar
o pior entre o irmão, o filho adotivo e a cunhada.
Cadeia
Depois disso, outro fato que me marcou profundamente foi ter que
visitar o meu querido irmão de criação trancafiado na Cadeia Pública de
Serraria, onde passou entre dois a três meses e recebeu a visita do
então governador do Estado e meu padrinho, Pedro Moreno Gondim. Uma
visita que, na verdade, foi uma deferência ao meu pai, seu grande amigo.
Wellington Farias - PB Agora
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