Os poetas analfabetos do Sertão que foram parar sem querer no YouTube e viraram sucesso na internet – VEJA VÍDEO
Publicados
sem pretensão de audiência a partir de 2008, vídeos de repentistas de
Itapetim, em Pernambuco, acumulam mais de 14 milhões de visualizações,
viram tema de documentário exibido em cinco países e retratam uma rede
de cancioneiros populares ainda pouco conhecida nos grandes centros.
O
mundo do agricultor Leonardo Bastião se resume ao sítio onde mora, na
zona rural de Itapetim, no sertão do Pajeú pernambucano. De lá, ele
quase nunca sai. E, desse universo, tira a inspiração para fazer poesia:
“A
sombra que me acompanha/ Não é a que me socorre/ Se eu andar, ela anda/
Se eu correr, ela corre/ E é mais feliz do que eu/ Não adoece nem
morre”
Só
que Bastião, de 74 anos, não sabe ler nem escrever. Palavras, rimas e
métricas brotam na cabeça, no improviso. Mas décadas de composição da
poesia popular repentista – inspirada pela caatinga, pelos problemas de
alcoolismo, pelo sexo, pelo solo castigado, pela seca, pelos bichos –
nunca ganharam qualquer registro.
Pelo menos, era assim até 2008.
Foi nessa época que o comerciante Bernardo Ferreira, de 57 anos, nascido
no sítio vizinho ao de Bastião, comprou uma câmera em São Paulo e
começou a filmar a vida da pacata Itapetim, de 14 mil habitantes, e o
que saía da cabeça e da boca de Bastião e de outros poetas desse pedaço
de sertão.
Como
a única rede social que Ferreira conhecia era o Orkut, foi lá que
postou um vídeo do poeta Bastião. O registro bombou, mas desagradou o
artista, que não queria aparecer.
Ferreira
pediu perdão, mas continuou gravando. Conta que queria agora guardar os
vídeos para si, fazer um arquivo para poder acessá-los no futuro. Foi
quando ouviu falar de “um tal de YouTube”.
“Me falaram que era na
internet, que eu abria uma conta, ficava com uma senha como a de banco
e, quando quisesse ver, era só entrar lá. Eu não sabia que os vídeos
estavam sendo expostos pro resto do mundo”, disse Ferreira à BBC News
Brasil.
Alguns dos vídeos começaram a receber milhares de
visualizações sem que ninguém se desse conta disso durante cinco anos.
Mesmo sem título, descrição, thumbnail e outras configurações que os
profissionais aprendem, um mar de gente interessada no sertão e nos
poetas iletrados foi chegando, comentando, compartilhando…
“Eu só colocava os números ‘1, 2, 3’ [no título], não sei como descobriram.”
Foi
só em 2013 que Jefferson Sousa, de 25 anos, filho de Ferreira, percebeu
o que estava acontecendo. Ele acessou o email no novo smartphone do pai
e ficou impressionado com o que viu: “Tinha 3 mil emails não lidos,
dizendo ‘fulano’ comentou… Foi quando fui olhar o que era e tinha 200
mil visualizações mensais”, conta.
Hoje, o canal de Ferreira, batizado de Bisaco do Doido,
tem 32 mil inscritos e acumula mais de 14 milhões de visualizações. Um
documentário sobre Leonardo Bastião, o poeta que fez mais sucesso no
canal, foi produzido e dirigido por Jefferson e ganhou o mundo.
“O
poeta analfabeto” já foi exibido em festivais de cinco países, como
Rússia, França, Índia e Bósnia, onde ganhou na categoria “melhor
roteiro”. No último dia 28 de setembro, o filme foi exibido em praça
pública, em Itapetim.
Bastião
assistiu em pé, ao lado de Jefferson e Ferreira, e foi tietado pelo
público que foi ver a história dele no telão. A prefeitura da cidade
reproduziu versos do poeta em alguns prédios públicos.
Documentar a história
Nas
gravações, Bastião aparece dizendo que não se considera poeta. Diz que a
poesia que faz é fácil e que pega apenas “carona” nas coisas da
natureza, feitas por Deus. Assim como ele, há outros poetas declamando
ou cantando repente em sítios, bares e praças na região. Uma cultura
passada de geração para geração na base da oralidade.
Ferreira
afirma que queria dar uma nova dimensão à arte que considera tão
importante e representativa da sua região. Hoje conselheiro tutelar, já
foi dono de loja de discos de vinil e vendia cópias de filmes e CDs, com
a chegada dos computadores. Era como se levasse a cultura para dentro
de Itapetim. Agora, leva de lá para fora.
“Aqui tem e tiveram
muitos poetas que, com tempo, ficaram sem nenhum registro. A poesia
deles só segue adiante quando um decora e sai falando por aí. Eu queria
era registrar e ficar guardado, como fotos antigas, que as pessoas olham
e reconhecem os traços na geração da nova da família”, explica
Ferreira.
Se passa um dia sem postar um vídeo, o dono do Bisaco do
Doido diz que, provavelmente, está doente. Quando Ferreira sabe de
alguém que está declamando poesia nos sítios, ele vai atrás para filmar:
“Eu vou nas brenhas mesmo. Tem poeta que não sabe nem o que é celular,
muito menos internet.”
Jefferson, que se formou em jornalismo no
Recife, até tentou dar umas dicas para o pai “profissionalizar” o canal.
Mas logo percebeu que não fazia sentido. “Queria organizar, mas vi que
isso ia mudar quem ele era. Ele conquistou o público do jeito dele,
desse modo artesanal, então ia mudar essa originalidade”.
O
documentarista diz que o retorno financeiro é pouco, mas já paga o
emplacamento anual do carro do pai. O computador segue com mais de 20
gigabytes de arquivos de vídeos não publicados.
Com
toda a repercussão do Bisaco, mais pessoas foram procurá-lo, e eventos
de cultura popular passaram a ser organizados na região. Alguns artistas
famosos do Nordeste e turistas chegam a procurar Bastião no seu sítio.
E
a visibilidade do canal reverberou também na esfera pública. De acordo
com o secretário de Cultura de Itapetim, Alisson Alves, dos turistas que
buscam a cidade, muitos chegam até lá porque viram as atrações e
histórias no Bisaco do Doido.
“Todo mundo aqui que teve algum tipo
de repercussão passou pelas câmeras dele. Não só Bastião, mas a igreja
matriz, as pinturas rupestres”, conta. Alves também destaca a realização
de eventos culturais na cidade, impulsionados pelo que os vídeos
amadores mostram.
“Fiquei muito surpreso e muito grato com isso
tudo, porque é povo de uma cidade tão pequena e escondida que está sendo
visto pelo mundo. As redes sociais abriram a porta para que vejam como
essa região é rica”, conta Ferreira. O poeta Bastião, entretanto, não
costuma ser muito receptivo a visitantes desconhecidos e se recusa a dar
entrevistas.
No fim de 2018, após uma proposta de um empresário
paraibano e com o impulso da divulgação de Ferreira e Jefferson, foi
publicado um livro com mais de 200 versos de Bastião, Minha Herança de Matuto (Grupo
Claudino), com uma tiragem de 1000 exemplares. A renda foi toda para o
poeta e usada para reconstruir a sua casa, que havia desmoronado.
Quando
Jefferson foi gravar o documentário, já em 2019, Bastião já se
enxergava mais como artista. Mas não quis falar seus versos – na
verdade, preferiu falar da vida e suas tristezas.
“Ele estava mais
introspectivo e foi uma relação mais pessoal. Ele ficou muito próximo
da minha família, do meu pai, minha mãe, e assim pude entender mais a
relação dele com a natureza e o universo dele e como ele enxerga ‘o
pingo da água na folha que a abelha bebeu’, que a gente, na correria,
nem percebe”, relata.
A poesia e o Pajeú
No Pajeú, há
tantos poetas que, reza a lenda, quem bebe da água do rio que batiza a
região sai fazendo música e poesia por aí. A área formada por 17 cidades
é famosa em Pernambuco por ser berço de diversos artistas de poesia
popular como Lourival Batista, o “Louro do Pajeú” ou ainda “o rei do
trocadilho”.
Um dos pioneiros em documentar a poesia da região, o
professor de filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
Marcos Nunes, em seu último levantamento, catalogou 270 poetas só em
Itapetim.
Apesar de não ter uma explicação exata para o fenômeno,
Nunes diz que a mais aceita é que seja uma consequência da história do
colonização do Nordeste brasileiro. Esse modelo de poesia cantada, de
cancioneiro, no improviso, tem suas raízes nos aedos gregos – os poetas
antes da invenção do alfabeto – e na chegada dos mouros à Península
Ibérica, onde hoje estão Espanha e Portugal.
“Com
a descoberta do Brasil, foi aí que tivemos a chegada desses cantadores
no litoral. Com as perseguições, parte desse pessoal entra no território
e vai parar na ‘cabeça’ do Pajeú, na Paraíba”, explica Nunes, autor dos
livros Itapetim: Cidade das Pedras Soltas (editoras CEHM/Fidem/Condepe) e Itapetim, Ventre Imortal da Poesia (editoras CEHM/Fidem/Condepe/Cepe).
O
primeiro cantador de viola de que se tem notícia no Brasil é Agostinho
Nunes da Costa, filho de João Nunes da Costa, um judeu que veio da
Galícia para o Recife nas primeiras décadas do século 18. Cristão novo,
ele foi perseguido e foi morar em João Pessoa e continuou fugindo até
parar numa fazenda onde iria começar o núcleo populacional da atual
cidade de Teixeira, na Paraíba.
O pesquisador relata até um
roteiro geográfico da poesia: de Teixeira, que fica na divisa com
Pernambuco, descendo junto ao leito do rio. Resultado: quanto mais
distante da “cabeça” do rio Pajeú, menos poetas. Itapetim é o primeiro
município nessa rota.
Segundo Ferreira, nas ruas da cidade, não é
preciso marcar hora para encontrar uma poeta: “A poesia brota como uma
cacimba que brota água”. Numa região onde as pessoas conhecem a história
pela poesia não registrada em papel, os vídeos, o livro e o
documentário são enxergados como uma forma de sedimentar uma cultura
única e extremamente rica.
“A diferença para os poetas letrados é
que esses não têm de fato tanto vocabulário e cultura. Mas muitas vezes
parece que o poeta letrado é muito mecânico. Quando vem desse povo
simples, é de coração, de sentimento”, opina Nobre.
E Ferreira completa: “Quem não é poeta aqui, é doido. E eu sou um doido que documenta tudo isso”.
Em
um dos vídeos que fizeram sucesso no Bisaco do Doido (acima), Bastião
está no seu sítio, com o inseparável chápeu, e faz versos sobre a sua
história e a “herança” que recebeu do pai:
Nasci na casa atrasada
Sou filho de Luisinho Bastião
Fiz muitas letras no chão
Mas o lápis era a enxada
E morreu à míngua, sem nada
E minha herança foi assim
Meio quadro de terra ruim
Que ainda hoje eu defendo
E nem abandono nem vendo
O que pai deixou pra mim
(Leonardo Bastião)
Fonte: UOL - Publicado por: Amara Alcântara
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