segunda-feira, 29 de abril de 2019

Três mil estupros em serviços públicos

Mem em centros cirúrgicos e UTIs mulheres estão a salvo – Por Bruna de Lara


estupro 1 - TRÊS MIL ESTUPROS EM SERVIÇOS DE SAÚDE: nem em centros cirúrgicos e UTIs mulheres estão a salvo - Por Bruna de Lara
Era impossível gritar. O peso do enfermeiro sobre o corpo de Amélia da Cruz*, a mão que tapava sua boca e a que apertava seu pescoço garantiam seu silêncio. Imobilizada em um sofá do Hospital Santa Catarina no meio da madrugada, a cuidadora foi estuprada a poucos passos da idosa adormecida de que tomava conta. No quarto de um dos hospitais mais caros da cidade de São Paulo, em 15 de agosto de 2018, ela teve medo de morrer.
Era a terceira vez que o enfermeiro a violentava nas dependências do Santa Catarina. Ele já a havia agarrado à força outras duas vezes e a obrigado a tocar seu pênis. Ao relatar a um funcionário que estava sendo “assediada”, em suas palavras, ouviu que ele não podia fazer nada, porque “tinha medo de mexer com essas coisas”.
Sua filha, Jaqueline da Cruz*, viria a ser vítima de assédio sexual de funcionários do hospital e, sua tia, Penha da Cruz*, também havia sido abusada. Penha estava dormindo no sofá quando acordou com um enfermeiro se masturbando ao seu lado, ofegante. Era o enfermeiro suspeito de estuprar Amélia, ela viria a descobrir semanas depois, em uma conversa com a sobrinha. Ao perceber que ela havia acordado, ele fechou a calça.
“Imediatamente a vítima [Penha] perguntou ao homem o que ele estava fazendo, ao que ele respondeu que estava verificando o acesso venoso da paciente, em seguida saiu do quarto”, lê-se na notícia de crime. O documento é apresentado pela vítima às autoridades competentes para que seja iniciada uma investigação criminal e dá origem a um boletim de ocorrência.
O enfermeiro foi embora. Assim que ele deixou o quarto, afirmando que voltaria de madrugada, Amélia decidiu procurar ajuda. Queria saber se era possível um enfermeiro entrar no quarto caso a porta estivesse trancada. Era. Bastava usar um cartão magnético. Tremendo, a cuidadora contou a outra enfermeira o que estava acontecendo, mas, segundo Amélia, a funcionária não quis se envolver. A enfermeira-chefe foi chamada, e Amélia descreveu o agressor e o medo que sentia. Percebendo que não estava sendo levada a sério, pediu que checassem as câmeras de segurança para comprovar o que dizia. Foi ignorada. Segundo Amélia, a enfermeira-chefe disse apenas que ela ficaria de olho no homem, que trabalhava em outro setor e não teria como destrancar a porta do quarto. Ele não voltou.
Sentindo medo e vergonha, Amélia não denunciou o suspeito. Só no início de fevereiro deste ano, quando soube da prisão de outro funcionário do Santa Catarina, Jackson Bastos dos Santos, acusado de estuprar uma paciente, ela se sentiu encorajada a denunciar seu próprio agressor.
O 78º Distrito Policial de São Paulo abriu um inquérito e irá ouvi-la em maio. Em nota enviada por e-mail, o Hospital Santa Catarina afirmou que o hospital “colabora com as autoridades competentes” e não comentaria os casos para preservar os “as investigações e a integridade de possíveis envolvidos”. Por fim, disse repudiar a violência contra a mulher.
Três mil estupros e um ciclo perverso
Advogada de Amélia, Maira Pinheiro classifica a violência sexual em instituições de saúde como um “problema endêmico”. E tem toda razão. Um levantamento inédito do Intercept revela que, somente em dez estados brasileiros, foram registrados 3.515 casos do tipo entre 2014 e 2019. São 3.005 registros de estupros e 510 de casos de assédio sexual, violação sexual mediante fraude, atentado violento ao pudor e importunação ofensiva ao pudor. O número certamente é maior, tendo em vista a ausência de dados de 17 unidades federativas e o fato de que apenas 10% dos estupros são registrados no Brasil.
As informações, pedidas às Secretarias de Segurança de 19 estados e do Distrito Federal, foram obtidas via lei de acesso à informação. Mas só Acre, Amapá, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, São Paulo, Rondônia, Roraima, Tocantins e Rio de Janeiro enviaram as informações – este último, no entanto, não contabilizou os casos de 2019.
Os dados mais detalhados, enviados por São Paulo, revelam a violência aguda praticada nos serviços que deveriam zelar pela saúde e a integridade corporal das mulheres. Há 854 registros de estupro em 15 tipos de estabelecimento, incluindo asilos, hospitais psiquiátricos, consultórios médicos e dentários, laboratórios e postos de saúde. Mesmo os ambientes mais expostos se tornam cenário de abusos – há seis registros de estupro em recepções de hospitais – e a exploração de pessoas extremamente vulneráveis chega a ser macabra: foram registrados 16 estupros em CTIs e UTIs, além de quatro casos e uma violação sexual mediante fraude em centros cirúrgicos.
Soraya Passos*, a mulher que acusa Jackson dos Santos, conta ter sido violentada no mesmo dia em que passou por uma cirurgia. Segundo ela, o técnico de enfermagem entrou em seu quarto de madrugada, assim que o marido de Soraya saiu para ficar com o bebê do casal, e a sedou. Ela perdeu a consciência. Então, disse que o homem colocou a mão dela em seu pênis e apertou seus seios com tanta força que a acordou minutos depois. Assim, afirma, ela flagrou o estupro. Mas, dopada, apagou novamente, sem chance de reação.
A defesa de Jackson dos Santos, que já foi liberado da prisão preventiva, preferiu não se manifestar.
Na manhã seguinte, a paciente contou o que aconteceu à equipe do Santa Catarina – que, segundo ela, foi omissa. Em seu depoimento, registrado em boletim de ocorrência, ela conta que, após denunciar, o hospital disse que um homem jamais atenderia uma mulher – versão desmentida pelo caso de Jaqueline – e a médica de plantão se recusou a fazer um exame toxicológico para identificar a substância injetada em Soraya. Então, seu marido chamou a polícia.
O caso de Soraya não é o único. Um dossiê com 21 notícias sobre abusos sexuais em serviços de saúde brasileiros, montado pela advogada Maira Pinheiro, menciona a injeção de sedativos como facilitadores de estupros em mais de 15 casos. Em nove notícias internacionais, a dopagem proposital foi mencionada em mais de 60 casos. Em outros nove casos brasileiros, funcionários se aproveitaram da anestesia, do sedativo ou de outros medicamentos usados nos procedimentos médicos para cometer os abusos.
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É o que a bancária Laura Franco* afirma ter acontecido com ela. A jovem passou nove dias internada e medicada na clínica psiquiátrica Vera Cruz, também em São Paulo, para tratar sua depressão. Ela acusa o técnico de enfermagem Erenildo Costa de Souza Júnior de aproveitar seu estado para assediá-la, beijá-la à força e, na véspera de sua alta, levá-la para um banheiro e estuprá-la. “Ele [o técnico] vai em cima de meninas franzinas, depressivas, fragilizadas, se apresenta como um amigo e depois faz avanços de caráter sexual pra cima delas”, afirma Maira Pinheiro, que soube por Laura de outros casos de assédio que teriam sido cometidos pelo técnico. Em depoimento, o acusado afirmou nunca ter sequer conversado com Laura. Como parte de sua defesa, foram apresentados depoimentos de dois outros técnicos de enfermagem, que afirmam não ter visto nada, e prints de páginas feministas curtidas pela moça e posts sobre violência sexual que ela havia compartilhado.
O mais preocupante, segundo Maira e sua pesquisa, é a frequência do uso de sedativos que são rapidamente eliminados do corpo. O problema disso? O tempo que a vítima leva para acordar, lembrar os fatos, se informar sobre as medidas que deve tomar e efetivamente tomá-las pode ser maior do que o período em que a substância seria detectada em um exame toxicológico. Assim, uma prova importante do crime – a de que a mulher foi sedada sem indicação médica – pode ser “apagada” do organismo da vítima.
Um desses medicamentos é o Midazolam, citado em quatro dos mais de 60 casos americanos que figuram no dossiê. Geralmente usado para cirurgias de pequeno porte, o anestésico só pode ser detectado em até 48 horas depois da injeção e é conhecido por provocar amnésia nos pacientes, para que eles não se lembrem dos procedimentos dolorosos.
Ao sair da clínica, Laura contou a uma amiga o que havia acontecido e entendeu que havia sido vítima de abusos. Chorou compulsivamente no trabalho e, ao voltar para casa, narrou também a seu pai sobre o estupro. Com seu incentivo, ela registrou uma ocorrência na 4ª Delegacia de Defesa da Mulher e no Conselho Regional de Enfermagem do estado, que abriu uma sindicância, que tramita em segredo – conforme prevê o código de ética do conselho. Mais de dez meses já se passaram.
A Clínica Vera Cruz afirmou que não há registros sobre o ocorrido no prontuário de Laura. Seu diretor executivo, Ricardo Mendes, disse que o hospital conta com uma ouvidoria, formulários de queixas e sugestões, câmeras e outros recursos e “mesmo assim, não foi apresentada qualquer queixa ou denúncia pela referida paciente”. De início, por telefone, o diretor classificou o caso como um “zum-zum-zum” ouvido ano passado. Mas, na nota oficial, afirmou que o estabelecimento recebeu um telefonema do Conselho Regional de Enfermagem sobre o boletim de ocorrência.
“Por fim, claro que não podemos jurar que não ocorreu o alegado pela paciente Laura*, mas por todas as considerações acima, julgamos muito pouco provável ter acontecido”, concluiu o diretor. Menos de 20 dias depois da instauração do inquérito policial sobre o caso, o suspeito foi demitido. Segundo o hospital, “por não apresentar perfil de acordo com as expectativas”. De acordo com o acusado, por “corte de funcionários”.
Desde sua internação, em fevereiro de 2018, a bancária tem pesadelos sobre o estupro. Embora tenha conseguido trabalhar por alguns meses, em novembro teve que se afastar do emprego por conta das crises constantes de revivescência do trauma.
Não bastasse serem violentadas por profissionais a quem confiam suas vidas, as sobreviventes de estupros em serviços de saúde podem se ver presas em um ciclo especialmente agoniante. O criminalista David Lisak, especialista em casos de violência sexual, afirma que ser estuprada é mais traumático do que lutar em uma guerra, e uma pesquisa realizada nos Estados Unidos revelou que 88% das sobreviventes de estupro são acometidas por problemas crônicos de saúde. E, segundo a médica Sherry Ross, ginecologista e obstetra americana que acumula prêmios na área de saúde da mulher, uma quebra de confiança tão traumática na relação médico-paciente pode afetar a forma como uma mulher cuida de sua saúde pelo resto de sua vida. Ou seja: a mulher que vai a um serviço de saúde e é estuprada provavelmente terá uma doença que a acompanhará pelo resto da vida. E aonde ela terá que ir repetidamente para tratar esse problema? A um serviço de saúde, ambiente ligado diretamente ao trauma do estupro.
Tolerância ao abuso é única norma
Os números são estarrecedores. Ainda assim, o Ministério da Saúde não tem nenhum protocolo destinado aos serviços brasileiros com recomendações para para prevenir abusos em suas dependências ou como receber e lidar com denúncias contra seus funcionários. Embora uma norma técnica e uma lei estabeleçam parâmetros para o atendimento de vítimas de violência sexual, os textos não têm protocolos específicos para os casos de pessoas abusadas nos serviços que deveriam atendê-las. A Organização Mundial da Saúde tampouco tem orientações nesse sentido.
Nesse limbo, reina a negligência. “Não é apresentada a essa mulher a ouvidoria, ela não é orientada sobre nenhum dos outros serviços da rede de atendimento a mulheres que passam por situação de violência sexual e elas são desmotivadas a denunciar”, me disse a coordenadora do Núcleo dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública de São Paulo, Paula Sant’Anna. Jogar a culpa na vítima é um dos caminhos para tentar impedir a denúncia: “[Há] uma desqualificação do tipo: ‘Você está mentindo, não tem porque esse médico fazer isso, você vai sujar a reputação dele’”.
Em 22 de janeiro, a advogada Maira Pinheiro se reuniu com a equipe jurídica do Hospital Santa Catarina para tratar do caso de Soraya. “A coisa que a gente mais bateu na conversa foi: ‘Como vocês não têm um protocolo pra esse tipo de situação?’”, me contou a advogada. “Não é que isso nunca aconteceu aqui, é que vocês nunca ficaram sabendo”, disse na reunião.
‘Não houve nenhuma ação por parte do hospital de acolhimento ou de tomada das medidas necessárias.’
No Brasil, o registro de casos de violência sexual que chegam aos serviços de saúde é obrigatório, e o Ministério da Saúde recomenda aos estabelecimentos medidas como o acolhimento das sobreviventes; a solicitação de exames laboratoriais; a disponibilização da pílula do dia seguinte; a prevenção de DSTs e o encaminhamento da sobrevivente a serviços de acompanhamento psicológico. “Não houve nenhuma ação por parte do hospital de acolhimento ou de tomada das medidas necessárias”, me disse Maira. “Eles agiram como se nunca tivessem ouvido falar numa situação dessas.”
A defensora Paula Sant’Anna explica que há duas coisas singulares no caso de mulheres violentadas em serviços de saúde: diferentemente das vítimas que chegam aos estabelecimentos por conta da violência sexual, essas mulheres não são sequer caracterizadas como vítimas. Então, o abuso não é registrado no prontuário e acolhimento devido não é feito, prejudicando a saúde da mulher e a produção de provas. E, muitas vezes, quando a violência é cometida por um médico, elas pedem ajuda a outros funcionários que, hierarquicamente, estão abaixo do abusador – e não se sentem confortáveis em tomar medidas contra eles.
A justiça já recebeu a denúncia de Soraya, e o processo judicial tem um longo trâmite pela frente. Como os abusos cometidos por profissionais de saúde tendem a acontecer em locais fechados, é raro haver testemunhas. E, se em casos de abuso a palavra do homem costuma valer mais do que a de uma mulher, quando o acusado é um profissional de saúde, o desequilíbrio de poder é ainda maior. “Essa questão hierárquica, do saber da medicina, também estruturalmente está muito presente na nossa sociedade”, me disse a defensora Paula Sant’Anna. O fato de os peritos em um processo envolvendo profissionais da saúde serem da mesma área é outro problema. “É difícil um outro médico conseguir apontar que o colega atuou ou com algum erro, ou com alguma negligência, ou com uma violência.”
Abusar de mulheres não custa licença
Procurei a assessoria dos Conselhos Federais de Enfermagem, Medicina, Odontologia e Psicologia para descobrir quantas denúncias de violência sexual contra profissionais da saúde foram recebidas entre 2014 e 2019 e quantas haviam resultado na cassação de registro do acusado.
A falta de transparência nos órgãos é evidente: o Cofen informou que apenas seis profissionais tiveram seus registros cassados em mais de cinco anos e não passou o número de denúncias recebidas. Já o CFO e o CFP afirmaram que não têm esses dados, e o CFM sequer respondeu aos contatos da reportagem.
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Nos conselhos regionais de São Paulo, tivemos retorno apenas das categorias de enfermagem e medicina. Entre 2014 e 2015, foram recebidas 42 reclamações no Conselho de Enfermagem e só dois profissionais perderam o registro – 4,76% do total. No mesmo período, foram recebidas 280 denúncias no Conselho de Medicina e 29 médicos tiveram o registro cassado. Alguns dos cancelamentos podem ser resultado de denúncias apresentadas antes de 2014, e há denúncias recebidas nesses cinco anos que ainda não foram julgadas.
A falta de produção de dados consistentes sobre violência sexual cometida pelos profissionais da saúde é um sintoma da grave negligência com que o tema é tratado pelos conselhos. Afinal, para tomar as medidas apropriadas de prevenção, acolhimento de vítimas e sanção de agressores, é preciso mensurar o tamanho do problema. Ao deixar de fazer isso, os conselhos falham com as mulheres e impedem a fiscalização cidadã de sua atuação.
As porcentagens dos poucos dados enviados ao Intercept, no entanto, indicam que a violência sexual não é devidamente punida. E o problema não é local: nos Estados Unidos, uma extensa investigação do Atlanta-Journal Constitution revelou que mais da metade dos 2.400 médicos punidos por violência sexual entre 1999 e 2016 continuaram com o direito de praticar a profissão.
*Nomes alterados a pedido das mulheres para preservar suas identidades.
Fonte: The Intercept - Créditos: Bruna de Lara - Publicado por: Ivyna Souto

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