Mem em centros cirúrgicos e UTIs mulheres estão a salvo – Por Bruna de Lara
Era
impossível gritar. O peso do enfermeiro sobre o corpo de Amélia da
Cruz*, a mão que tapava sua boca e a que apertava seu pescoço garantiam
seu silêncio. Imobilizada em um sofá do Hospital Santa Catarina no meio
da madrugada, a cuidadora foi estuprada a poucos passos da idosa
adormecida de que tomava conta. No quarto de um dos hospitais mais caros
da cidade de São Paulo, em 15 de agosto de 2018, ela teve medo de
morrer.
Era a terceira vez que o enfermeiro a violentava nas
dependências do Santa Catarina. Ele já a havia agarrado à força outras
duas vezes e a obrigado a tocar seu pênis. Ao relatar a um funcionário
que estava sendo “assediada”, em suas palavras, ouviu que ele não podia
fazer nada, porque “tinha medo de mexer com essas coisas”.
Sua
filha, Jaqueline da Cruz*, viria a ser vítima de assédio sexual de
funcionários do hospital e, sua tia, Penha da Cruz*, também havia sido
abusada. Penha estava dormindo no sofá quando acordou com um enfermeiro
se masturbando ao seu lado, ofegante. Era o enfermeiro suspeito de
estuprar Amélia, ela viria a descobrir semanas depois, em uma conversa
com a sobrinha. Ao perceber que ela havia acordado, ele fechou a calça.
“Imediatamente
a vítima [Penha] perguntou ao homem o que ele estava fazendo, ao que
ele respondeu que estava verificando o acesso venoso da paciente, em
seguida saiu do quarto”, lê-se na notícia de crime.
O documento é apresentado pela vítima às autoridades competentes para
que seja iniciada uma investigação criminal e dá origem a um boletim de
ocorrência.
Semanas
depois, a idosa que Amélia cuida voltou a ser internada. Mais uma vez, a
cuidadora foi seguida pelo enfermeiro até o quarto, onde ele a molestou
e a forçou a entrar no banheiro. Dessa vez, ela ameaçou gritar. Foi
logo advertida: “Eu tenho dois filhos para criar e eu sei seu nome
completo. Como você fez a internação, eu tenho seu RG, CPF e, com esses
dados, eu descubro até seu útero”, ela afirmou ter ouvido do agressor no
documento entregue à polícia. “Você não sabe onde eu moro, mas eu sei
onde te encontrar, porque está tudo no sistema”, teria dito o homem a
Amélia.
O enfermeiro foi
embora. Assim que ele deixou o quarto, afirmando que voltaria de
madrugada, Amélia decidiu procurar ajuda. Queria saber se era possível
um enfermeiro entrar no quarto caso a porta estivesse trancada. Era.
Bastava usar um cartão magnético. Tremendo, a cuidadora contou a outra
enfermeira o que estava acontecendo, mas, segundo Amélia, a funcionária
não quis se envolver. A enfermeira-chefe foi chamada, e Amélia descreveu
o agressor e o medo que sentia. Percebendo que não estava sendo levada a
sério, pediu que checassem as câmeras de segurança para comprovar o que
dizia. Foi ignorada. Segundo Amélia, a enfermeira-chefe disse apenas
que ela ficaria de olho no homem, que trabalhava em outro setor e não
teria como destrancar a porta do quarto. Ele não voltou.
Sentindo medo e vergonha, Amélia não denunciou o suspeito. Só no início de fevereiro deste ano, quando soube da prisão de outro funcionário do Santa Catarina, Jackson Bastos dos Santos, acusado de estuprar uma paciente, ela se sentiu encorajada a denunciar seu próprio agressor.
O
78º Distrito Policial de São Paulo abriu um inquérito e irá ouvi-la em
maio. Em nota enviada por e-mail, o Hospital Santa Catarina afirmou que o
hospital “colabora com as autoridades competentes” e não comentaria os
casos para preservar os “as investigações e a integridade de possíveis
envolvidos”. Por fim, disse repudiar a violência contra a mulher.
Três mil estupros e um ciclo perverso
Advogada
de Amélia, Maira Pinheiro classifica a violência sexual em instituições
de saúde como um “problema endêmico”. E tem toda razão. Um levantamento inédito do Intercept revela
que, somente em dez estados brasileiros, foram registrados 3.515 casos
do tipo entre 2014 e 2019. São 3.005 registros de estupros e 510 de
casos de assédio sexual, violação sexual mediante fraude,
atentado violento ao pudor e importunação ofensiva ao pudor. O número
certamente é maior, tendo em vista a ausência de dados de 17 unidades
federativas e o fato de que apenas 10% dos estupros são registrados no Brasil.
As informações, pedidas às Secretarias de Segurança de 19 estados e do Distrito Federal,
foram obtidas via lei de acesso à informação. Mas só Acre, Amapá, Mato
Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, São Paulo, Rondônia, Roraima,
Tocantins e Rio de Janeiro enviaram as informações – este último, no
entanto, não contabilizou os casos de 2019.
Os dados mais detalhados, enviados por São Paulo, revelam a violência aguda praticada nos serviços que deveriam zelar pela saúde e a integridade corporal das
mulheres. Há 854 registros de estupro em 15 tipos de estabelecimento,
incluindo asilos, hospitais psiquiátricos, consultórios médicos e
dentários, laboratórios e postos de saúde. Mesmo os ambientes mais
expostos se tornam cenário de abusos – há seis registros de estupro em
recepções de hospitais – e a exploração de pessoas extremamente
vulneráveis chega a ser macabra: foram registrados 16 estupros em CTIs e
UTIs, além de quatro casos e uma violação sexual mediante fraude em
centros cirúrgicos.
Soraya Passos*, a mulher que acusa Jackson dos
Santos, conta ter sido violentada no mesmo dia em que passou por uma
cirurgia. Segundo ela, o técnico de enfermagem entrou em seu quarto de
madrugada, assim que o marido de Soraya saiu para ficar com o bebê do
casal, e a sedou. Ela perdeu a consciência. Então, disse que o homem
colocou a mão dela em seu pênis e apertou seus seios com tanta força que
a acordou minutos depois. Assim, afirma, ela flagrou o estupro. Mas,
dopada, apagou novamente, sem chance de reação.
A defesa de Jackson dos Santos, que já foi liberado da prisão preventiva, preferiu não se manifestar.
Na
manhã seguinte, a paciente contou o que aconteceu à equipe do Santa
Catarina – que, segundo ela, foi omissa. Em seu depoimento, registrado
em boletim de ocorrência, ela conta que, após denunciar, o hospital
disse que um homem jamais atenderia uma mulher – versão desmentida pelo
caso de Jaqueline – e a médica de plantão se recusou a fazer um exame
toxicológico para identificar a substância injetada em Soraya. Então,
seu marido chamou a polícia.
O caso de Soraya não é o único. Um dossiê com 21 notícias sobre
abusos sexuais em serviços de saúde brasileiros, montado pela advogada
Maira Pinheiro, menciona a injeção de sedativos como facilitadores de
estupros em mais de 15 casos. Em nove notícias internacionais, a dopagem
proposital foi mencionada em mais de 60 casos. Em outros nove casos
brasileiros, funcionários se aproveitaram da anestesia, do sedativo ou
de outros medicamentos usados nos procedimentos médicos para cometer os
abusos.
É
o que a bancária Laura Franco* afirma ter acontecido com ela. A jovem
passou nove dias internada e medicada na clínica psiquiátrica Vera Cruz,
também em São Paulo, para tratar sua depressão. Ela acusa o técnico de
enfermagem Erenildo Costa de Souza Júnior de aproveitar seu estado para
assediá-la, beijá-la à força e, na véspera de sua alta, levá-la para um
banheiro e estuprá-la. “Ele [o técnico] vai em cima de meninas
franzinas, depressivas, fragilizadas, se apresenta como um amigo e
depois faz avanços de caráter sexual pra cima delas”, afirma Maira
Pinheiro, que soube por Laura de outros casos de assédio que teriam sido
cometidos pelo técnico. Em depoimento, o acusado afirmou nunca ter
sequer conversado com Laura. Como parte de sua defesa, foram
apresentados depoimentos de dois outros técnicos de enfermagem, que
afirmam não ter visto nada, e prints de páginas feministas curtidas pela
moça e posts sobre violência sexual que ela havia compartilhado.
O
mais preocupante, segundo Maira e sua pesquisa, é a frequência do uso
de sedativos que são rapidamente eliminados do corpo. O problema disso? O
tempo que a vítima leva para acordar, lembrar os fatos, se informar
sobre as medidas que deve tomar e efetivamente tomá-las pode ser maior
do que o período em que a substância seria detectada em um exame
toxicológico. Assim, uma prova importante do crime – a de que a mulher
foi sedada sem indicação médica – pode ser “apagada” do organismo da
vítima.
Um desses medicamentos é o Midazolam,
citado em quatro dos mais de 60 casos americanos que figuram no dossiê.
Geralmente usado para cirurgias de pequeno porte, o anestésico só pode
ser detectado em até 48 horas depois da injeção e é conhecido por provocar amnésia nos pacientes, para que eles não se lembrem dos procedimentos dolorosos.
Ao
sair da clínica, Laura contou a uma amiga o que havia acontecido e
entendeu que havia sido vítima de abusos. Chorou compulsivamente no
trabalho e, ao voltar para casa, narrou também a seu pai sobre o
estupro. Com seu incentivo, ela registrou uma ocorrência na 4ª Delegacia
de Defesa da Mulher e no Conselho Regional de Enfermagem do estado, que
abriu uma sindicância, que tramita em segredo – conforme prevê o código de ética do conselho. Mais de dez meses já se passaram.
A
Clínica Vera Cruz afirmou que não há registros sobre o ocorrido no
prontuário de Laura. Seu diretor executivo, Ricardo Mendes, disse que o
hospital conta com uma ouvidoria, formulários de queixas e sugestões,
câmeras e outros recursos e “mesmo assim, não foi apresentada qualquer
queixa ou denúncia pela referida paciente”. De início, por telefone, o
diretor classificou o caso como um “zum-zum-zum” ouvido ano passado.
Mas, na nota oficial, afirmou que o estabelecimento recebeu um
telefonema do Conselho Regional de Enfermagem sobre o boletim de
ocorrência.
“Por fim, claro que não podemos jurar que não ocorreu o alegado pela paciente Laura*,
mas por todas as considerações acima, julgamos muito pouco provável ter
acontecido”, concluiu o diretor. Menos de 20 dias depois da instauração
do inquérito policial sobre o caso, o suspeito foi demitido. Segundo o
hospital, “por não apresentar perfil de acordo com as expectativas”. De
acordo com o acusado, por “corte de funcionários”.
Desde sua
internação, em fevereiro de 2018, a bancária tem pesadelos sobre o
estupro. Embora tenha conseguido trabalhar por alguns meses, em novembro
teve que se afastar do emprego por conta das crises constantes de revivescência do trauma.
Não
bastasse serem violentadas por profissionais a quem confiam suas vidas,
as sobreviventes de estupros em serviços de saúde podem se ver presas
em um ciclo especialmente agoniante. O criminalista David Lisak,
especialista em casos de violência sexual, afirma que ser estuprada é mais traumático do que lutar em uma guerra, e uma pesquisa realizada nos Estados Unidos revelou que 88% das sobreviventes de estupro são acometidas por problemas crônicos de saúde. E, segundo a médica Sherry Ross,
ginecologista e obstetra americana que acumula prêmios na área de saúde
da mulher, uma quebra de confiança tão traumática na relação
médico-paciente pode afetar a forma como uma mulher cuida de sua saúde
pelo resto de sua vida. Ou seja: a mulher que vai a um serviço de saúde e
é estuprada provavelmente terá uma doença que a acompanhará pelo resto
da vida. E aonde ela terá que ir repetidamente para tratar esse problema? A um serviço de saúde, ambiente ligado diretamente ao trauma do estupro.
Tolerância ao abuso é única norma
Os
números são estarrecedores. Ainda assim, o Ministério da Saúde não tem
nenhum protocolo destinado aos serviços brasileiros com recomendações
para para prevenir abusos em suas dependências ou como receber e lidar
com denúncias contra seus funcionários. Embora uma norma técnica e uma lei estabeleçam
parâmetros para o atendimento de vítimas de violência sexual, os textos
não têm protocolos específicos para os casos de pessoas abusadas nos
serviços que deveriam atendê-las. A Organização Mundial da Saúde
tampouco tem orientações nesse sentido.
Nesse limbo, reina a
negligência. “Não é apresentada a essa mulher a ouvidoria, ela não é
orientada sobre nenhum dos outros serviços da rede de atendimento a
mulheres que passam por situação de violência sexual e elas são
desmotivadas a denunciar”, me disse a coordenadora do Núcleo dos
Direitos das Mulheres da Defensoria Pública de São Paulo, Paula
Sant’Anna. Jogar a culpa na vítima é um dos caminhos para tentar impedir
a denúncia: “[Há] uma desqualificação do tipo: ‘Você está mentindo, não
tem porque esse médico fazer isso, você vai sujar a reputação dele’”.
Em
22 de janeiro, a advogada Maira Pinheiro se reuniu com a equipe
jurídica do Hospital Santa Catarina para tratar do caso de Soraya. “A
coisa que a gente mais bateu na conversa foi: ‘Como vocês não têm um
protocolo pra esse tipo de situação?’”, me contou a advogada. “Não é que
isso nunca aconteceu aqui, é que vocês nunca ficaram sabendo”, disse na
reunião.
‘Não houve nenhuma ação por parte do hospital de acolhimento ou de tomada das medidas necessárias.’
No Brasil, o registro de casos de violência sexual que chegam aos serviços de saúde é obrigatório, e o Ministério da Saúde recomenda aos
estabelecimentos medidas como o acolhimento das sobreviventes; a
solicitação de exames laboratoriais; a disponibilização da pílula do dia
seguinte; a prevenção de DSTs e o encaminhamento da sobrevivente a
serviços de acompanhamento psicológico. “Não houve nenhuma ação por
parte do hospital de acolhimento ou de tomada das medidas necessárias”,
me disse Maira. “Eles agiram como se nunca tivessem ouvido falar numa
situação dessas.”
A
defensora Paula Sant’Anna explica que há duas coisas singulares no caso
de mulheres violentadas em serviços de saúde: diferentemente das
vítimas que chegam aos estabelecimentos por conta da violência sexual,
essas mulheres não são sequer caracterizadas como vítimas. Então, o
abuso não é registrado no prontuário e acolhimento devido não é feito,
prejudicando a saúde da mulher e a produção de provas. E, muitas vezes,
quando a violência é cometida por um médico, elas pedem ajuda a outros
funcionários que, hierarquicamente, estão abaixo do abusador – e não se
sentem confortáveis em tomar medidas contra eles.
A justiça já
recebeu a denúncia de Soraya, e o processo judicial tem um longo trâmite
pela frente. Como os abusos cometidos por profissionais de saúde tendem
a acontecer em locais fechados, é raro haver testemunhas. E, se em
casos de abuso a palavra do homem costuma valer mais do que a de uma
mulher, quando o acusado é um profissional de saúde, o desequilíbrio de
poder é ainda maior. “Essa questão hierárquica, do saber da medicina,
também estruturalmente está muito presente na nossa sociedade”, me disse
a defensora Paula Sant’Anna. O fato de os peritos em um processo
envolvendo profissionais da saúde serem da mesma área é outro problema.
“É difícil um outro médico conseguir apontar que o colega atuou ou com
algum erro, ou com alguma negligência, ou com uma violência.”
Abusar de mulheres não custa licença
Procurei
a assessoria dos Conselhos Federais de Enfermagem, Medicina,
Odontologia e Psicologia para descobrir quantas denúncias de violência
sexual contra profissionais da saúde foram recebidas entre 2014 e 2019 e
quantas haviam resultado na cassação de registro do acusado.
A
falta de transparência nos órgãos é evidente: o Cofen informou que
apenas seis profissionais tiveram seus registros cassados em mais de
cinco anos e não passou o número de denúncias recebidas. Já o CFO e o
CFP afirmaram que não têm esses dados, e o CFM sequer respondeu aos
contatos da reportagem.
Nos
conselhos regionais de São Paulo, tivemos retorno apenas das categorias
de enfermagem e medicina. Entre 2014 e 2015, foram recebidas 42
reclamações no Conselho de Enfermagem e só dois profissionais perderam o
registro – 4,76% do total. No mesmo período, foram recebidas 280
denúncias no Conselho de Medicina e 29 médicos tiveram o registro
cassado. Alguns dos cancelamentos podem ser resultado de denúncias
apresentadas antes de 2014, e há denúncias recebidas nesses cinco anos
que ainda não foram julgadas.
A falta de produção de dados
consistentes sobre violência sexual cometida pelos profissionais da
saúde é um sintoma da grave negligência com que o tema é tratado pelos
conselhos. Afinal, para tomar as medidas apropriadas de prevenção,
acolhimento de vítimas e sanção de agressores, é preciso mensurar o
tamanho do problema. Ao deixar de fazer isso, os conselhos falham com as
mulheres e impedem a fiscalização cidadã de sua atuação.
As
porcentagens dos poucos dados enviados ao Intercept, no entanto, indicam
que a violência sexual não é devidamente punida. E o problema não é
local: nos Estados Unidos, uma extensa investigação do Atlanta-Journal Constitution revelou
que mais da metade dos 2.400 médicos punidos por violência sexual entre
1999 e 2016 continuaram com o direito de praticar a profissão.
*Nomes alterados a pedido das mulheres para preservar suas identidades.
Fonte: The Intercept - Créditos: Bruna de Lara - Publicado por: Ivyna Souto
Fonte: The Intercept - Créditos: Bruna de Lara - Publicado por: Ivyna Souto
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