Brasileiros desenvolvem sistema para tentar prever e evitar suicídios
“Alerta
vermelho: você corre o risco de cometer suicídio.” Ao receber este
aviso no smartphone, o paciente pode buscar ajuda e evitar o pior. Este é
o objetivo de um estudo realizado pela equipe do Laboratório de
Psiquiatria Molecular do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e
divulgado na revista científica Plos One.
Os pesquisadores criaram
um algoritmo capaz de analisar textos em busca de sinais de que o autor
daquelas anotações possa vir a se matar. Como paciente fictício, a
equipe do HCPA utilizou ninguém menos que Virginia Woolf, escritora
britânica que tirou a própria vida aos 59 anos.
Um dos
responsáveis pelo estudo, o médico psiquiatra e professor Ives
Cavalcante Passos, explica que a opção por Virginia Woolf se deve ao
histórico da escritora, semelhante ao de várias pessoas que acabam por
se matar: sofria de transtorno bipolar e ao longo da vida tivera
diversos episódios depressivos seguidos de tentativas de suicídio.
Virginia
Woolf tinha a vantagem de ter uma vasta produção de textos pessoais
publicados, já que escrevia quase diariamente cartas e anotações em seu
diário.
O algoritmo escolhido foi o mesmo utilizado pelos e-mails
para identificar quais mensagens devem ir para a caixa de spams e quais
devem ficar na caixa de entrada.
O primeiro passo foi “ensinar” o
algoritmo a identificar cartas e anotações relacionadas ao desfecho do
suicídio. Para isso, foram utilizados textos escritos por Virginia Woolf
dentro dos dois meses anteriores à sua morte.
Este corte temporal
foi determinado pelos médicos, que entendem que neste período ela já
havia entrado em um estágio crítico para o risco do suicídio.
Depois
que o sistema estava treinado, ele foi aplicado aleatoriamente em
diversos textos da romancista, escritos tanto em períodos pré-tentativas
de suicídio como em outros períodos em que ela estava fora de risco.
O
resultado é que o algoritmo acertou em 80% dos casos. Ou seja, a cada
100 textos analisados, em 80 ele apontou corretamente o desfecho: se
Virgínia iria ou não tentar se matar nos próximos meses.
Segundo
Passos, a ideia é que, no futuro, a mesma ferramenta possa ser
transplantada para um aplicativo capaz de analisar tudo aquilo que
escrevemos no smartphone, como mensagens no WhatsApp e em redes sociais,
e que iria emitir um alerta caso haja risco de suicídio.
Mas o
médico lembra que o algoritmo é individualizado, já que o padrão de
escrita de cada pessoa é diferente. Ou seja, o algoritmo construído para
Virginia Woolf funciona apenas para Virginia Woolf.
Além disso,
a ferramenta só pode ser aplicada em pacientes que já tentaram se matar,
justamente porque precisa ser treinada com base em eventos prévios.
Como explica o professor, o principal fator de risco para suicídio é
justamente já ter tentado suicídio.

Mais
do que isso, as pessoas costumam deixar sinais de que vão se matar:
“Essa pessoa que dá pistas, que fala que vai se matar, que escreve uma
carta de suicídio, ou o aluno que no colégio busca o coordenador ou fala
pro amiguinho que pode tentar se matar, essa pessoa a gente tem que
olhar com calma. Ela pode realmente se matar”.
No futuro, o modelo
criado pela equipe de Porto Alegre poderá se tornar ainda mais preciso
pela inclusão de outros fatores de risco, como o sexo do paciente (no
Brasil os homens se matam 4 vezes mais do que as mulheres), histórico de
suicídio na família ou consumo de álcool ou outras drogas.
O
professor não descarta que o aplicativo possa analisar inclusive
variações no fenótipo digital do usuário, como o tom de voz ao telefone
ou a velocidade de digitação.
Para
o médico, este tipo de algoritmo deve tornar a medicina mais
preventiva: “Hoje o sujeito chega deprimido no meu consultório. Imagina
que no futuro talvez ele chegue muito antes. Não vamos tratar o episódio
depressivo, vamos prevenir o episódio depressivo”.
O trabalho
compôs a dissertação de mestrado de Gabriela de Ávila Berni e contou com
a supervisão do professor Flávio Kapczinski, da McMaster University.
Para mim o mundo era preto e branco
Teresinha
de Lourdes da Silva tem 60 anos e já tentou se matar duas vezes. A
primeira foi há mais de 15 anos, depois do divórcio do ex-marido. Três
anos depois, uma nova crise depressiva resultou na segunda tentativa de
tirar a vida. “Eu não tinha mais graça em viver, para mim o mundo se
resumia em preto e branco.”
As coisas começaram a mudar quando
Teresinha decidiu levar a sério o tratamento, com consultas periódicas
ao psiquiatra e uso de medicação. O apoio da família também foi
fundamental, especialmente nos períodos mais críticos da depressão, em
que ela não podia ficar sozinha em casa.
Teresinha
voltou a trabalhar como babá e fica feliz de servir de exemplo para
quem está passando por momentos difíceis. Seu principal conselho é
procurar ajuda: “Nunca a gente consegue sozinho. Se eu não tivesse
procurado um atendimento especializado eu tinha me consumido. Eles
(profissionais de saúde) são os anjos da minha vida”.
Para o
médico Ives Cavalcanti Passo, o caso de Teresinha comprova o quanto o
suicídio pode ser evitado: “Se a pessoa tem ideação suicida, se tu
identifica e trata bem, é um evento extremamente reversível”.
Virginia Woolf: traumas familiares e obscurantismo
A
“paciente” escolhida no estudo do HCPA teve uma vida conturbada, seja
pelo âmbito familiar como pelo contexto histórico que a Europa vivia na
primeira metade do século 20.
Nascida
em 1882 em um distrito de Londres, Reino Unido, Virginia Woolf cresceu
em meio a artistas e intelectuais fortemente influenciados pelos
pensamentos que surgiam na época, entre eles a psicanálise e o niilismo.
A
professora do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul Elaine Indrusiak lembra que este ideário
pré-guerras mundiais teve forte influência na vida e obra de Virginia
Woolf.
“O choque entre a moralidade vitoriana muito rigorosa e o
obscurantismo que começa a surgir, da falência de tudo (…) Virginia
coloca em letras essa fragmentação que ela vivia e sentia na psique, mas
que também é uma fragmentação da própria sociedade em que ela vive”.
No
âmbito pessoal, a vida de Woolf foi marcada pelas perdas da mãe (aos 13
anos) e de dois irmãos. Várias biografias contam que ela e a irmã
Vanessa foram abusadas sexualmente por dois meio-irmãos mais velhos.
Segundo
Indrusiak, a escritora também não se conformava com a maneira como a
sociedade subjugava as mulheres. Fatores que, associados ao diagnóstico
de transtorno bipolar, explicam muitas das angústias reveladas nos
diários e cartas analisados pelos médicos do HCPA.

Do
ponto de vista literário, a professora destaca que Virginia Woolf é uma
das escritoras que utilizaram de forma mais magistral a técnica do
fluxo de consciência e destaca três obras da romancista inglesa: Rumo ao Farol, Mrs. Dalloway e Orlando.
O
CVV – Centro de Valorização da Vida realiza apoio emocional e prevenção
do suicídio de forma voluntária e gratuita pelo telefone 188, sob total
sigilo, 24 horas por dia. Para mais informações sobre onde procurar
ajuda para si ou para amigos e familiares, acesse aqui

Fonte: BBC Brasil - Créditos: Fernanda Wenzel - Publicado por: Ivyna Souto
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