Antonio Palocci ajudou a criar Lula e agora pode ser o coveiro da criatura e do PT
No início de maio de 2002,
Antonio Palocci, então coordenador do programa de governo de Luiz Inácio
Lula da Silva (PT), ligou na casa do jornalista Edmundo Machado de
Oliveira, seu amigo de três décadas. Queria ajuda para redigir um
documento com compromissos do candidato para uma transição gradual do
modelo econômico.
Lula, explicou Palocci no tom
calmo que sempre o caracterizou, precisava dar uma resposta a
investidores que viam uma ameaça de ruptura.
O risco-país e a cotação do
dólar estavam em alta, enquanto os títulos do governo com vencimento em
2003 sofriam forte desvalorização.
O governo tucano culpava o
“risco Lula”, sintetizado por uma avaliação feita pelo megainvestidor
George Soros ao jornalista Clóvis Rossi, da Folha: a eleição do petista
mergulharia o país no caos.
Oliveira, na época editor de
economia de “O Estado de S. Paulo”, conhecia Palocci desde os anos 1970,
quando militaram na corrente trotskista Liberdade e Luta (Libelu).
Àquela altura, estavam em
sintonia ideológica. Consideravam-se de esquerda, mas estavam
convertidos a princípios da ortodoxia econômica.
Palocci estava recrutando para a
missão outro velho conhecido dos tempos de Libelu, o sociólogo Glauco
Arbix —que no governo Lula presidiu o Ipea (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada).
O trio, explicou Palocci,
deveria trabalhar com máxima discrição. Ainda sem entender direito no
que estava se envolvendo, o jornalista aceitou.
Começava assim a redação do documento que ajudou a pavimentar a vitória de Lula: a Carta ao Povo Brasileiro.
“Éramos uma equipe shadow [da sombra]”, lembra Oliveira, hoje assessor do PT na Assembleia Legislativa de SP.
Pouco mais de 15 anos após
aquela conversa, em 6 de setembro, o mesmo Palocci, agora grisalho, mas
com a mesma tranquilidade na fala, encarou o juiz Sergio Moro e acusou
Lula de ter feito um “pacto de sangue” de R$ 300 milhões com a
Odebrecht.
Desde então, o choque de
petistas com a “traição” de Palocci, que permanece preso no Paraná, se
misturou a uma ironia da política: um dos homens que mais contribuíram
para fazer Lula presidente é sério candidato a ser o responsável pelo
fim da sua carreira.
A acusação tem peso, e não apenas por seu autor ter sido ministro da Fazenda de Lula e da Casa Civil de Dilma.
A paternidade sobre a carta,
embora fosse um projeto coletivo, projetou Palocci no PT, um partido que
naquele momento deixou de ser um eterno derrotado, ao menos no plano
nacional, para dar início a 13 anos no poder.
Porta-voz daquela campanha, o jornalista e cientista político
André Singer, hoje colunista da Folha, diz que o texto é um marco do
“lulismo”, definido por ele como “o conceito de reduzir a pobreza sem
confrontar o capital”.
“Eu tenho restrições ao conteúdo
da carta, mas reconheço que ela cumpriu um papel. Foi uma ponte para a
vitória de Lula”, afirma Singer, que foi responsável pela redação final
do documento.
CONCEITOS INDIGESTOS
Em seu livro “Sobre Cigarras e
Formigas” (2007), Palocci relata que a ideia da carta surgiu num almoço
no restaurante português Adega do Leone, em Ribeirão Preto (SP), cidade
da qual era prefeito.
Estavam à mesa Lula, o então
presidente do PT, José Dirceu, o futuro ministro da Fazenda Guido
Mantega, o então governador do Mato Grosso do Sul Zeca do PT e os
candidatos Aloizio Mercadante (Senado) e José Genoino (governo
paulista).
Tomada a decisão, Palocci quis
propositalmente isolar o PT num primeiro momento. “O que a gente
escrevia era muito diferente do que o PT estava habituado”, diz
Oliveira.
Havia três preocupações:
assegurar o respeito a contratos, rebater a acusação de leniência com a
inflação e, o ponto central, comprometer-se com o superavit primário “o
quanto fosse necessário” para debelar a dívida pública.
Num mundo ainda sem grupos de
WhatsApp, Oliveira, Palocci e Arbix —que não quis ser entrevistado para
esta reportagem — trocavam dezenas de e-mails diários.
“A gente ia experimentando a
forma. Bolávamos a formulação e submetíamos ao Palocci”, diz Oliveira.
Palocci, por sua vez, testava os conceitos com uma plateia ampla —de
João Roberto Marinho, da Globo, a Emílio Odebrecht.
A primeira versão, entregue a
Lula no início de junho, era 100% econômica, lembra o ex-ministro Luiz
Dulci, à época secretário-geral do PT. Tinha algo como metade das 1.746
palavras do formato final.

Diferente de Palocci, àquela
altura novato na nomenclatura petista, Dulci era próximo de Lula desde
antes da fundação do partido — ambos vêm do movimento sindical.
TEMPERO
Ao ler o documento com Lula,
partilharam uma avaliação: era preciso temperar a parte econômica com um
diagnóstico sobre a situação do país, um aceno a uma militância que
estava prestes a engolir conceitos indigestos.
“Palocci queria uma versão mais
curta. Não queria falar de transição, achava que isso ia passar a
impressão de que depois íamos promover uma farra”, afirma Dulci.
No relato de Palocci em seu livro, Lula aceitou a carta com má vontade, como quem toma um remédio amargo.
Dulci tem outra lembrança: “Lula
achava que faltava explicar por que íamos fazer aquilo tudo. Ele
sistematizou muita coisa na carta”.
A pedido do candidato, Dulci
reforçou a ideia de que os compromissos eram uma transição para um novo
modelo. Ganharam destaque petismos típicos, como a frase que abre o
documento — "o Brasil quer mudar, mudar para crescer, incluir,
pacificar".
Juntar a metade econômica do
time de Palocci com os conceitos inseridos por Dulci foi a dura missão
de Singer. “Tive a função de dar unidade ao texto. Foi difícil”, lembra
Singer.
A adrenalina do Dia D, 22 de
junho de 2002, um sábado, comparou-se à de uma redação de jornal, rotina
que ele havia largado por opção. “Terminei a redação no mesmo dia, uns
40 minutos antes da apresentação de Lula. Foi muito, muito corrido.”
ÁLIBI PARA LULA
Nenhum dos autores da carta quis
falar sobre o rompimento de Palocci com Lula. Todos reconhecem, no
entanto, o papel central dele na elaboração de um documento que
redefiniu o partido.
“Palocci não redigiu totalmente,
mas ele teve um peso grande. Ele é o responsável pela parte medular da
carta”, diz Dulci. Anos depois, relembra o ex-ministro, o documento
continuou a ser útil para Lula, já no poder, como uma espécie de álibi.
“Lula sempre se referia à carta
dizendo que tinha que seguir seus compromissos. Lembro que a citou numa
reunião quando [o então vice-presidente, José] Alencar pediu a queda dos
juros. Depois, noutra, quando discutiram o aumento do salário mínimo.”
O documento, prossegue Dulci,
segue atual. “Não pela dúvida de respeitar contrato, isso não existe
mais. Mas por essa crítica a uma ausência de visão de longo prazo, esse
excesso de privatismo, essa bajulação ao mercado.”
Para 2018, ala importante do
partido defende reeditar esse discurso na campanha — na qual a ausência
de Palocci é uma certeza e a presença de Lula, uma incógnita.

Fonte: Cesar Weis - (Folha de S. Paulo)
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