Marido a batia para que ela bancasse luxos dele: ‘Levei 12 anos para conseguir pagar dívida que meu marido fez em meu nome’

Quando
deu à luz seu primeiro filho, pouco antes de completar 29 anos, Annie*
estava casada havia oito anos, coordenava 19 funcionários e ganhava mais
do que o marido.
Ele às vezes era grosseiro e agressivo quando o
casal estava na companhia de outras pessoas – mesmo assim, a esposa
sempre “ficou do lado dele”, a ponto de se afastar de sua própria
família.
Quando
o bebê nasceu, entretanto, a relação mudou – ela foi despedida enquanto
estava em licença-maternidade e ele recebeu uma promoção e um aumento
de salário.
Ele
costumava pagar a hipoteca da casa, localizada perto de Reading, a 65
km de Londres, mas Annie era responsável por praticamente todo o resto.
Após a demissão, ela aceitou um emprego de meio expediente, com salário
mais baixo, mas o companheiro se recusou a dividir o pagamento da babá
ou a aumentar o valor que dava para as despesas domésticas.
Depois
que seus outros dois filhos nasceram, em um intervalo de quatro anos,
ela tinha dificuldades para quitar as contas e comprar comida, roupas,
sapatos e outros produtos essenciais.
Logo a situação se tornou
ainda pior: ele começou a pagar as faturas de seu cartão de crédito, que
incluíam itens de luxo, com o dinheiro destinado para as despesas da
casa.
A história de Annie é típica de um padrão de comportamento controlador conhecido como abuso financeiro, dizem ativistas.
Nicola
Sharp-Jeffs, diretora da ONG britânica Surviving Economic Abuse,
descreve esse padrão como “uma forma quase invisível de violência
doméstica”.
Sharp-Jeffs explica que, nessas situações, as vítimas
se sentem incapazes de deixar seus parceiros abusivos, mesmo quando há
agressão física. Ela quer que o governo do Reino Unido avance com os
planos de incluir esse tipo de violência em uma nova definição legal de
abuso doméstico.
“Nós tínhamos a conta dele, a minha conta e uma conta para as despesas conjuntas”, diz Annie.
“Ele
comprava coisas nos cartões de crédito e, obviamente, quanto mais ele
gastava…mais o valor do débito automático aumentava. Então eu tinha que
colocar mais dinheiro.”
O resultado, diz, foi que o marido “tinha
muito dinheiro”, porque seus gastos com motos, equipamentos fotográficos
de ponta e roupas de grife, eram todos retirados da conta conjunta.
“Enquanto
isso, eu acordava todo domingo de manhã e levava as crianças para
comprar calças de vinte centavos em uma feira de usados.”
‘Tão isolada… tão controlada’
O marido de Annie se tornava cada vez mais violento – no final do casamento, ele batia nela todos os dias.
“Assim que tive meu primeiro filho, ele começou a me bater.”
Ela
diz que o marido se sentiu culpado depois da primeira agressão, chorou e
a presentou com flores, prometendo que nunca faria aquilo de novo.
“Não
é como se alguém entrasse na sua vida um dia e batesse em você. Eles
vão te trabalhando devagar para que você aguente ser agredida”, diz.
“Eu estava tão isolada…você está tão controlada naquele momento.”
Annie começou a trabalhar em tempo integral para levar mais dinheiro para casa, mas o valor não suficiente.
“Eu
ainda não tinha dinheiro para pagar pelo estilo de vida dele ou por
comida para todos nós, então consegui um emprego noturno de limpeza.”
Durante cinco anos, ela trabalhou 60 horas por semana, dormindo apenas quatro ou cinco horas por noite.
Depois
do expediente, colocava as crianças na cama e às 21h seguia para o
outro trabalho, terminando o turno à uma da manhã e começando tudo de
novo às 6h, porque o marido não gostava que as crianças o acordassem.
Além
disso, o companheiro insistia em ter um jantar só para ele todas as
noites. Pago e preparado por Annie, os pratos deveriam estar em uma
bandeja quando ele chegasse em casa.
Falhas nesse sistema resultavam em surras.
“Agora isso me dá vergonha, pensar que eu realmente cheguei a esse estado.”
Sapatos velhos
Ele
a culpava pelos problemas financeiros do casal, acusando-a de ser
incapaz de administrar o próprio dinheiro, fazendo-a se sentir culpada
até por substituir um par de sapatos que estava estragado.
O banco
encorajou-a a fazer um empréstimo para quitar um saldo negativo de 7,5
mil libras (R$ 36 mil, na cotação atual) na conta conjunta, mas a dívida
voltou a crescer pouco tempo depois.
Ela fez outro empréstimo e, desta vez, o banco cancelou o serviço de “overdraft“,
que permite que o correntista gaste mesmo quando não tem dinheiro na
conta – ou seja, que a conta vá ficando cada vez mais negativa até que
entrem recursos suficientes para cobrir o saldo.
Sem essa
alternativa, as despesas do marido rapidamente esvaziaram a conta
conjunta, o que fez o banco recorrer à conta de Annie e, quando essa
também ficou vazia, retirar fundos da conta do marido, o que o deixou
furioso.
Um dia, o casal se encontrou no centro da cidade durante a
hora do almoço para discutir a situação. Foi quando ele deu um soco no
rosto de Annie.
“Fugi para voltar ao trabalho e ele disse: ‘você pode correr, mas vou acabar o serviço quando chegar em casa.'”
Mais
tarde, Annie teve um colapso nervoso durante uma reunião e seu chefe a
chamou para conversar e lhe entregou o número de um abrigo para
mulheres.
“Peguei as crianças na escola e dirigi – e foi isso.”
Ela ficou no abrigo durante seis semanas antes de voltar para casa, depois que o marido foi persuadido a sair.
Ela teve que obter uma liminar e um botão do pânico para impedi-lo de se aproximar da casa, gritar com ela e atacar seus amigos.
A família ficou “instantaneamente” melhor quando o ex-marido e seus gastos descontrolados foram embora, conta a mulher.
No
total, depois que as contas de todos os cartões de crédito, cartões de
loja e débitos automáticos chegaram, Annie ficou com dívidas de cerca de
58 mil libras (R$ 279 mil, na cotação atual).
Ela também assumiu a hipoteca, determinada a manter sua casa.
O
banco tentou reaver o imóvel, mas ela ganhou em apelação e eles
cancelaram as 8 mil libras (R$ 38 mil, na cotação atual) que ela devia.
Em 2017, Annie finalmente quitou as dívidas – 12 anos após o término do casamento – e está quase acabando de pagar a hipoteca.
A casa está vazia e em más condições, mas pelo menos é dela, diz.
Para
pessoas em situações semelhantes, a britânica diz que é importante se
fazer algumas perguntas: “As coisas são igualitárias entre o casal? Seu
companheiro gasta dinheiro em luxos enquanto você fica de bolsos vazios?
Você pode falar livremente sobre finanças sem ninguém ficar nervoso em
casa?”
Como voluntária do Surviving Economic Abuse, ela agora
percebe que tal violência foi um fator chave para ficar no
relacionamento por tanto tempo.
“Eu não tinha dinheiro algum. Eu não podia fazer crédito aparecer do nada”, ressalta.
Ela afirma que odiava o marido e que não estava com ele por amor.
“Eu estava vazia, mas havia alguma parte de mim que sabia que o que ele estava fazendo era errado e que eu tinha que fugir.”
*Foi usado um pseudônimo para proteger a identidade da entrevistada.
Fonte: UOL - Publicado por: Amara Alcântara
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