“Fui abusada por uma freira. Ela dizia que era uma forma de cura”: revela mulher que serviu de inspiração para livro
Diferentes
casos de abuso uniram quatro mulheres de quatro partes do Brasil em um
livro. “As Iluminadas” (editora Qualitymark) narra abusos sofridos por
Sabrina, Carine, Ivana e Edilaine e mostra a guinada que cada uma deu na
própria vida para enfrentar as lembranças. Hoje, o quarteto toca o
projeto social de mesmo nome, que ajuda mulheres em situação de
vulnerabilidade a encarar traumas e a se livrar de violências. A
Universal vai contar a história de todas as autoras em uma série de
matérias. O relato da Ivana foi o primeiro. Conheça a história de
Carine.
Carine não tinha nem 18 anos
quando decidiu abandonar a vida no interior da Bahia para se dedicar a
Deus em Botucatu, no interior de São Paulo. O avô, figura masculina mais
presente na vida da jovem, morreu quando ela tinha 16 anos. Ele
liderava o clã evangélico familiar onde Carine cresceu.
No
mesmo período, ela começou a namorar um homem que a forçava a barra
para ter relações sexuais com ele. “Eu era virgem e só queria fazer sexo
depois do casamento”. As decepções conjuntas se juntaram a um câncer de
ovário que surpreendeu a menina. Ela entrou na menopausa ainda
adolescente. No convento Santa Marcelina, conviveu com a pedofilia por
parte de uma freira.
“Entrei no
convento com a intenção de me isolar do mundo. Éramos 23 meninas,
dormíamos no mesmo quarto. À noite, quando íamos dormir, uma freira nos
abraçava e acariciava. Algumas eram levadas para o quarto dela. Eu
sempre estudei e, em um momento em que não se falava sobre pedofilia, eu
já sabia que tinha algo errado acontecendo ali.
A
gente fazia trabalhos paralelos ao convento. O meu era um projeto
social em escolas nas favelas com os que eram considerados os piores
alunos. Diariamente, eu me reunia com usuários de drogas, meninos
envolvidos com o crime, para tentar levar a palavra de Deus. Como era um
trabalho difícil, todos os dias eu me reunia com uma psicóloga para
passar o relatório dos alunos. Foi ela a primeira pessoa a saber dos
abusos da freira.
Decidi perguntar às
meninas o que acontecia quando ela as levava para o quarto, até então,
nunca tinha acontecido comigo. Elas me contaram que a freira dizia que
as meninas estavam carentes, que não tinham sido amamentadas quando
bebês. Uma delas me disse: ‘Ela age como homem’. E um dia a vítima fui
eu. Ela veio até a minha cama, me acariciou e me levou para o quarto.
Repetiu o processo comigo alegando que era uma “cura intrauterina”. Eram
gestos de casal, uma carícia sexual. Mesmo virgem, eu sabia que aquilo
não era cura de jeito nenhum. Ela gerava carência nas meninas,
principalmente das mais novas, de 13 e 14, para suprir a dela.
Comecei
a perceber que o comportamento das vítimas começou a mudar quando a
frequência dos abusos aumentou. Muitas cortavam os cabelos, deixavam de
se cuidar. Queriam ficar parecidas com meninos, queriam ser invisíveis.
Depois
de um ano e meio, não aguentei mais. Disse à psicóloga que abandonaria o
convento. Ela me apoiou e sugeriu que eu contasse a verdade, mas não
tive coragem. Tive uma conversa com a madre superiora e pedi para sair.
Uma semana depois, liguei e revelei o motivo. Apontei, inclusive, quem
eram as meninas que foram abusadas. A entidade temeu que eu contasse
isso a alguém, por isso designou um frei para me acompanhar por alguns
meses. Eu me calei. Só revelei o que aconteceu quando lançamos o livro.
Eu
me libertei do convento, fiz faculdade de Direito em São José do Rio
Preto, onde trabalhei por dois anos. Voltei para a Bahia e, depois de
seis meses morando lá, recebi uma proposta de trabalho na Angola. Me
casei e tive um filho contrariando meu corpo – menopausado desde os 16
anos.
Eu me ausentei do mercado por
causa de uma depressão, assim que meu filho nasceu. Quando voltei,
iniciei os trabalhos dentro da mudança comportamental. Fiz um curso de
coaching e fui para Ohio para a especialização. Foi lá que conheci as
meninas e descobri que nossas histórias poderiam ajudar outras mulheres.
Com
o lançamento do livro, tivemos oportunidade de fazer palestras
gratuitas para mulheres em situações de vulnerabilidade. Foi uma
alegria. Há convites aqui da Angola, do zumbi dos Palmares… É uma forma
de mostrar que dá para enfrentar os traumas e dar um novo significado a
eles.
Fonte: UOL - Publicado por: Amara Alcântara
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