Cientistas brasileiros reconstituem rosto de indivíduo que viveu há 2 mil anos
O rosto de ‘Ernesto’, reconstruído a partir de crânio de cerca de 2 mil anos de idade encontrado em sítio arqueológico na Zona Oeste do Rio - Divulgalção/Museu Nacional/UFRJ |
Pesquisadores
brasileiros apresentaram na tarde desta quinta-feira a reconstituição
digital do rosto de um original “carioca da gema”. O indivíduo, um homem
com idade estimada em 38 anos e entre 1,4 e 1,5 metro de altura, viveu
na região do que é hoje o Rio de Janeiro há cerca de 2 mil anos.
Apelidado “Ernesto” – homenagem ao odontólogo Ernesto de Salles Cunha
(1907-1977), um dos pioneiros nos estudos de paleopatologia de povos
antigos no Brasil -, ele teve seus restos desencavados nos anos 1980 em
expedições lideradas por Lina Kneip, arqueóloga do Museu Nacional também
já falecida, no Sambaqui do Zé Espinho, em Guaratiba, Zona Oeste da
cidade.
Sambaquis são sítios arqueológicos formados por montes de
conchas e outros materiais construídos intencionalmente por populações
que habitaram o litoral brasileiro entre 8 mil e mil anos atrás e hoje
vistos pelos especialistas principalmente como espaços funerários. O Zé
Espinho tem aproximadamente 4 metros de altura, mas alguns achados no
litoral de Santa Catarina atingem cerca de 30 metros.
– Quando o
Sambaqui do Zé Espinho foi escavado nos anos 1980, foram encontrados 22
esqueletos humanos no total – relembra Murilo Quintans Bastos,
bioarqueólogo do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, da
UFRJ, e um dos responsáveis pelo projeto de reconstrução da face de
“Ernesto”. – Escolhemos então um dos mais bem preservados para
representar como eram os antigos habitantes do Rio. Queríamos dar um
rosto para esses povos para levar as pessoas a pensarem na importância
da preservação de sítios arqueológicos como estes. São as únicas fontes
de informações que temos sobre estas populações, já que elas sumiram
antes de os portugueses chegarem aqui e não existem registros escritos
ou arquitetônicos delas além dos próprios sambaquis. Uma caveira não
costuma ser tão simpática para as pessoas, mas um rosto já gera empatia.
Mas
o trabalho em torno de “Ernesto” não se resumiu à reconstrução de seu
rosto. Em paralelo, os pesquisadores do Museu Nacional também realizaram
um extenso estudo da chamada osteobiografia de seu esqueleto, também
apresentado na tarde desta quinta.
– Como temos um esqueleto
praticamente completo, também pudemos levantar dados sobre possíveis
doenças que afetavam o indivíduo, sua atividade física e outras
informações sobre seu modo de vida que deixaram pistas marcadas em seus
ossos – conta Bastos.
Assim, além da idade e estatura, os
cientistas puderam observar, por exemplo, que seus dentes não tinham
cáries mas apresentavam um grande desgaste, numa indicação de que tinha
uma dieta rica em proteínas, mas pobre em carboidratos. Seu esqueleto
também não tinha marcas de violência, e indícios de artrose na coluna
vertebral e membros superiores indicam uma atividade física mais intensa
com os braços e a parte superior do corpo, talvez por frequentemente
remar por ter vivido em uma região de mangues.
– Os povos
construtores de sambaquis eram formados por grupos de
caçadores-coletores e, em geral, seus restos não têm muitas evidências
de violência, o que sugere uma baixa frequência de conflitos, bem
diferente do que a gente imaginaria – diz Bastos, reforçando não se
poder classificar “Ernesto” como um carioca de fato pelo termo ser de
origem tupinambá, nação indígena que ocupou o território do que é hoje o
Rio depois do desaparecimento destes povos mais antigos da região. –
Agora estamos tentando estudar se e como eles mantinham contatos
intergrupos, com alguns estudos mostrando casamentos entre os grupos,
mas esses trabalhos ainda são muito incipientes.
Um dos principais
responsáveis pela reconstrução da face de “Ernesto”, o especialista em
odontologia legal Paulo Miamoto, professor da Faculdade São Leopoldo
Mandic, com sede em Campinas e unidades espalhadas pelo país, conta que o
primeiro grande desafio do processo foi justamente trabalhar a
distância. Diante disso, ele usou mais de 80 fotos do crânio tiradas de
diversos ângulos pelos pesquisadores do Museu Nacional para montar um
modelo digital em três dimensões do mesmo, numa técnica chamada
fotogrametria. Daí, foi aplicar as técnicas forenses que já usa em
trabalhos de perícia para identificação de vítimas de crimes no modelo, o
que representou outro desafio.
– Lido bastante com casos de
indivíduos modernos, mas tenho pouca experiência com indivíduos num
contexto arqueológico – admite. – Assim, conversei com os pesquisadores
do Museu nacional para saber como era seu modo de vida e como isso
poderia influenciar na sua aparência, como a exposição a intempéries e à
radiação solar. Não podia ser uma reconstrução artificial, ela tinha
que ser cientificamente embasada.
E foi com isso e uma análise
anatômica bem detalhada que revelou, por exemplo, pistas no próprio
crânio de onde os músculos se prendiam aos ossos, que Miamoto chegou ao
rosto de “Ernesto”. Segundo ele, de início achou que teria a uma imagem
muito semelhante aos índios de hoje, mas logo procurou “se policiar”
para não direcionar o trabalho, deixando a cargo dos critérios
anatômicos guiar a reconstrução.
– Não tínhamos uma pré concepção
de como ele se pareceria – destaca. – Fomos levados naturalmente aos
resultados ao longo do processo com base nas informações da anatomia do
indivíduo. O rosto foi aparecendo e foi empolgante ver se materializar o
que antropólogos e arqueólogos tanto falam em seus artigos, contar a
História com um componente visual que coloca a população em geral em
contato com um período histórico que não é comumente abordado. Temos uma
História de muitos séculos antes de Cabral que não vemos sendo
transmitida para a população hoje, e este indivíduo é parte desta
História do Brasil.
O GLOBO
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