Eu sei que você duvida, mas existe sim casamento infantil no Brasil – VEJA VÍDEO
Não é que o casamento seja invisível, é que as pessoas não o reconhecem como um problema.
Casamento infantil consiste em toda
união formal ou informal, na qual pelo menos uma das pessoas tem menos
de 18 anos. O Brasil é o quarto país no mundo com maior índice de
casamentos infantis, e a concentração está no gênero feminino, numa
faixa etária em torno dos 15 anos.
Essas meninas de 15 anos encontram-se
casadas com homens pelo menos nove anos mais velhos, mas não se iludam:
existem registros de centenas e centenas de meninas casadas antes dos 15
anos de idade.
No Brasil 2,9 mil mulheres se casaram
antes dos 18 anos, ou seja, 36% das mulheres casadas o fizeram ainda
meninas. Diante desse fato, sempre percebo uma dúvida envolvendo três
reações: surpresa, descrédito e relativismo.
No início, geralmente existe um
questionamento como: “Isso não pode ser verdade! Vocês checaram esses
dados?”. Então caminham para a surpresa: “Mas eu não imaginava que
também acontecesse por aqui”. E culmina com : “Ah! mas esses números são
absolutos, em números absolutos o Brasil sempre vai ficar nas primeiras
posições em tudo”.
Pensar sobre isso é um importante passo
para uma maior reflexão sobre o casamento infantil – e todo um
funcionamento da sociedade. Não é possível afirmar que o casamento
infantil é desconhecido no Brasil, são 2,9 mil meninas casadas ou
mulheres que se casaram ainda enquanto meninas, um número muito
impactante para não ser notado. Não é que o casamento seja invisível, é
que as pessoas não o reconhecem como um problema.
O casamento das meninas é entendido como
uma resposta para uma série de contextos: sabe aquela família que está
com medo de cair na boca do povo com aquela menina namoradeira? Sabe
quem acha que a menina que tem 13 anos e engravidou vai passar muita
vergonha se tiver um filho-sem-pai? Sabe aquelas pessoas que acham que
lugar de menina não é na rua, que é dentro de casa? Ou ainda aquela
outra que acredita que adolescente não tem valor, não tem opinião e não
tem vez?
Temos
ainda o elemento de uma sociedade adultocêntrica, em que a maioria não
compreende meninas enquanto sujeitas de direitos, agentes em um processo
de transformação social, uma voz a ser ouvida. Mas que ao mesmo tempo
erotiza seus corpos, cria as Lolitas, Anitas, novinhas, como mulheres a
serem desejadas e consumidas. Por sua juventude e baixo nível de poder
em relações estabelecidas com homens mais velhos, estes passam a
deseja-las como esposas ideais.
Todas essas pessoas mobilizam
importantes conceitos que fazem que o casamento infantil seja entendido
como parte de uma solução para a vida dessas meninas. Essas pessoas
estão por toda parte, talvez até você seja uma delas, e é por isso que
você duvida. Você não duvida que o casamento infantil existe, você
duvida que ele seja um problema.
Essas ideias apresentadas mobilizam os
papéis tradicionais de gênero que vão fortemente dizer o que a sociedade
espera do comportamento de meninas e mulheres e de meninos e homens.
Perceba que as meninas são as mulheres no começo de suas vidas e sobre
elas vão recair as mesmas pesadas expectativas, controles e noções –
sobre onde devem estar, como se relacionar e o que fazer – que estão na
vida das mulheres adultas.
Temos então um contexto em que o
casamento passa a ser um destino possível, ainda que você tenha apenas
12, 13, ou 15 anos de idade. E, por favor, não me diga que isso só
acontece em lugares muito pobres, porque se fosse por condição social,
os meninos pobres se casariam da mesma forma, certo? O que podemos
afirmar é que um contexto de vulnerabilidade econômica aprofunda essa
possibilidade, porque se acrescenta ai a demanda de fugir da fome ou de
diminuir uma boca faminta dentro de casa.
O
casamento infantil existe, você precisa enxergá-lo, nomeá-lo e não pode
entendê-lo como uma solução. Ele deve ser compreendido como uma
violação de direitos humanos de meninas, e não devemos fazer a rasa
análise que o enxerga como uma escolha das meninas.
A maioria dessas meninas não teria
condições de decidir. Segundo o ECA (Estatuto da Criança e do
Adolescente), elas são sujeitos em condições peculiares de
desenvolvimento. Além, uma escolha é feita mediante um repertório de
opções, e que outras opções essas meninas tinham no momento do seu
casamento?
Condições como violência familiar,
privação de mobilidade, desrespeito a sua condição na sociedade e no
mundo, controle da sexualidade, compreensão social de que somente ao
lado de um homem uma mulher está completa e pode ser respeitada,
precisam ser profundamente analisadas e enfrentadas. Também não podemos
confundir relação sexual com reprodução e casamento – as pessoas colocam
tudo em um assunto só como se estivéssemos falando da mesma coisa, e
não estamos.
As meninas no Brasil que se casam e têm
seu primeiro filho por volta dos 15 anos, enfrentam desafios adicionais
na gravidez, parto e puerpério, muitas vezes vivenciando agravos a sua
saúde que persistirão por toda a vida. Os seus bebês têm mais risco de
sofrer mortalidade infantil, e elas, mortalidade materna.
Em geral, as meninas deixam a escola, a
liberdade tão sonhada fica cada vez mais distante (uma vez que o risco
de exposição a violência por parceiro íntimo aumenta). Nessa relação
desigual de poder, elas ficam proibidas de estudar, muitas até de
frequentar a casa de suas famílias e amigas.
Eu sei que você duvida, mas o casamento
infantil existe. E ele não é uma solução. Precisamos discutir sobre a
socialização de gênero, sobre como os papéis tradicionais de gênero
fortemente disseminados em todos os âmbitos da prática social incidem
sobre a percepção de que uma menina não tem direito a liberdade,
sexualidade saudável e deve ser mantida sob controle e autoridade
masculina.
Esse
é um exercício para cada uma e cada um de nós realizarmos, revisitando
as noções sobre meninas e mulheres, sobre por que é aceitável esse
controle com submetimento de seus corpos e existência – e o motivo de
imaginarmos que apenas o casamento, a despeito de todas as violações a
ele inerentes, é uma solução para suas vidas.
Pensemos nisso!
*Viviana Santiago é Gerente Técnica de Gênero na Plan International Brasil.
Fonte: Huffpost - Publicado por: Alana Beltrão
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