Travesti carioca enfrentou a Ditadura Militar e superou 50 anos de prostituição
A
costureira Anyky Lima, de 60 anos, é uma travesti que saiu da curva das
estatísticas e se tornou idosa em um País onde a expectativa de vida de
uma travesti ou transexual é de 35 anos. Mas nem ela sabe como
conseguiu sobreviver tanto tempo depois de ter sido expulsa de casa aos
12 anos, ser garota de programa durante a ditadura e ter se prostituído
até os 50 anos. Tudo isso num Brasil que lidera rankings mundiais de
violência contra travestis e transexuais.
Depois de tanta luta,
vivendo à margem da sociedade, Anyky deixa a dimensão social para
adentrar à realidade legal, com a conquista da retificação de nome, que
enterra de vez o constrangimento de ser chamada pelo nome masculino de
nascimento, o qual não revela.
A nova documentação da idosa trans
virou motivo de comemoração em Belo Horizonte (MG). A foto da costureira
segurando seu RG ganhou curtidas e compartilhamentos no Facebook. Foram
oito meses e muita burocracia para que, enfim, Anyky conseguisse ser
reconhecida pelo sexo que sempre se identificou. Condição compartilhada
atualmente por cerca de 1,4 milhão de travestis e mulheres e homens
trans no Brasil.
Além de nascer de um gênero e se reconhecer de
outro, Anyky também divide com milhares de pessoas trans uma história de
vida marcada pela rejeição, prostituição e violência.
Aos sete
anos, o típico menino do Rio de Janeiro se via mais como uma das quatro
irmãs do que como o único irmão homem. A família, nordestina e
tradicional, não soube lidar com o fato de seu pequeno na verdade sonhar
em ser pequena. Em cinco anos, com a chegada da puberdade, a situação
se tornou insuportável e a desinformação e o preconceito, atualmente
perdoados por Anyky, fez com que o jovem garoto fosse expulso de casa.
Aos
12 anos, no auge da Ditadura Militar, ao lado da recém-amiga Sandra
Dragão, conseguiu carona, a muito custo, para ir para Vitória (ES). A
dificuldade de encontrar um motorista que concordasse em levá-las veio
das chagas nos braços da colega, que ostentava marcas de cortes
profundos feitos durante brigas com policiais, que só a deixavam em paz
após ela se navalhar, para que seu sangue se espalhasse e os agentes se
afastassem com medo de se infectar com uma suposta Aids.
O
regime ditatorial perseguia as trans, ora machucando, ora humilhando,
como quando Anyky foi presa e solta somente após os pelos do seu rosto
crescerem, para que, quando andasse pelas ruas, as pessoas notassem que,
na verdade, ela era biologicamente homem.
Durante seis anos,
Anyky viveu na capital do Espírito Santo como garota de programa. E foi
na noite que conheceu um namorado, que a ajudou a voltar para o Rio de
Janeiro e a comprar duas máquinas de costura. Foi então que se tornou
costureira de fantasias para escola de samba. A grana curta não deixava a
jovem deixar a prostituição e, assim, continuou seu movimento pelas
ruas cheias de bossa do Rio.
Na época, o corpo apresentava formas
curvilíneas, adquiridas com o uso de muito hormônio feminino sem
prescrição médica e à base de silicone industrial. A complexidade da
mistura de substâncias usadas durante toda a vida tornou a saúde de
Anyky algo frágil e misterioso. Hoje, sobraram as dores da rejeição do
corpo diante de materiais desenvolvidos para serem usados em máquinas e
não em pessoas.
Com 30 anos, Anyky, “cidadã do mundo”, decide se
mudar para Minas Gerais, onde continou se prostituindo. O tempo,
implacável, passou. O número de clientes caiu e as contas continuavam a
chegar. Aos 50 anos, Anyky decidiu que era a hora de se aposentar, mas
uma aposentadoria compulsória, porque, após décadas se prostituíndo,
voltar a uma vida diurna seria um desafio. Agora, a idosa se dedica a
dar palestras, lutar pelos direitos LGBT e orientar as trans que alugam
quartos em sua pensão, que não é um prostíbulo. Seis jovens dividem o
teto com Anyky, que se vê responsável por dar dicas às mais jovens, que
incluem guardar dinheiro, ir ao médico e pagar impostos para garantir
uma aposentadoria no futuro.
Operação de mudança de sexo nunca foi
uma opção. Ela garante que se sente mulher do jeito que é. Para ela,
restou agradecer por não ter morrido nesse trajetória, sorte que muitas
mulheres e homens trans não têm. Anyky não morreu, mas garante que morre
um pouco toda vez que sabe que uma pessoa trans é assassinada só pelo
fato de ser quem se é. Em seis anos, a costureira morreu mais de 600
vezes, considerando apenas os registros oficiais.
R7
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