Adlène Hicheur, Condenado por terrorismo na França, dá aulas na UFRJ

Até
ser preso, Hicheur era considerado um cientista brilhante, especialista
em física das partículas elementares. Ele integrava a equipe da Organização Europeia de Pesquisa Nuclear (CERN, na sigla em francês) que mantém em Genebra, na Suíça,
o maior laboratório de aceleração de partículas do mundo, uma espécie
de santuário para os PhDs da área. Em 2009, ele teve uma crise de dores
na coluna, tirou uma licença médica e foi para a casa dos pais, na
França. Lá, passou a frequentar um fórum na internet usado por
jihadistas e a trocar mensagens com um interlocutor apelidado de “Phenix Shadow” (fênix da sombra, numa tradução literal). Sob essa alcunha, escondia-se a identidade de Mustapha Debchi, apontado pelo governo francês como um membro da Al Qaeda na Argélia.
O site já era investigado pela polícia francesa, que identificou potencial de risco nas mensagens enviadas por Adlène Hicheur e passou a monitorá-lo.
ÉPOCA obteve os 35 e-mails trocados por ele e decriptografados pela inteligência francesa. Eles usavam um programa de criptografia chamado Asrar, criado pela Al-Qaeda para trocar informações e armazenar conversas sigilosas.
As mensagens entre “Phenix Shadow” e Hicheur começaram genéricas. “Phenix Shadow” menciona o governo do então presidente francês Nicolas Sarkozy, para quem, diz ele, a sua hora chegaria “em breve”. Na sequência, “Phenix” pergunta a Hicheur se ele estaria disposto a fazer um ataque suicida. Recebe uma negativa como resposta. Ao longo da conversa, “Phenix” fez uma abordagem sem rodeios a Hicheur: “Caro irmão, vamos direto ao ponto: você está disposto a trabalhar em uma unidade de ativação na França? Que tipo de ajuda poderíamos te dar para que isso seja feito? Quais são suas sugestões?”.
ÉPOCA obteve os 35 e-mails trocados por ele e decriptografados pela inteligência francesa. Eles usavam um programa de criptografia chamado Asrar, criado pela Al-Qaeda para trocar informações e armazenar conversas sigilosas.
As mensagens entre “Phenix Shadow” e Hicheur começaram genéricas. “Phenix Shadow” menciona o governo do então presidente francês Nicolas Sarkozy, para quem, diz ele, a sua hora chegaria “em breve”. Na sequência, “Phenix” pergunta a Hicheur se ele estaria disposto a fazer um ataque suicida. Recebe uma negativa como resposta. Ao longo da conversa, “Phenix” fez uma abordagem sem rodeios a Hicheur: “Caro irmão, vamos direto ao ponto: você está disposto a trabalhar em uma unidade de ativação na França? Que tipo de ajuda poderíamos te dar para que isso seja feito? Quais são suas sugestões?”.
A resposta de Hicheur veio cinco dias depois. “Sim,
claro”. Ele esclarece ainda que planejava deixar a Europa nos próximos
anos, mas que poderia rever o plano. Para permanecer, Adlène Hicheur
colocou uma condição: a criação de uma estratégia precisa: “Trabalhar no
seio da casa do inimigo central e esvaziar o sangue de suas forças”.
Para o plano da “unidade de ativação” na França, Hicheur sugere diversos
alvos. “Precisamos trabalhar para acelerar a recessão econômica, ou
seja, atingir as indústrias vitais do inimigo e as grandes empresas,
como Total, British Petroleum, Suez”, escreveu Hicheur, que também
menciona também ataques a embaixadas. Os alvos seriam os governos que
ele classificou de “incrédulos”: “Executar assassinatos com objetivos
bem estudados: personalidades europeias ou personalidades bem definidas
que pertençam aos regimes incrédulos (em embaixadas e consulados, por
exemplo)”.
Com mensagens tão claras, a polícia francesa decidiu
prender Hicheur. Afastou-se a possibilidade de que a conversa seria
apenas uma postura crítica ao governo – ou o exercício da liberdade de
expressão. A polícia ainda encontrou em seu computador um arquivo
criptografado no qual se discutia o envio de € 8.000 euros para a Al
Qaeda. Ao ser preso, ele disse que era um “bode expiatório”. Muitos de
seus colegas ficaram ao seu lado. Em uma carta enviada em 2011 para
Sarkozy, um grupo de cientistas questionou a prisão de Hicheur.
Imaginavam que o franco-argelino era apenas um usuário a mais navegando
em fóruns na internet. Naquele momento, contudo, a polícia francesa
ainda não tinha divulgado os e-mails sobre os ataques, que nunca foram
desmentidos por Hicheur e revelaram-se decisivos para que a Justiça
francesa o condenasse como terrorista.
Em 2012, o caso de Hicheur
foi citado num estudo da ONU sobre o uso da internet em atentados
terroristas. Virou exemplo das “diferentes formas em que a internet pode
ser usada para facilitar a preparação de atos de terrorismo, incluindo
comunicações entre organizações que promovem o extremismo violento”.
Depois de obter a liberdade condicional, em 2012, Hicheur dedicou-se a
duas coisas: mudar informações na Wikipedia a seu respeito, que
mencionam o caso de terrorismo, e a tentar recuperar o emprego no CERN.
Ele foi barrado, porém, pela polícia suíça. Em abril de 2015, ao julgar
um recurso de Hicheur, a Justiça suíça manteve a proibição da presença
do cientista no país até abril de 2018. “A gravidade dos fatos leva o
tribunal a considerar que a manutenção da interdição de entrada se
justifica por motivos ligados à segurança interior e exterior da Suíça.
As atividades executadas pelo recorrente são, com efeito, objetivamente
de uma gravidade suficiente para justificar a decisão de afastamento”,
diz a decisão da Justiça.
O que a Suíça considerou grave não foi
impedimento para que Hicheur viesse para o Brasil, onde ele entrou em
2013 depois de obter uma bolsa do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O órgão diz que, ao
contratar, faz “análise baseada no mérito científico da proposta e no
currículo do candidato”. Desde então, Hicheur vive no Rio e tem visto de
trabalho garantido pela Universidade Federal do Rio Janeiro até julho
deste ano. Entre 2013 e 2014, Hicheur recebeu R$ 56 mil como bolsista do
CNPq. Depois, tornou-se professor visitante da UFRJ, com salário de R$
11 mil por mês. Questionada por ÉPOCA sobre os
antecedentes de Hicheur, a UFRJ disse que a sua contratação seguiu as
normas usuais para professores visitantes estrangeiros, de quem são
exigidos passaporte com visto.
No Brasil, Hicheur leva uma vida
discreta. Mas isso não impediu que ele virasse alvo de uma operação
secreta do grupo antiterrorismo da PF, em outubro. Sua casa e seu
laboratório na UFRJ sofreram uma busca e apreensão, com autorização da
Justiça. A investigação da PF começou quase por acaso – depois de uma
reportagem da CNN em espanhol, que entrevistou frequentadores de uma
mesquita no Rio de Janeiro sobre o atentado ao semanário Charlie Hedbo,
em Paris, em janeiro de 2015, que deixou 12 mortos. Durante a
reportagem, um dos entrevistados defendeu o ataque e tirou a camisa. Por
baixo, ele estampava outra roupa com o símbolo do Estado Islâmico. Na
tentativa de identificar o autor da mensagem pró-terrorismo, a PF
descobriu que Hicheur frequentava a mesquita. O cientista passou então a
ser um alvo prioritário da polícia, que apura se há ligações dele com o
ato registrado no vídeo. ÉPOCA descobriu que Hicheur
procurou o Ministério da Justiça, em setembro de 2014, para pedir a
alteração da sua nacionalidade, no visto de permanência no Brasil, de
francesa para argelina. Isso significa que, no caso de uma expulsão de
Hicheur do Brasil, ele seria deportado para a Argélia e não para a
França, onde foi condenado.
Uma das listas da Interpol, a polícia
internacional, é a chamada difusão verde, com informes sobre pessoas que
já cometeram crimes e que representam uma ameaça. ÉPOCA questionou
a embaixada da França em Brasília se Hicheur foi alvo de comunicações
desse gênero e se outros países foram informados da condenação, como
forma de fazer controle na fronteira – a exemplo do que fez a Suíça. A
embaixada não se pronunciou especificamente sobre o caso. “A Embaixada
da França não se manifestará sobre a situação atual do senhor Adlène
Hicheur”. De acordo com a nota, “tratando-se da luta contra o
terrorismo, as autoridades francesas competentes mantêm um diálogo
estreito, direto e útil com as autoridades brasileiras competentes”. A
instituição informou ainda que, como ele tem nacionalidade francesa, ele
não está impedido de voltar à França.
No Rio, Adlène Hicheur mora
em um prédio de quatro andares de classe média numa rua tranquila do
bairro da Tijuca. Por ainda tropeçar na língua portuguesa, o porteiro
tem dificuldades para compreendê-lo e, sem gravar o nome do inquilino, o
identifica “como um rapaz barbudinho” que costuma sair por volta das 7h
e só voltar à noite. Segundo vizinhos, houve uma mudança brusca na
rotina do cientista, que mandou um familiar de volta para a Europa e
passou a viver sozinho. Na UFRJ, Hicheur ocupa uma sala pequena no final
de um corredor mal iluminado, no terceiro andar do Instituto de Física. ÉPOCA o
localizou lá no começo da tarde da última quinta-feira. A surpresa da
visita o deixou nervoso. Começou a tremer e se recusou a dar entrevista.
“Não posso falar e gostaria de ser deixado em paz. Se você escrever ou
falar qualquer coisa, você não imagina as consequências para você e para
mim. É só isso”, disse o professor, sem explicar a que se referia
exatamente. “Esse tipo de assunto hoje em dia não é assunto tratado de
maneira analítica e com razão. Estamos numa época de histeria”, afirmou.
“Eu decidi não falar nada só para reconstruir minha vida. Não é porque
eu não tenha razão. Eu tenho razão. Tenho muita coisa para falar. Mas
deixa o tempo falar sobre isso.” Em seguida, acrescentou: “Não sou uma
pessoa pública. Estou protegendo minha vida privada e de minha família.
Não tenho qualquer impacto sobre o destino do mundo.” Por fim, deixou
uma incógnita no ar sobre a operação de busca e apreensão feita pela PF
em sua casa e no laboratório da universidade: “Sua informação não vem da
Polícia Federal. São eles que contataram você (de ÉPOCA)”. Ele não esclareceu quem seriam “eles”.
Os
líderes da Mesquita da Luz, no Rio, querem que a Polícia Federal
descubra a identidade e o paradeiro do homem que se manifestou a favor
de terroristas, dentro do templo, logo após o atentado contra o Charlie
Hebdo no ano passado. A Sociedade Muçulmana do Rio de Janeiro,
responsável pela mesquita, tem repudiado publicamente os ataques do
Estado Islâmico, em especial o que ocorreu de novembro passado em Paris.
Para o presidente da entidade, Mohamed Zeinhom Abdien, muitas pessoas
não distinguem terroristas dos seguidores do islamismo e isso aumenta a
estigmatização dos muçulmanos. “Denunciamos a ação do simpatizante do
Estado Islâmico à Polícia Federal. Queremos mostrar que a gente não
concorda com essas coisas. Nossa religião não é essa. Queremos viver em
paz com o próximo”, diz Abdien, que não foi informado sobre o resultado
da investigação pela PF.
A investigação da PF sobre Adlène é
baseada na suspeita de incitação ao crime e propaganda em favor da
guerra. Embora a Constituição de 1988 cite terrorismo, até hoje o
Congresso Nacional não criou uma lei para classificar o que seria um
ataque terrorista. Por isso, as investigações sobre ameaças terroristas
no Brasil têm de se basear em crimes laterais, sempre com penas mais
brandas. Com os ataques a Paris em novembro, ganhou força a discussão de
um projeto de lei para enfim criminalizar o terrorismo. Mas, por causa
da situação política atribulada do país, sua votação pela Câmara ficou
para este ano – se o debate sobre o impeachment da presidente Dilma
Rousseff não atrapalhar. O projeto prevê penas duras para quem executar,
financiar, preparar ou fazer apologia a atos terroristas. Há um ponto
específico que interessa aos especialistas em terrorismo: o combate aos
chamados “atos preparatórios”. Ou seja, planejar – antes mesmo de
executar um atentado – já será considerado crime. Com esse
enquadramento, as autoridades policiais esperam viabilizar operações
para que os atentados sejam evitados. Se a nova lei for aprovada,
mensagens como a de Hicheur (“executar assassinatos com objetivos bem
estudados”) possivelmente teriam o mesmo entendimento dado pela Justiça
francesa. Hoje, contudo, há um vácuo jurídico. No ano passado, a PF
realizou pelo menos quatro operações antiterrorismo, sempre baseadas em
crimes menores. Enquanto as Olimpíadas se aproximam e o Congresso não se
apressa em votar uma legislação anti-terror, o Brasil vive uma situação
diferente de outros países: combate um terrorismo sem dispor de uma
lei.
Época
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