'Século passado foi bem melhor', diz produtora rural sobre falta de chuva
Conceição do Coité perdeu 80% da safra de inverno de 2014, diz prefeitura.
169 das 417 cidades da Bahia registram situação de emergência no estado.
Manoel Pereira de Souza e Maria do Carmo de Oliveira nasceram no mesmo
dia (30 de abril de 1956) e vieram ao mundo com a ajuda da mesma
parteira. Como casal, estão juntos há 23 anos. Outro período marcante
desses 58 anos de vida é dividido pelos dois: o convívio com a intensa
seca no município de Conceição do Coité, a 210 quilômetros de Salvador, no semiárido baiano.
Plantações de milho mortas na entrada da cidade sinalizam o cenário de
perdas provocadas pelos longos períodos de estiagem. Sem chuvas
suficientes para o abastecimento total dos reservatórios, desde 2004, os
produtores da cidade contabilizam os prejuízos e tentam administrar as
dificuldades que envolvem o convívio com a seca.
Maria detalha que a chegada dos anos 2000 marca o início de um período
que ela denomina como "milênio da seca" na região. "O século passado foi
bem melhor do que esse que entrou. [A última chuva capaz de encher
todas aguadas e cisternas] tem uns 10 anos, quando papai faleceu. Foi em
2004. Os riachos queriam levar até a gente. De lá para cá, ficou
difícil", lembrou.
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Manoel Pereira e Maria do Carmo perderam todas as plantações de milho e feijão (Foto: Henrique Mendes / G1) |
Para o casal, o verão parece ser a única estação do ano. "No inverno,
caíram umas chuvas bem fininhas. Não adiantaram", destaca Manoel. Com as
garoas do período, a vegetação superficial vingou produzindo uma
sensação visual de prosperidade do solo, só que para os leigos.
Conhecido como "seca verde", o fenômeno não mais ilude os produtores.
De acordo com o Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar
(Sintraf) do município, 80% da safra de inverno deste ano foi perdida e
70% das represas, cisternas, açudes, tanques e barreiros estão secos. A
prefeitura local atesta os números e alerta que praticamente todos os
mananciais estão operando abaixo do nível na região. Por conta da
situação, o município integra a lista de 169 das 471 cidades baianas que
estão situação de emergência devido a estiagem.
Na comunidade de Cansanção, onde vivem cerca de 70 famílias do
município, Manoel pouco lucrou ou consumiu da última colheita, em
setembro. O trabalho pesado da roça rendeu apenas no aproveitamento de
20% de tudo o que foi plantado. De 20 sacas de feijão esperadas, apenas
uma vingou.
As raspas da mandioca colhida serviram apenas para alimentar os
animais, já que o pouco obtido não tinha qualidade de comercialização.
"É uma história de convivência com a seca. Há um bom tempo, o que se
planta não se colhe. Esse feijão aqui [espalhado no chão do quintal] foi
comprado", evidencia o produtor a crise vivida, inclusive, na colheita
para consumo próprio.
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Maria do Carmo acredita que região vive o 'milênio da seca' (Foto: Henrique Mendes / G1) |
Foi neste cenário que os produtores rurais criaram dois filhos e, mesmo
diante de severas restrições, ofertaram a ambos a oportunidade de
formação escolar.
"Todo dia me lembro da dificuldade para manter na escola. Eles ajudavam
nos trabalhos [no campo], mas não deixamos que isso atrapalhasse nos
estudos", ressalta Maria do Carmo. Com o filho mais velho morando em
Salvador e a mais nova, de 20 anos, estudando geografia na Universidade
Estadual de Feira de Santana (UEFS), ela destaca com orgulho as
conquistas obtidas diante da forte restrição econômica imposta pela
seca. "Nós ficamos sem as coisas para mantê-la [na universidade]", diz a
mãe.
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Raspas da mandioca espalhadas na varanda só foram usadas na alimentação dos animais (Foto: Henrique Mendes / G1) |
Raspas da mandioca espalhadas na varanda só foram usadas na alimentação dos animais (Foto: Henrique Mendes / G1)
Com 80% das plantações perdidas, além da fragilidade de saúde causada
pela policitemia, doença caracterizada pelo excesso de células vermelhas
no sangue, Manoel explica que os programas sociais, como as bolsas
estiagem e família, são socorros providenciais durante os períodos de
pouca chuva.
"É o que tem ajudado. Nessa geração, tem que ter paciência pra viver no
semiárido", admite. Com duas cisternas abastecidas com menos da metade
da capacidade, o casal aguarda com ansiedade a possibilidade da
"trovoada de novembro", que é uma chuva capaz de fazer transbordar os
reservatórios. As expectativas são mantidas, mesmo diante da
imprevisibilidade meteorológica.
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Meio à seca, plantação de abbóbora também não vinga na propriedade de Manoel (Foto: Henrique Mendes / G1) |
Administrar a pouca água é um desafio diário. "É fazendo economia. Não
desperdiçando. Não jogando de qualquer forma, mas limpando mais com o
pano. Também deixamos de molhar o que não está produzindo", conta Maria
do Carmo. Fora isso, Manoel Pereira destaca a existência do
compartilhamento de água com os moradores que, devido à estiagem, veem
as cisternas secarem.
“Um tem que ajudar o outro. Não tem como negar água, né? Sem água não
há vida”, atesta. Mesmo com as dificuldades, o casal de produtores
rurais nunca pensou em deixar o município. "Pra falar a verdade, eu não
penso. Apesar dos pesares, até o momento não passou pela minha cabeça”,
ressalta Maria do Carmo.
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70% das aguadas, cisternas, barreiros e tanques estão secos na zona rual de Coité (Foto: Henrique Mendes / G1) |
Assim como atestado por Manoel e a esposa, o Sindicato dos
Trabalhadores da Agricultura Familiar (Sintraf) do município afirma que
as tecnologias de convívio com seca são fundamentais nos períodos de
estiagem. Conforme o técnico de agropecuária Urias Rios de Oliveira, que
atua no Movimento de Organização Comunitária (MOC), ONG que presta
auxílio aos produtores rurais, além das cisternas ofertadas por meio de
programas federais, os moradores da região receberam auxílio na
construção de canteiros econômicos propícios para a plantação de
verduras e hortaliças, que favorecem a manutenção da agricultura de
subsistência. “Quem não tem essas tecnologias não tem como produzir”,
afirma Urias.
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Manoel Pereira nada aproveitou da plantação de milho na safra de inverno (Foto: Henrique Mendes / G1) |
Êxodo Rural
Nas proximidades do distrito de Cansanção, no município de Conceição do
Coité, onde moram Maria e Manoel, os produtores rurais do quilombo
"Maracujá" também enfrentam dificuldades relacionadas aos longos
períodos de estiagem. De acordo com o presidente da associação de
moradores da comunidade, Hélio Oliveira, de 26 anos, mesmo com as
tecnologias que permitem o convívio com a seca, os prejuízos aos
produtores são inevitáveis. “Viver aqui é muito difícil. Quando chega um
período desse, então. A minha família perdeu a plantação de milho e
feijão completamente. Aqui todo mundo perdeu”, destaca Hélio.
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Por causa da alta demanda, carro-pipa chegou na casa de Vilma após um mês (Foto: Henrique Mendes / G1) |
Segundo o produtor rural, que mora com pais e irmãos, a família perdeu
toda a produção na safra de inverno. Das sete sacas de feijão e 15 de
milho esperadas, nenhuma rendeu. Neste cenário de perdas, Hélio explica
que a saída para a maioria dos trabalhadores são os programas sociais e o
trabalho em funções distantes do campo. “Às vezes, a saída é trabalhar
fora. Em Coité [na sede do município], em Salvador.
Tem muita gente que vai para São Paulo também. Se for ver bem, talvez,
tem mais gente daqui em são Paulo do que os que são daqui e residem
aqui. Quem está lá, ajuda quem está aqui. Se não for assim, fica
difícil”, argumenta.
No contexto local, Hélio explica que o abastecimento das cisternas com
carros-pipa é um serviço indispensável. “Agora, tá um pouco complicado,
porque não tem como colocar [água por meio dos carros-pipa] em cada
casa. Então, coloca em um ponto e as pessoas vão pegar naquele ponto
para atender a comunidade inteira”, explicou. Conforme a prefeitura
local, desde o início do ano, não houve paradas de abastecimento de
carros-pipa na zona rural. A grande demanda, entretanto, tem atrasado
alguns atendimentos. A cota é de 25 veículos por dia, e o serviço custou
ao município R$ 252 mil entre janeiro e julho.
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Estiagem levou casal Teônia Lopes e Genivaldo Pereira a trazer fécula do Paraná para produzir beiju em Coité (Foto: Henrique Mendes / G1) |
Foi o que aconteceu com Vilma Ferreira dos Santos, de 36 anos, que também reside no quilombo "Maracujá". O G1 acompanhou
a chegada de um carro-pipa na residência onde a dona de casa mora com a
família. “Estou com a cisterna seca já há um mês e tanto. Aqui, as
pessoas ainda têm um pouquinho da água das chuvas nas cisternas. Só que a
minha estava meio suja, lavei, aí ficou sem. Pedimos na prefeitura, aí
conseguimos. [Pedi] tem mais de um mês, mas é porque está abastecendo
muitos lugares também e estão priorizando as casas que têm pessoas
deficientes. Aí, demorou um pouco”, detalhou.
Por causa dos prolongados períodos de estiagem, Vilma explica que a
família quase não produz mais alimentos. “Aqui chove, mas é sempre
pouco. Aí não dá nada. Está tudo aí morrendo. Aqui perde sempre
[plantações]. A gente nem planta mais. Aqui planto mais milho,
ultimamente. Feijão mesmo não planto mais”, explicou.
Fécula do Paraná
No Povoado de Onça, também na zonal rural de Conceição do Coité, a
estiagem alterou a dinâmica de produção de beiju na residência de Teônia
Lopes, de 50 anos. Devido a limitada oferta de mandioca na região,
consequência da pouca chuva que cai na localidade, ela tem comprado
fécula do estado do Paraná. “A gente compra e mistura com a nossa”,
detalha.
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70% das aguadas, cisternas, barreiros e tanques estão secos na zona rual de Coité (Foto: Henrique Mendes / G1) |
Apesar da estiagem, Teônia afirma que as pequenas garoas do inverno
possibilitaram o desenvolvimento da "tarefa de mandioca" plantada nos
terrenos da família, que corresponde a 0,43 hectare. “Em 2011, não teve.
Em 2012, também não. Em 2013, a gente conseguiu colher um pouco",
disse. O medo em casa é que a seca vivida volte e a esperada trovoada de
novembro, que é capaz de transbordar as cisternas e aguadas na região,
não ocorra. “Se chover, a gente ganha tudo [da atual plantação de
mandioca]. Se passar mais meses sem chover, a gente vai perder”, explica
Genivaldo Pereira, de 50 anos, marido de Teônia.
Resistindo ao período de estiagem, Genivaldo mostra como o tempo seco
afeta a qualidade da mandioca. “Tá vendo aqui? Essa raiz só tem uma
mandioca. Às vezes, chega a ter oito”, detalha. De acordo com a
secretária de Políticas Agrícola e Agrária do Sintraf, Hilda Mercês, o
impacto da seca na produção tem afetado o comércio do município. “Chuva
boa é aquela em enche os tanques e possibilita a produção de alimento
nas roças. Infelizmente, há tempo essa chuva não cai na região e as
plantações não têm prosperado. Isso tem alterado o movimento na feira,
que tem diminuído”, relatou.
Crise do Sisal
A 26 quilômetros de Conceição do Coité, os moradores do município de
Valente, que têm como fonte principal de economia a produção de sisal,
também aguardam com ansiedade a "trovoada de novembro". O sisal é uma
planta mais resistente ao clima seco e usada pela indústria de cordas e
tapetes pela sua dureza.
Após ter enfrentado um período de três anos praticamente sem chuvas
(2010-2013), que levou a região a enfrentar uma crise de abastecimento, o
medo da população é que os efeitos da estiagem sejam agravados. “Ainda
vivemos o reflexo da última seca. Agora, está recomeçando tudo. Em 2014,
houve umas chuvas no início do ano e no inverno choveu pouco. Todo
mundo está traumatizado e já está com medo”, destaca Gerlândio Oliveira,
gerente administrativo da Associação de Desenvolvimento Sustentável e
Solidário da Região Sisaleira (Apaeb).
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Valente já produziu 500 toneladas de sisal por mês; hoje não produz 100 (Foto: Henrique Mendes / G1) |
Moradora da comunidade de Barriguda, Nilza Lima, de 53 anos, mostra que
o terreno onde trabalha já enfrenta problemas com a estiagem. "Tem
muito sisal morrendo. Ele não está resistindo a falta de chuvas",
comentou. Acompanhado de Gerlândio Oliveira, o G1
visitou a localidade e atestou a mortandade da espécie na localidade. "O
sisal está bem falhado e com grandes espaçamentos. Aqui, 60% já deve
ter morrido", alertou.
Além da seca, a plantação do local está enfrentando uma praga conhecida
como "Podridão Vermelha", doença causada por um fungo. "Quando você
está imunologicamente frágil, não fica mais suscetível a doenças? O
mesmo ocorre com o sisal. Frágil por conta da falta de chuvas, a
plantação foi atingida por essa praga", considerou.
Segundo Gerlândio Oliveira, a produção de sisal no município já chegou a
ser de 500 toneladas por mês na década de 90. Hoje, ele detalha que a
produção não chega a 100 toneladas. "Estamos no aguardo da trovoada de
novembro. No ano passado, essa chuva amenizou os prejuízos. Nosso medo é
que a seca volte com tudo outra vez. Convivemos ano a ano com essa
preocupação", concluiu.
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Antes tomado por sisal, terreno tem plantação irregular e com espaçamentos (Foto: Henrique Mendes / G1) |
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