sábado, 1 de novembro de 2014

"Ilha"

Família rejeita oferta milionária, e casa resiste ao avanço imobiliário em São Paulo

Sobrado na Vila Madalena virou 'ilha' em lançamento de construtora. 
Samba Ó do Borogodó, barbeiro dos anos 50 e marcenaria são locatários.

Lívia Machado Do G1 São Paulo 

Na Rua Horácio Lane, apenas um imóvel resistiu a oferta de compra de construtora (Foto: Flávio Moraes/G1)
Na Rua Horácio Lane, apenas um imóvel resistiu a oferta de compra de construtora (Foto: Flavio Moraes/G1)
Na esquina das ruas Cardeal Arcoverde e Horácio Lane, vias conhecidas da Vila Madalena, na Zona Oeste de São Paulo, um imóvel virou uma espécie de "ilha" dentro de mais um grande lançamento imobiliário na região. Um acordo familiar fez com que os donos resistissem às ofertas milionárias da construtora Even, que confirma a futura transformação da área de 3.730 metros quadrados, que circunda o sobrado, em um condomínio de alto padrão.
O espaço abriga locatários antigos. Um dos mais conhecidos é a casa de samba Ó do Borogodó. Além do reduto boêmio, há uma marcenaria tocada por um casal de nordestinos há 15 anos e um remanescente barbeiro português, que já soma quase seis décadas no espaço.
O sobrado integra parte dos bens deixados pelo dentista David Antônio Martins à família. Na divisão da herança, o imóvel adquirido em 1958 foi escolhido por três dos sete filhos. “Não teve problema nenhum. Cada um ficou com o que queria. E foi decidido que ninguém venderia nada enquanto a mamãe fosse viva”, explica a escritora Janise Martins, uma das herdeiras. 
Sobrado na esquina entre as ruas Cardeal Arcoverde e Horácio Lane, na Vila Madalena, foi comprado pela família Martins em 1958 (Foto: Flávio Moraes/G1)
Sobrado na esquina das ruas Cardeal 
Arcoverde e Horácio Lane, na Vila Madalena, 
foi comprado pela família Martins em 1958 
(Foto: Flavio Moraes/G1)
Os aluguéis são a fonte de renda de dona Angelina Martins, 94 anos, viúva de David. “O meu pai sempre quis a segurança dela. Minha mãe vive muito bem com a renda de tudo que o papai deixou. Não se sabe quanto tempo ela vai viver e ela tem que ter a segurança e o conforto, com tudo que ela precisa”, completa Janise.
Segundo a escritora, a família já era assediada por construtoras à época do acordo, após o falecimento de seu pai, em 2010. Há cerca de três anos eles resistem às propostas. Janise revela que David sempre investiu o dinheiro que tinha na compra de imóveis. “Não sei como vai ser o dia que a mamãe morrer. Meu pai sempre foi da ideia de que comprar é bom, vender é péssimo”, relata.
Para viabilizar o projeto, a construtora Even arrematou diversos terrenos do quarteirão. Na rua Horácio Lane, uma marmoraria e a antiga casa de prostituição Conniff foram duas das construções demolidas.
Angelina, dona do imóvel da Cardeal, ao lado de quatro dos sete filhos.  (Foto: Arquivo pessoal)
Angelina, dona do imóvel da Cardeal, ao lado de 
quatro dos sete filhos. (Foto: Arquivo pessoal)
O empreendimento da construtora prevê apartamentos de 121 metros quadrados, três suítes, quadra, piscina coberta, salão de jogos, academia, salão de festas, churrasqueira, brinquedoteca e bicicletário – no valor médio de R$ 1,5 milhão por unidade.
O imóvel da família Martins já divide o espaço com a estrutura montada para o pré-lançamento. Janise revela que a oferta graúda só foi recusada por causa do acordo entre os irmãos. “Talvez teria sido muito melhor vender se a gente não tivesse esse pacto pela mamãe. É mais importante para nós pensar no bem estar dela do que no lucro pessoal que cada um teria com a venda de imóveis", pondera.

Os aliviados
A resistência da família Martins beneficiou diretamente a vida de dois dos mais antigos locatários. Dilma Freitas, dona da marcenaria À Moda Antiga, disse que a ameaça de despejo sempre foi um fantasma. “Eu morria de medo. Se vendesse, a gente tem nossa casa para trabalhar, mas não ia ganhar o que conseguimos ganhar trabalhando aqui", compara.

Dilma Freitas respirou aliviada quanto renovou o contrato e teve a certeza que não teria de sair do local  (Foto: Flávio Moraes/G1)
Dilma Freitas ficou aliviada ao renovar o contrato e saber que não teria de sair do local (Foto: Flavio Moraes/G1)
O temor não era infundado. Pelo bairro, a informação da venda circulava como verdade oficial. No posto de gasolina da rua Inácio Pereira da Rocha, em meados de agosto, os frentistas anunciavam aos clientes a notícia. “Sabia que o Ó do Borogodó vai sair de lá? Venderam quase todos os imóveis da [rua] Horácio Lane”, diziam em tom de lamento.
Dilma revela que pôde dormir tranquila quando teve o contrato de aluguel renovado por mais três anos. “Só aí é que tive a certeza de que não iriam vender. Tirou meu sono.” Aos 15 anos, ela deixou a cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, para realizar o sonho de viver em São Paulo. Trabalhou como costureira, foi pintora de peças de carro até casar com João Freitas e ajudá-lo no ramo de móveis.
Há 15 anos eles alugam a esquina do imóvel da família Martins. Apaixonados pela Vila Madalena, conseguiram juntar dinheiro e comprar a casa própria a poucos metros do local onde trabalham. “Sempre moramos na Vila Madalena, estamos há 40 anos aqui. Amo esse bairro”, afirma Dilma.
Vizinho do casal, Joaquim Gonçalves garante ser um dos raros barbeiros da cidade. Locatário mais antigo, ele gasta suas navalhas em barbas, cabelos e bigodes há quase 60 anos. Começou como funcionário do tio, assim que chegou de Portugal. Dividiu o espaço com um primo posteriormente, e desde 2005 cuida sozinho da clientela que acumulou.
O barbeiro português Joaquim Gonçalves teria de aposentar as navalhas se o imóvel que aluga fosse vendido. (Foto: Flávio Moraes/G1)
O barbeiro português Joaquim Gonçalves teria de aposentar as navalhas se o imóvel que aluga fosse vendido. (Foto: Flavio Moraes/G1)
A cadeira dos clientes, fincada no diminuto espaço nos anos 50, decora o ambiente de azulejos azuis e pôsteres do time da Portuguesa. A possibilidade de deixar seu negócio quase histórico também o perturbou. “Se vendesse, eu ia ter que cair fora. Fiquei com receio. Se eu saísse, era capaz que parasse com a profissão", comenta.
A alternativa seria recorrer ao plano B que já tinha em mente. “Acho que ia trabalhar de segurança da escola da minha filha, porque ficar em casa à toa não dá." Com o contrato renovado, ele não pensa mais em aposentar as navalhas. “Vou ficar até a hora que der”.
Procurados pela reportagem, os sócios do Ó do Borogodó não quiseram falar com o G1. Há cerca de dez anos no local, a casa de samba que ostenta semanalmente filas na porta, não renovou o contrato de aluguel, que tem prazo indeterminado. Mas, segundo os funcionários e os proprietários do imóvel, por ora, não há planos de mudança.

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