Família rejeita oferta milionária, e casa resiste ao avanço imobiliário em São Paulo
Sobrado na Vila Madalena virou 'ilha' em lançamento de construtora.
Samba Ó do Borogodó, barbeiro dos anos 50 e marcenaria são locatários.
Na Rua Horácio Lane, apenas um imóvel resistiu a oferta de compra de construtora (Foto: Flavio Moraes/G1) |
Na esquina das ruas Cardeal Arcoverde e Horácio Lane, vias conhecidas
da Vila Madalena, na Zona Oeste de São Paulo, um imóvel virou uma
espécie de "ilha" dentro de mais um grande lançamento imobiliário na
região. Um acordo familiar fez com que os donos resistissem às ofertas
milionárias da construtora Even, que confirma a futura transformação da
área de 3.730 metros quadrados, que circunda o sobrado, em um condomínio
de alto padrão.
O espaço abriga locatários antigos. Um dos mais conhecidos é a casa de
samba Ó do Borogodó. Além do reduto boêmio, há uma marcenaria tocada por
um casal de nordestinos há 15 anos e um remanescente barbeiro
português, que já soma quase seis décadas no espaço.
O sobrado integra parte dos bens deixados pelo dentista David Antônio
Martins à família. Na divisão da herança, o imóvel adquirido em 1958 foi
escolhido por três dos sete filhos. “Não teve problema nenhum. Cada um
ficou com o que queria. E foi decidido que ninguém venderia nada
enquanto a mamãe fosse viva”, explica a escritora Janise Martins, uma
das herdeiras.
Sobrado na esquina das ruas Cardeal
Arcoverde e Horácio Lane, na Vila Madalena,
foi comprado pela família Martins em 1958
(Foto: Flavio Moraes/G1)
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Os aluguéis são a fonte de renda de dona Angelina Martins, 94 anos,
viúva de David. “O meu pai sempre quis a segurança dela. Minha mãe vive
muito bem com a renda de tudo que o papai deixou. Não se sabe quanto
tempo ela vai viver e ela tem que ter a segurança e o conforto, com tudo
que ela precisa”, completa Janise.
Segundo a escritora, a família já era assediada por construtoras à
época do acordo, após o falecimento de seu pai, em 2010. Há cerca de
três anos eles resistem às propostas. Janise revela que David sempre
investiu o dinheiro que tinha na compra de imóveis. “Não sei como vai
ser o dia que a mamãe morrer. Meu pai sempre foi da ideia de que comprar
é bom, vender é péssimo”, relata.
Para viabilizar o projeto, a construtora Even arrematou diversos
terrenos do quarteirão. Na rua Horácio Lane, uma marmoraria e a antiga
casa de prostituição Conniff foram duas das construções demolidas.
Angelina, dona do imóvel da Cardeal, ao lado de
quatro dos sete filhos. (Foto: Arquivo pessoal)
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O empreendimento da construtora prevê apartamentos de 121 metros
quadrados, três suítes, quadra, piscina coberta, salão de jogos,
academia, salão de festas, churrasqueira, brinquedoteca e bicicletário –
no valor médio de R$ 1,5 milhão por unidade.
O imóvel da família Martins já divide o espaço com a estrutura montada
para o pré-lançamento. Janise revela que a oferta graúda só foi recusada
por causa do acordo entre os irmãos. “Talvez teria sido muito melhor
vender se a gente não tivesse esse pacto pela mamãe. É mais importante
para nós pensar no bem estar dela do que no lucro pessoal que cada um
teria com a venda de imóveis", pondera.
Os aliviados
A resistência da família Martins beneficiou diretamente a vida de dois
dos mais antigos locatários. Dilma Freitas, dona da marcenaria À Moda
Antiga, disse que a ameaça de despejo sempre foi um fantasma. “Eu morria
de medo. Se vendesse, a gente tem nossa casa para trabalhar, mas não ia
ganhar o que conseguimos ganhar trabalhando aqui", compara.
Dilma Freitas ficou aliviada ao renovar o contrato e saber que não teria de sair do local (Foto: Flavio Moraes/G1) |
O temor não era infundado. Pelo bairro, a informação da venda circulava
como verdade oficial. No posto de gasolina da rua Inácio Pereira da
Rocha, em meados de agosto, os frentistas anunciavam aos clientes a
notícia. “Sabia que o Ó do Borogodó vai sair de lá? Venderam quase todos
os imóveis da [rua] Horácio Lane”, diziam em tom de lamento.
Dilma revela que pôde dormir tranquila quando teve o contrato de
aluguel renovado por mais três anos. “Só aí é que tive a certeza de que
não iriam vender. Tirou meu sono.” Aos 15 anos, ela deixou a cidade de
Natal, no Rio Grande do Norte, para realizar o sonho de viver em São
Paulo. Trabalhou como costureira, foi pintora de peças de carro até
casar com João Freitas e ajudá-lo no ramo de móveis.
Há 15 anos eles alugam a esquina do imóvel da família Martins.
Apaixonados pela Vila Madalena, conseguiram juntar dinheiro e comprar a
casa própria a poucos metros do local onde trabalham. “Sempre moramos na
Vila Madalena, estamos há 40 anos aqui. Amo esse bairro”, afirma Dilma.
Vizinho do casal, Joaquim Gonçalves garante ser um dos raros barbeiros
da cidade. Locatário mais antigo, ele gasta suas navalhas em barbas,
cabelos e bigodes há quase 60 anos. Começou como funcionário do tio,
assim que chegou de Portugal. Dividiu o espaço com um primo
posteriormente, e desde 2005 cuida sozinho da clientela que acumulou.
O barbeiro português Joaquim Gonçalves teria de aposentar as navalhas se o imóvel que aluga fosse vendido. (Foto: Flavio Moraes/G1) |
A cadeira dos clientes, fincada no diminuto espaço nos anos 50, decora o
ambiente de azulejos azuis e pôsteres do time da Portuguesa. A
possibilidade de deixar seu negócio quase histórico também o perturbou.
“Se vendesse, eu ia ter que cair fora. Fiquei com receio. Se eu saísse,
era capaz que parasse com a profissão", comenta.
A alternativa seria recorrer ao plano B que já tinha em mente. “Acho
que ia trabalhar de segurança da escola da minha filha, porque ficar em
casa à toa não dá." Com o contrato renovado, ele não pensa mais em
aposentar as navalhas. “Vou ficar até a hora que der”.
Procurados pela reportagem, os sócios do Ó do Borogodó não quiseram falar com o G1.
Há cerca de dez anos no local, a casa de samba que ostenta semanalmente
filas na porta, não renovou o contrato de aluguel, que tem prazo
indeterminado. Mas, segundo os funcionários e os proprietários do
imóvel, por ora, não há planos de mudança.
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