A morte de Anayde Beiriz
(Do meu livro que está nascendo "A Guerra de Princesa)
A MOÇA MALTRAPILHA, coberta de andrajos, cabelos desalinhados, olhos
vazios, sem esperança, senta-se na calçada do asilo disposta a dali não
sair mais. Noventa dias se passaram desde que saíra escondida da
Parahyba à cata de notícias de João Dantas. A ele tivera acesso apenas
uma vez, na Casa de Detenção. Depois não a deixaram mais entrar. Ninguém
quis recebe-la em casa, não tinha casa, não tinha amigos, estava só.
Perambulando pelas ruas, comendo do que lhe davam, engolindo as sobras
dos outros, guardava consigo o vidro com os comprimidos, última
lembrança do namorado: - Tome, quando não tiver mais jeito, engula.”
Anayde Beiriz tinha pouco mais de 20 anos e quem a visse pensaria que
era uma velha: jeito cansado de quem muito viveu, passos trôpegos de
quem cansou de viver.
Andou e vagou, e nas últimas horas nem ao silêncio teve direito. As
bombas, os tiros e as cornetas anunciavam a revolução. O rádio do
jornaleiro acabara de reportar o suicídio de João Dantas. Pra que viver
mais?
Sentou-se na calçada, num derradeiro gesto. Abriu o frasco, retirou os
compridos e os engoliu no seco. Ali ficaria até morrer. Melhor assim,
melhor do que viver vagando. Melhor morrer e se encontrar com João num
mundo menos cão, mais compreensivo, sem preconceitos, sem comadres
fuxiqueiras, sem patrulhas, sem amarras.
Foi assim que a freira Maria Cecilia, do Bom Pastor, no Bairro de
Madalena 870, a recebeu na enfermaria do asilo: a cabeça pendida sobre o
peito, o ar de indiferença que precede a morte lhe anuviando o rosto,
um caco jogado no chão.
Levada para a enfermaria, Anayde morreu duas horas depois. O atestado de
óbito nº 2585, dizia que uma indigente, sem pai, sem mãe, sem trabalho e
sem endereço certo, fora enterrada no cemitério de Santo Amaro como
desconhecida, depois de morrer envenenada.
A freira Maria Cecilia relembraria em 1980 o episódio de Anayde: “Em
1930 eu tinha 32 anos e ainda era na hierarquia do convento, uma jovem
professa com atuação bastante limitada na administração do asilo. Mas,
bem me recordo quando Anayde chegou com crises compulsivas de vômito,
sem condições para que se fizesse o registro de seu ingresso. Foi
recebida pela irmã mestra Maria de Todos os Santos (já falecida), que na
vistoria habitual da bagagem das recém-chegadas, encontrou um vidro
onde restavam alguns comprimidos. Quase todos já tinham sido ingeridos
pela agonizante – que chegara conduzida sob custódia. A irmã superiora
tomou então duas providências: chamou um médico e pediu a Anayde que
justificasse em carta as razões de seu gesto, para resguardar a
responsabilidade da instituição de caridade. Esse documento, bem como os
pertences da suicida, ficaram com a polícia, que prontamente compareceu
ao local, convocada pela Madre Superiora. Discretamente retiraram o
cadáver, num caixão branco, pelo portão dos fundos. Anayde aparentava
uns 20 anos e tinha bonitas feições. Entrou no asilo às 11 horas e
morreu às 13:30hs”.
“A altivez é o traço predominante do meu caráter, porém minha mágoa mais
dolorosa é saber-me impotente para vencer meu destino”. (Anayde Beiriz –
1-11-1928)
Na imprensa da Paraíba Anayde deixou crônicas que identificavam a sua personalidade. Eis um rápido apanhado dos seus escritos:
“E, bem sabes, no amor, como em tudo, apenas me seduz a originalidade
A razão por que gostei de ti?
Porque pensei que tu eras louco
Tive sempre a extravagância de achar deliciosos os loucos que julgam ter juízo.
As marcas das minhas carícias não foram feitas para desaparecer facilmente.
Mil outros lábios que se incrustarem na tua boca não arrancarão de lá a lembrança da minha.
Mas, se ainda assim, o conseguires, a tua vitória não será duradoura.
Não há vantagem em esquecermos hoje o que temos de lembrar amanhã
Apraz-te que eu guarde os teus beijos
Guardá-los-ei, por enquanto.
O meu amor é bem diferente: é impulsivo, torturante, estranho, infernal”
**
“Muitas atitudes minhas, incompreensíveis aos olhos desses fariseus por
aí, vinham do angustioso recalque dos ímpetos de minha alma e da
obrigação em que estava de dizer pela metade, aquilo que eu poderia
dizer totalmente.”
“Eu possuo essa impetuosidade despreocupada e desinteressada dessa raça
mestiça de que descende minha família paterna, também possuo, num grau
tão alto como ninguém talvez possui, a altivez e o orgulho dessa raça de
sertanejos a que pertence a minha mãe. A altivez é o traço predominante
do meu caráter, porém minha mágoa mais dolorosa é saber-me impotente
para vencer meu destino.”
“Elevemos a mulher ao eleitorado. Em vez de a conservarmos nesta
menoridade convidemo-la a colaborar com o homem na oficina política.”
**
Passou a escrever em pequenos jornais e revistas e se destacou como a
primeira mulher na imprensa alternativa paraibana identificada com o
movimento modernista. Lírica, com uma imaginação criadora marcadamente
evadindo-se rumo ao sonho, ela escreveu:
“Eu escrevo para criar um mundo no qual possa viver. Procuro criar um
mundo como se cria um determinado clima, uma atmosfera onde eu pudesse
respirar.
Devemos conquistar nossa força e edificar nossos valores com base no
desenvolvimento pessoal e na descoberta de nós mesmos. Contra as
desigualdades, as injustiças”
E acrescenta, voluntariamente exilada na produção literária, não
apenas em texto acabado, estruturado definitivamente, sobretudo gerador
de sentidos:
“Se você não respira quando escreve, não grita, não canta, então sua
literatura será limitada. Quando não escrevo, meu universo se reduz,
sinto-me numa prisão. Perco minha chama, minhas cores. Escrever para mim
é uma necessidade.”
**
O poeta Vanildo Brito dedicou, anos depois, este soneto a Anayde Beiriz:
PAVANA PARA ANAYDE BEIRIZ
Anayde Beiriz, o tempo é cego
e cegos seus escuros labirintos,
mas não desfez o itinerário certo
da verdade sepulta sobre os mitos
da História. O teu martírio
retorna agora resgatado à Sorte:
no sudário da morte.
(Não choremos, Amiga, que o silêncio
Em breve será música no tempo.)
II
Nós vemos-te Anayde quase impúbere
em torno à tua sina acorrentada,
seres ferida pelos ódios rudes
das multidões incendiárias;
vemos também teus íntimos segredos
que com tanto desvelo acalentaste,
devassados e expostos nos roteiros
maledicentes da cidade;
...............................................................
Anayde Beiriz, a mão do tempo
refez a tua face peregrina,
Não mais se cala o frio esquecimento
Agora és fábula menina
Fonte: Blog do Tião Lucena
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