Vozes pela Amazônia: “Se a floresta tombar, nós vamos juntos”, diz ecólogo Nobel da Paz
Cientista norte-americano que atua há quatro décadas no Brasil destaca papel da Amazônia no equilíbrio climático e critica “agenda da morte” de Bolsonaro
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| Amazônia: floresta presta serviço ambiental inestimável. (iStock/Thinkstock) |
São Paulo – O cientista norte-americano Philip Fearnside conhece a Amazônia
como poucos. Ele fincou os pés na região no final dos anos 1970 e
chegou a viver a beira da Transamazônica em experiência de campo para
seu doutorado. Não à toa, tornou-se um dos nomes mais respeitados
internacionalmente quando o assunto é a maior floresta tropical do mundo. Em 2007, o ecólogo recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC).
Fearnside é pesquisador titular há mais
de quatro décadas no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa),
um dos mais importantes centros de pesquisa sobre o bioma, que estuda
desde o impacto da perda de floresta sobe os regimes de chuvas até o
desenvolvimento de produtos a partir da biodiversidade amazônica.
Em entrevista para o site EXAME, o
cientista critica as decisões do governo federal para a pasta ambiental
e destaca o papel central que a Amazônia desempenha no equilíbrio do
clima planetário.
Segundo ele, a morte da floresta emitiria
mais gases de efeito estufa para a atmosfera do que a humanidade tem
emitido através de suas atividades, como queima de combustível fóssil
para geração de energia e uso da terra. Isso iniciaria um processo
incontrolável de aquecimento global, com graves consequências para as
sociedades humanas.
“O fato de termos um governo que
deliberadamente ataca o meio ambiente é muito grave e estimula um estado
de impunidade e o aumento do desmatamento que estamos vendo. Não dá
para esperar três anos e meio para o fim do mandato atual para
começarmos a fazer nossa parte no combate às mudanças climáticas,
precisamos de ações imediatas, que passam pelo combate ao desmatamento e
reconhecimento do aquecimento global”, diz o ecólogo.
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| Philip Fearnside: Nobel da Paz e pesquisador sênior do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) |
Philip
Fearnside: Nobel da Paz e pesquisador sênior do Instituto Nacional de
Pesquisas da Amazônia (Inpa). (Arquivo pessoal/Divulgação)
Confira a entrevista na íntegra a seguir:
EXAME: O governo anunciou cortes nos
orçamentos para pesquisa no Brasil. Como isso afeta o trabalho dos
cientistas e institutos que estudam meio ambiente, incluindo o Inpa?
Fearnside: Há limitações
claras aí, como a falta de dinheiro, que afeta os investimentos em
pesquisa e a falta de pessoas, já que não estão contratando gente, não
tem editais, não tem concursos para substituir quem está indo embora. Os
centros de pesquisas estão encolhendo. É uma situação que tem se
agravado ao longo dos anos, mas se torna ainda mais crítica sob o atual
governo, que deixou o país sem concursos para contratação de pessoal.
Isso é terrível. Por exemplo, quase metade das pessoas que trabalham no
Inpa terão direito de se aposentar dentro de um ano. Além disso, nem
dinheiro para bolsa de pesquisas tem. Por conta dos cortes, o CNPq
[Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]
suspendeu a concessão de novas bolsas de pesquisa e talvez nem haja
dinheiro suficiente para pagar as bolsas existentes depois de setembro.
EXAME: Recentemente, Noruega e
Alemanha suspenderam as doações de recursos ao Fundo Amazônia, principal
ferramenta para preservação da floresta. Em resposta, o governo federal
“desdenhou” dos milhões de dólares já doados. Como o sr. avalia esses
eventos?
Fearnside: No caso do
Fundo Amazônia, os recursos ajudam no trabalho de preservação da
floresta. Tanto na parte de monitoramento que o Inpe [Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais] realiza quanto nas ações de fiscalização a
cargo do Ibama, além de muitas outras iniciativas de Ongs, governos
estaduais e demais entidades. Infelizmente, com a alta de desmatamento
na floresta, esses países doadores suspenderam os repasses, mas isso faz
parte do acordo, já que as doações são atreladas à redução do
desmatamento. É um quadro gravíssimo. E é evidente que o atual ministro
do Meio Ambiente e o presidente se empenharam em desacreditar o
programa, criando uma ideia de que há corrupção no processo do Fundo.
Também tentaram usar verba das doações para indenizar proprietários
rurais. Há muitos sinais ruins surgindo do atual governo. Inclusive,
essa seria a razão para o aumento do desmatamento, a retórica do governo
cria um ambiente de impunidade.
EXAME: Em 2007, ano em que o
sr. recebeu o Nobel da Paz pelo IPCC, o Brasil coibia fortemente o
desmatamento na Amazônia. Já passaram 12 anos desde então. Como o sr.
recebeu a notícia de que o desmatamento aumentou mais de 40% entre julho
de 2018 e agosto deste ano, conforme indicaram os dados do sistema de
monitoramento Deter, do Inpe?
Fearnside: Sem
surpresas. Eu já imaginava que isso fosse acontecer devido ao discurso e
às ações que o governo vem adotando desde o começo do ano. Mas o que me
surpreendeu foram as acusações contra o Inpe. A ideia aventada pelo
presidente de que os dados sobre desmatamento são manipulados com ajuda
de ONGs é totalmente falsa, pura fantasia. Agora, me preocupa o que vai
acontecer com o Inpe, que tem um novo diretor [o militar Darcton
Policarpo Damião]. Pelo que li a respeito, ele diz não estar convencido
da comprovação do aquecimento global.
Uma pessoa que diz isso não tem
qualificação para assumir o Inpe, é como dizer que o homem não pisou na
lua. Atualmente até o próprio presidente nega isso e já indicou dois
ministros que também negam esse fenômeno. Não temos mais como esperar
três anos e meio para o fim do mandato do atual governo para começar a
fazer nossa parte no combate às mudanças climáticas, precisamos de ações
imediatas, que passam pelo combate ao desmatamento.
EXAME: No Acordo de Paris, o Brasil se
compromete a reduzir 43% das emissões nacionais até 2030 comparado a
2005. Na situação atual, como é possível alcançar esse objetivo? E qual o
papel da Amazônia nesse processo?
Fearnside: O primeiro
ponto mais importante é combater o desmatamento. Claro, também
precisamos reduzir o uso de combustível fóssil, mas no caso do Brasil,
diferentemente de outros países que não têm tanto desmatamento, a perda
de floresta acaba sendo muito importante aqui. As áreas preservadas na
Amazônia representam um enorme potencial de emissão de carbono se forem
desmatadas. Quando Bolsonaro esteve aqui em Manaus no final de julho,
ele prometeu asfaltar a rodovia BR-319, que liga Manaus a Porto Velho, e
também falou de planos para abrir novas estradas. Isso tem enormes
impactos para o desmatamento no futuro.
Ao abrir grandes blocos de floresta a
oeste do rio Amazonas, você gera mudanças na geografia do desmatamento
que implicam grandes emissões de gases efeito estufa, além de todos os
outros impactos que a perda da floresta causa, como perda biodiversidade
e todo potencial de pesquisa e desenvolvimento de soluções a partir
dela, e também a reciclagem de água. A floresta amazônica é essencial
para manter as chuvas em São Paulo e em outros lugares no Sudeste do
Brasil, ela garante água para a sobrevivência de grandes centros
populacionais.
Durante o período chuvoso, em dezembro,
janeiro e fevereiro, quase 70% da chuva no Sudeste vem da Amazônia, e
não do oceano Atlântico. Isso é grave para a agricultura e suprimento de
alimentos e de água e para a geração hidroelétrica, já que os
reservatórios são abastecidos pelos ciclos de chuvas. Se atualmente, a
situação dos reservatórios preocupa, a ponto de já termos usado volume
morto, imagina se perdermos toda a água que vem da Amazônia. A floresta
nos presta um serviço ambiental inestimável.
EXAME: Qual será o impacto sobre o clima do Brasil e do mundo se a Amazônia tombar?
Fearnside: O Brasil é um
ponto chave no equilíbrio climático, por conta da quantidade de carbono
estocada na floresta amazônica, tanto nas árvores quanto no solo. Não
podemos ultrapassar os chamados tipping point, os pontos de
inflexão, em que a floresta entraria num ciclo irreversível de perda de
árvores, queimadas e liberação de gás de efeito estufa, que
consequentemente pioraria as mudanças climáticas. Esse é um dos pontos
para o equilíbrio ambiental. A morte da floresta emitiria mais gases de
efeito estufa para a atmosfera do que a humanidade tem emitido através
de suas atividades, como queima de combustível fóssil para geração de
energia e uso da terra, e iniciaria um processo incontrolável de
aquecimento global.
E aí precisamos lembrar que esses grandes
problemas ambientais têm enormes impactos sobre as populações,
especialmente as mais pobres. Lembra dos relatórios que a Dilma Rousseff
tentou suprimir em 2015? Mais de 300 pesquisadores produziram o estudo
[Primeiro Relatório de Avaliação Nacional do Painel Brasileiro de
Mudanças Climáticas, PBMC], que traça mudanças climáticas em curso no
Brasil e seus impactos até o ano de 2040. O agravamento da seca em
regiões que já vivem em situação limítrofe, como no Nordeste do Brasil,
seria um desastre, que criaria dezenas de milhares de refugiados
ambientais.
O fato de termos um governo que
deliberadamente ataca o meio ambiente é muito grave e estimula esse
estado de impunidade e aumento do desmatamento que estamos vendo. Mais
grave ainda é negar o aquecimento global. Não temos tempo para não agir
sobre esse assunto, é uma coisa com consequências fatais, pessoas vão
morrer e cidades vão colapsar. É verdade que os problema ambientais
também existiam em governos anteriores, mas o quadro geral piorou muito
com o atual governo.
EXAME: O sr. publicou um artigo recentemente na revista Environmental Conservation, editada pela Universidade de Cambridge, em
parceria com o pesquisador Lucas Ferrante, também do Inpa, que critica a
chamada “agenda de morte” do governo para o meio ambiente. O que seria
essa agenda?
Fearnside: Como o
próprio título do artigo sugere, o novo presidente do Brasil ameaça o
meio ambiente, povos locais e o clima global. Há todo um conjunto de
propostas legislativas da bancada ruralista para reduzir áreas
indígenas, unidades de conservação, limitar a fiscalização e basicamente
acabar com o licenciamento ambiental, que é uma ferramenta para evitar
grandes impactos, além da liberação de agrotóxicos. É uma coisa
gravíssima.
Muita gente argumenta que os Estados
Unidos derrubaram florestas e agora são um país rico. Isso não se
sustenta. Quando você derruba floresta, você empobrece os solos para a
agricultura. As regiões americanas que mais tinham florestas hoje são
bolsões de pobreza, a população vive com ajuda do governo. Há exceções?
Sim, no Brasil por exemplo o Paraná devastou florestas para expansão
agrícola, mas é um estado que tem o solo muito bom, é uma característica
local. Este não é o caso da floresta amazônica, o solo é diferente lá. É
mito achar que destruir floresta vai ser bom para o desenvolvimento do
país.
EXAME: O mesmo se aplica à mineração na região?
Fearnside: Sim, é o
mesmo discurso de que abrir tudo para a mineração é o caminho para o
progresso. Existe uma “maldição dos recursos naturais”, que explica a
ironia presente no fato de que os países mais ricos em minérios são os
mais miseráveis, veja o Congo e a Bolívia, por exemplo. Há toda uma
literatura explicando porque esse tipo de riqueza não leva à melhoria de
um país. Começou com a chamada doença holandesa. Nos anos 1960, a
Holanda descobriu gás e petróleo no mar do norte e todo mundo imaginou
que isso melhoria o país, mas de repente todos os níveis de bem estar
humano caíram, houve um impacto inverso ao esperado, dada a concentração
de recursos em uma só atividade.
É o mesmo caso da mineração em muitos
países, que cria um custo social muito grande. Essa mesma lógica ameaça a
Amazônia, com o projeto para liberar a mineração em terras protegidas.
Outra proposta perigosa é a do Flávio Bolsonaro, para acabar com o
conceito de Reserva Legal. Mas Reserva Legal é o que existe em termos de
regulamento para restringir desmatamento dentro de propriedade privadas
e é essencial para manter os serviços ambientais da floresta.
EXAME: Qual o melhor caminho para garantir o desenvolvimento social, econômico e ambiental da Amazônia?
Fearnside: Temos
diferentes desafios aí. Tem problemas urbanos das cidades amazônicas, os
problemas de sustentar as pessoas que moram no interior em regiões de
floresta e o problema das áreas já desmatadas para pastagens. No caso
das cidades, há o desafio de criar empregos suficientes para sustentar
as populações urbanas e ter recursos para investir da infraestrutura da
cidade, principalmente em saneamento básico. Para as populações que
moram na floresta, defendo os serviços ambientais. Para isso, precisamos
mudar a base da economia, que hoje gira em torno da destruição da
floresta, você desmata, vende madeira, depois transforma em pastagem e
por aí vai. Temos que mudar para um modelo baseado na manutenção da
floresta de pé.
Preservar a biodiversidade, garantir a
reciclagem da água e evitar o aquecimento global valem mais do que
desmatamento. Áreas desmatadas ocupadas por pastagem não sustentam a
população na Amazônia, pois é uma atividade com demanda mínima de mão de
obra. O agropecuarista pode ficar rico, mas sozinho. Devemos, portanto,
desencorajar esse tipo de desenvolvimento. Hoje, temos muitas
populações em assentamentos sustentadas pelo governo, através de
programas como o Bolsa Família. As áreas ainda protegidas do
desmatamento precisam ser alvo desse tipo de arranjo, de pagamento por
serviço ambiental. Mas é importante que as pessoas que recebam benefício
por conta da floresta, tenham consciência da importância da floresta de
pé.
EXAME: Os incêndios na Amazônia
chamaram atenção mundial, o que motivou toda uma pressão internacional
sobre o governo brasileiro agora. Isso pode ser bom para a floresta?
Fearnside: O governo
presta atenção às pressões internacionais. Acredito que foi por isso
justamente que o presidente Bolsonaro não acabou de vez com Ministério
do Meio Ambiente, como prometeu na campanha. Houve uma preocupação
quanto aos efeitos sobre as exportações de produtos agropecuários
brasileiros. Mesmo assim, o governo conseguiu desestabilizar a pasta sem
desfazê-la abertamente. A parte de fiscalização praticamente acabou,
agora o Ibama tem que avisar quando e onde vai fiscalizar. Mas esse
exemplo mostrou que, sim, o país presta atenção ao risco de boicote aos
produtos brasileiros. Evidentemente, o governo não escuta cientistas,
mas ele não é surdo, alguma coisa, ele escuta.
EXAME: O que todo brasileiro deveria saber sobre a floresta amazônica?
Fearnside: A medida que a
população fica mais consciente sobre o que está acontecendo, também
pode influenciar as decisões políticas. É muito importante que os
sistemas democráticos funcionem. É importante que as pessoas se informem
mais sobre a Amazônia, mas também tenham a experiência de estar na
floresta. Mesmo em Manaus, o grosso da população nunca esteve dentro da
floresta, vive no asfalto a vida inteira.
Também é fundamental entender que por
trás do desmatamento há dois vetores fortes, que são a criação de
pastagem e área de plantio de soja, que é usada para produzir ração
animal para bois e porcos. São atividades que demandam mais recursos do
que a população brasileira consome. Cada hectare a mais desmatado na
Amazônia é para produzir para exportação, não para alimentar a população
brasileira. E, claro, é importante que as pessoas saibam que o
aquecimento global é um problema real que desencadeia uma série de
reações desastrosas para a vida e que a Amazônia tem papel central na
manutenção do equilíbrio ambiental do mundo.
Exame - Por



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