ABOLIÇÃO NÃO CAIU DO CÉU: historiadora propõe olhar renovado sobre o 13 de maio – Por Solon Neto
Passados
131 anos desde a assinatura da Lei Áurea, segue no Brasil um imaginário
pouco fiel à realidade da época. Para discutir o assunto, a Sputnik
Brasil ouviu Ana Flávia Magalhães Pinto, historiadora e pesquisadora da
UnB.
Há
131 anos, a escravidão era abolida no Brasil sem medidas compensatórias
aos escravizados. As consequências de 3 séculos de escravidão seguem
vivas até hoje. Apesar de uma população de 54,9% de negros — a maior
fora da África — o racismo ainda é uma marca da sociedade brasileira. O
Atlas da Violência de 2018 mostra que o assassinato de negros teve
aumento de 23% no Brasil, enquanto o de brancos caiu 6,8% no mesmo
período. Dados do IBGE de 2017 também mostram que no país negros ganham
R$ 1,2 mil a menos que brancos, em média. Entre graduados, a diferença
salarial chega a 47% a menos para os negros, segundo dados de 2017 do
Ministério do Trabalho.
Essa
situação também se reflete na visão sobre a história do Brasil. Um
exemplo é o 13 de maio, dia da promulgação da Lei Áurea, de 1888, que
ainda é lembrado como uma “dádiva”. Deixam-se de lado as mobilizações
populares e negras e exalta-se uma narrativa salvadora com a princesa
Isabel à frente.
“O
Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão. Mas ao
mesmo tempo o Brasil, já o início do século XIX, tinha a maior população
negra livre das Américas”, explica a historiadora Ana Flávia Magalhães
Pinto, pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB).
Segundo
ela, 15 anos antes da abolição da escravatura no Brasil, seis a cada dez
pessoas negras no país já haviam nascido livres ou haviam sido
libertas. Os dados apontam que entre 600 e 800 mil pessoas foram
libertadas no 13 de maio de 1888.
“Se nós
tínhamos, então, uma ampla maioria da população negra já vivendo na
condição de liberdade no momento da abolição, por que nós sabemos tão
pouco sobre os caminhos que levaram essas pessoas — as experiências
dessas pessoas na liberdade — bem antes do 13 de maio?”, indaga a
pesquisadora, que conta que essa população livre participou ativamente
da luta pela abolição.
Para a historiadora, que é negra, a resposta está na criação de uma narrativa falsa sobre a identidade nacional.
“O
Brasil inventou para si — por Brasil eu digo a elite desse país
inventou para a nação — um mito de que mesmo após três séculos de uma
escravidão que absorveu o maior contingente de africanos escravizados
das Américas, o resultado disso teria sido uma sociedade racialmente
harmônica”, aponta a historiadora.
Magalhães
explica que essa narrativa traz consequências para a forma como o
Brasil passa a enxergar o negro não só depois da abolição, mas também
antes.
“Faz com que a gente olhe para um
passado mais recuado em que a gente só consiga enxergar as pessoas
negras no lugar da escravidão. E ao enxergar a experiência negra
restrita à escravidão, a gente não tem elementos para discutir a
gravidade do racismo”, explica.
Com isso a pesquisadora tenta
jogar luz sobre a forma como é construída a narrativa da história
brasileira, que para ela, não dá lugar à população negra.
O protagonismo negro na luta pela abolição
Tendo
em vista a narrativa salvacionista criada sobre o 13 de maio,
destacando o papel da princesa Isabel em detrimento da própria população
negra da época, essa data já não é considerada a mais importante na
agenda dos movimentos negros.
Hoje, o 20 de novembro, dia da
Consciência Negra no Brasil, é a data mais importante da luta histórica
de combate ao racismo no Brasil. Em outros momentos, esses movimentos
utilizaram outras datas no mesmo lugar de mobilização.
“Se
a gente pega a história dos clubes sociais negros, muitos deles vão
acionar uma outra data da luta contra a escravidão, que é o 28 de
setembro, a data em que foi promulgada a lei do ventre livre, em 1871”,
relembra a historiadora da UnB.
Ana
Flávia Magalhães Pinto, explica, no entanto, que o 13 de maio foi por
muitos anos a principal data de mobilização desses movimentos, mas sem a
princesa Isabel no centro.”A história hegemônica acabou inventando uma
versão em que o 13 de maio teria que ser lembrado para a valorização de
figuras de elite — da elite branca — em especial a da princesa Isabel
como aquela que […] teria sido a protagonista do desfecho”, explica.
Essa
história começa a mudar em meados dos anos 1970 a partir dos estudos do
Grupo Palmares, que valoriza a história de figuras negras no processo
de abolição. É o caso de Luiz Gama, José do Patrocínio e da ação da
chamada imprensa negra.
“Desde 1833 você tem
uma população [negra] produzindo jornais denunciando o preconceito de
cor a partir desse lugar de cidadãos negros e também se dirigindo a uma
comunidade negra”, ressalta.
Os estudos do Grupo Palmares também
evidenciam a mobilização das populações escravizadas nesse processo,
tendo na memória do Quilombo dos Palmares um dos principais exemplos.
Com
isso, a pesquisadora explica que se passou a questionar a maneira “como
a abolição estava sendo contada de modo a apagar essa agência negra em
defesa da liberdade e contra a escravidão”.
A
partir daí, o 20 de novembro começa a ganhar força como um marco contra
a narrativa de que a abolição foi uma “dádiva” das elites e coloca no
lugar o protagonismo negro nesse processo, tensionando a história
nacional.”Toda uma rede de sociabilidade negra foi possível porque, em
grande medida, pessoaa negras nunca duvidaram da legitimidade de ocupar
espaços da liberdade”, diz.
Eleição de Bolsonaro põe movimento negro em alerta
A
pesquisadora explica que em termos históricos nenhuma conquista está
livre de possíveis retrocessos. Magalhães ressalta que desde os anos
1970 a luta organizada contra o racismo no Brasil avançou, mesmo que
ainda aquém do necessário. Porém, o cenário atual é de alerta.
“A
eleição de Jair Bolsonaro e o modo como ele lida com o debate sobre o
Brasil, sobre as diferenças no Brasil, sobre os lugares da população
negra, de fato apresenta um grande risco para todas essas conquistas que
nós obtivemos, a duras penas, enfrentando sejam setores de direita,
sejam setores de esquerda”, diz a pesquisadora.
Ana Flávia
acredita que, apesar dos embates travados pelo movimento negro com
setores da esquerda, há menos espaço para divergência com setores do que
chama de ultra direita.
“Setores da ultra
direita não têm nem sequer um constrangimento para dialogar com
as demandas que amplos setores da população apresentam. Quando falo
amplos setores estou falando da maioria. E a maioria da população
brasileira é negra”, opina a pesquisadora.
Bolsonaro
é acusado de racismo desde a campanha eleitoral de 2018. À época,
declarações contra quilombolas e vídeos como o de uma entrevista em que
afirma que seus filhos não namorariam negras por terem sido “bem
educados” ficaram em evidência. Em entrevista recente à apresentadora
Luciana Gimenez, o presidente do Brasil afirmou que o racismo no Brasil
“é coisa rara”.A historiadora discorda da visão expressada por
Bolsonaro, enquadrado-a na perspectiva hegemônica que aponta um Brasil
livre de tensões raciais, da qual faz parte a narrativa romântica sobre o
protagonismo da princesa Isabel na abolição.
“Quando
ele [Bolsonaro] diz, a essa altura do campeonato, que o racismo no
Brasil é algo raro, o que ele está contando é uma mentira que interessa
aos setores que confortavelmente se beneficiam do racismo neste país”,
conclui.
Fonte: Sputinik News - Créditos: Solon Neto
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