Clínica de reabilitação nos Estados Unidos ‘desconecta’ filhos viciados em internet
Sem placas de identificação e acessível só de carro, a clínica Paradigm hospeda apenas oito jovens simultaneamente em San Francisco - (Foto: Ricardo Senra/BBC Brasil) |
A
maioria dos brasileiros precisaria se endividar bastante para comprar
um iPhone X, vendido no país por quase R$ 8 mil. Nos Estados Unidos, no
entanto, há quem pague mais de R$ 300 mil (ou 40 iPhones novos) só para
conseguir manter os filhos longe do aparelho.
Nos
últimos cinco anos, com o crescimento do acesso a internet pelo
celular, dezenas de clínicas de reabilitação surgiram nos arredores de
megaempresas como Facebook, Twitter, Apple e Google no Vale do Silício,
oferecendo tratamentos específicos para jovens que passam até 20 horas
diárias encarando telas de cristal líquido.
É
o caso da Paradigm, uma mansão cercada por jardins e câmeras de
segurança no ponto mais alto de uma colina em San Francisco, de frente
para a ponte Golden Gate, principal cartão postal da região.
Como
acontece nos bairros californianos mais exclusivos, onde moram estrelas
do cinema e altos executivos de empresas de tecnologia, não há calçadas
na estrada que leva até a clínica, que abriga crianças e adolescentes
entre 12 e 18 anos, internados pelos pais para abandonarem o vício pela
internet.
Sem
placas de identificação e acessível só de carro, a Paradigm hospeda
apenas oito jovens simultaneamente, em internações compulsórias que
duram em média 45 dias, podendo chegar a 60, dependendo do grau de
dependência e de fatores associados, como depressão, ansiedade e
agressividade.
O
valor da diária impressiona tanto quanto os salões luxuosos e a
banheira de hidromassagem com vista para o sol nascente na baía: US$
1.633 dólares (R$ 5,4 mil) por noite.
Dentro
do casarão, celulares, laptops e tablets são proibidos e o acesso a
computadores é limitado a aulas de reforço escolar, nas quais o acesso a
redes sociais, aplicativos de mensagens instantâneas e pornografia é
bloqueado – e qualquer tentativa é acompanhada de perto por professores e
psicólogos.
Com
hora certa para acordar, estudar, fazer refeições e participar de uma
bateria de terapias coletivas e individuais, a promessa da clínica é
“reprogramar” os jovens para que eles possam reconstruir sua relação com
a tecnologia e se reaproximar de familiares, estudos, amigos e tarefas
“offline”.
“Nós os desconectamos. Essa é a regra”, resume Danielle Kovac, diretora da clínica.
“Eu
diria que é um período de ajuste para as crianças. O mais bacana é
ouvir muitas dizendo no final do tratamento: ‘Obrigado, obrigado por não
permitir que eu ficasse com meu telefone ou em redes sociais em um
computador, eu fui capaz de realmente me concentrar em mim’.”
Sintomas e controvérsias
Citado
pela primeira vez por um psiquiatra de Nova York durante os primórdios
da rede, em 1995, o vício em internet não é uma doença oficialmente
reconhecida nos Estados Unidos.
Psicólogos
e psiquiatras americanos se dividem: para alguns, o vício seria apenas
um sintoma de outras síndromes, como paranoia e depressão, e não a causa
delas. Para outros, ele seguiria características idênticas às de outras
dependências já reconhecidas, como álcool e drogas.
Mas
países como Austrália, China, Itália e Japão reconhecem oficialmente o
problema – na Coreia do Sul, por exemplo, a dependência pela internet
foi classificada como “problema de saúde pública” e é tratada em
hospitais públicos.
No
Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) oferece tratamento integral e
gratuito para transtornos como depressão e vícios em álcool e outras
drogas, mas não tem serviços específicos sobre questões mentais ligadas à
tecnologia.
Para
os diretores da Paradigm, em São Francisco, a internet pode agravar
transtornos de humor e saúde mental, e serve como um “refúgio seguro e
anônimo” que afasta os jovens de suas relações com o mundo real em um
ciclo vicioso.
“Muitas
vezes, vemos famílias contando que não tiveram nem refeição sequer com
os filhos porque eles estão no Snapchat”, diz a diretora da clínica em
San Francisco, citando jovens que passam até 20 horas diárias em redes
sociais.
Ela diz que o diagnóstico de dependência de internet repete o padrão de outros vícios.
“(É)
quando começa a afetar outras áreas da vida, como sua vida social ou
escola. Muitas vezes, vemos notas caindo porque as crianças estão no
Facebook ou no Instagram durante a noite toda, então eles não conseguem
acordar para ir o colégio nem se focar nos trabalhos escolares”, afirma.
Ela conta que parte dos pacientes chega à clínica depois de abandonar a escola por causa do vício.
Comportamentos
como irritação quando o sinal da internet é interrompido, mentir ou
esconder o uso de redes sociais e isolamento e distância da família,
segundo a Paradigm, também seriam sinais de alerta.
“É
muito importante que pais sejam capazes de determinar parâmetros.
Talvez cortar o acesso a telas, computadores, iPads ou telefones antes
da hora de dormir, ou das refeições, ou durante a escola”, diz Kovac,
que defende a internação como melhor tratamento se as tentativas dos
pais falharem.
“É
certamente uma sensação diferente do atendimento sem internação, em que
os jovens são levados ou dirigem até a terapia uma vez por semana, por
uma hora. Aqui nós conseguimos viver o dia deles com eles e perceber
quais são seus comportamentos-padrão. Isso nos traz informações úteis
para os tratamentos.”
Luxo
Os
cômodos na clínica em San Francisco são amplos e extremamente luxuosos –
reproduzindo as características encontradas nas próprias casas da
maioria dos jovens internados.
Em um dos quartos, no entorno de uma lareira, três camas de casal se espalham cercados por janelões virados para o mar.
“A
sensação de ‘estou sozinho nessa’ é muito assustadora. Então, para eles
(pacientes), saber que ‘meu colega de quarto também está aqui, talvez
por outra razão, mas podemos nos ajudar’ é muito, muito positivo”, diz
Kovac.
“Se
eles estiverem com dificuldades e não tiverem a melhor estrutura de
apoio em casa – não é sempre este o caso, mas acontece às vezes -, aqui
eles estão em uma espécie de família construída, que poderão acessar
quando saírem daqui como apoio contínuo.”
A clínica também oferece atividades para ex-pacientes e para familiares, “reforçando laços” e a continuidade do tratamento.
Em
relação ao processo terapêutico, a reportagem não conseguiu conversar
com nenhum dos pacientes. Durante a visita à clínica, no entanto, uma
jovem acabava de ser internada – o que foi percebido por gritos e choro
alto se espalhando pelo casarão.
Ao mesmo tempo, um rapaz de 17 anos tocava piano e um pequeno grupo se reunia numa das varandas para tomar café da manhã.
A reportagem pergunta sobre eventuais sinais de abstinência da internet durante o tratamento.
“Há
um nível de desconforto no começo, como aconteceria com qualquer um em
uma situação nova, mas nós temos tanto apoio nesse lugar que usamos isso
como informação para sermos capazes de ajudá-los: ‘Por que você não me
diz por que isso é desconfortável?’. Usamos essas respostas como
informação terapêutica”, diz Kovac.
A diretora diz que a internação funciona como um botão de “reset” (ou reinício, reconfiguração) nas mentes dos pacientes.
“Depois
que eles se desconectarem, vão voltar a acessar Facebook, Instagram,
Twitter ou que seja de novo?”, pergunta Kovac, quando questionada sobre
os objetivos do tratamento.
Ela mesma responde:
“Bem,
provavelmente. Mas, se eles estão aqui, um local que afeta as suas
vidas, nossa expectativa é que se desconectem por tempo suficiente para
que, quando voltarem para casa, estejam prontos para estabelecer limites
para si mesmos e para suas famílias também.”
Um dia na ‘rehab’
Ela conta que a reação dos jovens ao se verem sem os celulares pode surpreender.
“Há
pais que dizem que os filhos vão gritar quando os telefones forem
tirados. Mas, em muitos casos, é uma surpresa agradável. Eles dizem
“Ok”. Muitas vezes os pais querem mudanças, mas os filhos também querem.
Então vejo que nestes casos eles estão prontos para dizer ‘Ok, é
estranho, esquisito para mim, mas vou deixar meu telefone com minha mãe e
talvez buscá-lo de novo quando eu sair’.”
Antes de deixar o local, entretanto, os jovens são levados a encarar uma rotina que combina conforto e muito trabalho.
O
dia na clínica começa às 7h, quando todos acordam para tomar café da
manhã reunidos. “Isso já pode ser um pouco diferente do que esses jovens
estão acostumados em casa”, diz a diretora.
“Se
houver medicações (prescritas pelos médicos particulares dos
pacientes), nós damos as medicações neste horário”, continua Kovac.
“Começamos o dia de maneira positiva, comendo um café da manhã bom e
balanceado, e depois fazemos um trabalho em grupo, de suporte mútuo,
conduzido pela nossa equipe.
Na
sequência, os jovens fazem aulas de reforço escolar (“as escolas podem
mandar os conteúdos que querem que sejam trabalhados, para que eles
possam continuar estudando enquanto estão aqui”), depois almoçam e se
dividem em diferentes grupos de trabalho.
“Eles
podem trabalhar habilidades de enfrentamento de problemas, colaboração,
comunicação, limites ou terapia artística e musical. Também há
atividades recreativas, que podem ser fazer ginastica, escalada, ir à
praia… fazer o sangue circular e talvez pegar um pouco de sol”, diz a
diretora.
O jantar é o momento para uma discussão em grupo sobre o dia, metas pessoais e expectativas para a manhã seguinte.
“Depois
quebramos para atividades noturnas mais ligadas ao relaxamento, que
podem ser ioga, acupuntura, meditações. E passamos documentários, às
vezes.”
Cerco ao Facebook
Para
a diretora, empresas como Facebook, Twitter e Snapchat “certamente
sabem o que estão fazendo para que, não apenas crianças, mas pessoas em
geral, fiquem presas a certas coisas, com certos algoritmos para certos
propósitos”.
Ela
pede mais atenção aos CEOs. “Não tenho a resposta de como eles podem
fazer isso, mas é preciso ter atenção com o que está acontecendo com a
sociedade em geral. As pessoas estão conectadas demais a seus telefones e
a internet.”
Há
menos de um mês, mais de cem especialistas e organizações
internacionais de saúde infantil pediram ao Facebook que dê fim a seu
recém-lançado aplicativo de mensagens voltado a crianças com menos de 13
anos, o Messenger Kids.
Em
carta aberta a Mark Zuckerberg, o grupo classificou o aplicativo como
iniciativa “irresponsável” que visa estimular crianças pequenas – que
não teriam maturidade para ter contas em redes sociais – a usar o
Facebook.
O
Messenger Kids foi anunciado em dezembro como uma “solução divertida e
segura” para que crianças conversem, via vídeo ou chat, com amigos e
familiares. É uma versão simplificada do Messenger, que no entanto exige
consentimento parental antes do uso e cujos dados gerados não são
usados para publicidade dirigida.
Em
resposta à carta aberta, o Facebook afirmou que “desde o lançamento, em
dezembro, temos escutado de pais ao redor dos EUA que o Messenger Kids
os ajuda a manter contato com seus filhos e que seus filhos mantenham
contato com familiares, perto ou longe. Soubemos, por exemplo, que pais
que trabalham à noite agora podem contar histórias de ninar para seus
filhos; que mães em viagens profissionais estão tendo atualizações
diárias de seus filhos enquanto estão longe”.
Mas
a carta aberta questiona a necessidade de o Facebook oferecer esse
serviço. “As crianças podem usar as contas dos pais no Facebook ou no
Skype. Eles também podem simplesmente telefonar.”
Os
autores finalizam a carta apontando que “seria melhor deixar as
crianças pequenas em paz para que se desenvolvam sem as pressões
derivadas do uso das redes sociais. A criação de crianças na era digital
já é difícil o bastante. Pedimos que vocês não usem os enormes alcance e
influência do Facebook para tornar esse trabalho ainda mais difícil”.
Enquanto
a controvérsia não chega a um ponto final, o Facebook mantém suas
ferramentas polêmicas ao alcance de crianças e adolescentes, e a clínica
milionária para viciados em internet continua cheia de clientes em San
Francisco – mas só os que têm pais ou responsáveis que podem pagar caro
por isso.
G1
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