Pesquisador do Instituto Nacional do Câncer vê doença controlada em até '15 ou 20 anos'
Especialista fala sobre a evolução nas descobertas sobre o câncer, a doença mais temida pelos brasileiros
As décadas de 1980 e 1990, um mal pouco conhecido passou a assombrar o
mundo e intrigar os cientistas: a Aids, causada pelo vírus HIV.
Altamente letal à época, a nova doença se tornou um pesadelo. O filósofo
Michel Focault, o ator Rock Hudson, o cantor brasileiro Cazuza e o
lendário roqueiro Freddie Mercury foram apenas algumas das celebridades
que morreram em decorrência dela.
Mas três décadas depois do surto inicial, as perspectivas de vida de um
portador do vírus do HIV são bem diferentes das daqueles tempos. A
eficiência dos coquetéis antirretrovirais é comprovada pelos números -
no Brasil, o índice de mortalidade caiu mais de 42% nos últimos 20 anos,
e a epidemia é considerada estabilizada. Hoje, a doença que mais
assusta os brasileiros não é mais a Aids - e sim o câncer.
Segundo pesquisa do instituto Datafolha, esse é o diagnóstico que 76%
das pessoas mais temem ouvir - é visto por elas praticamente como uma
"sentença de morte". Só entre o ano passado e o atual, a estimativa era
de que 600 mil novos casos surgissem no Brasil.
Mas diferentemente do senso comum, os tratamentos já evoluíram
bastante, a ponto de João Viola, pesquisador do Inca (Instituto Nacional
do Câncer) desde 1998 e chefe da divisão de pesquisa experimental e
translacional do órgão, dizer que "a grande maioria dos cânceres são
curáveis". "Hoje a gente tem capacidade de curar doentes. Esse estigma, a
gente tem que combater", afirma em entrevista à BBC Brasil.
Por outro lado, ressalta ser difícil poder falar em "cura definitiva"
quando se trata da doença, já que ela pode ser extinta em um órgão e
voltar em outro. Até por isso, os cientistas trabalham para torná-la
"controlável" - assim como é a infecção pelo HIV hoje.
"É muito difícil falar em cura porque, uma vez que você tem, precisa
estar sempre em vigilância. Mas o que a gente está prevendo é que, em 15
ou 20 anos, o câncer vai ser a mesma coisa que a Aids. O paciente fica
em tratamento-controle por muito tempo, e aí vira uma doença crônica.
Isso é bem plausível, bem possível."
Leia os principais trechos da entrevista, na qual Viola fala sobre a
evolução no tratamento da doença e as perspectivas sobre seu futuro.
BBC Brasil - Quando falamos em câncer, ainda há um estigma forte e uma ideia de que a doença é uma "sentença de morte", mais ou menos como era a Aids na década de 1980. Hoje, a Aids não foi erradicada, mas consegue ser bem controlada com remédios. O que evoluiu de lá para cá no caso do câncer?
BBC Brasil - Quando falamos em câncer, ainda há um estigma forte e uma ideia de que a doença é uma "sentença de morte", mais ou menos como era a Aids na década de 1980. Hoje, a Aids não foi erradicada, mas consegue ser bem controlada com remédios. O que evoluiu de lá para cá no caso do câncer?
João Viola - Existe uma correlação de desenvolvimento muito semelhante
com a Aids, hoje a gente discute o câncer mais ou menos desse jeito. Mas
é importante ressaltar que, quando a gente fala em Aids, a gente está
falando em uma doença. Quando a gente fala em câncer, a gente está
falando em mais de cem doenças diferentes. Há alguns mais agressivos,
menos agressivos, mas é uma abrangência de diferentes tipos.
O ponto importante é: a grande maioria dos tumores hoje são curáveis.
Desde que sejam identificados mais precocemente. Se a gente consegue
identificar o tumor bem precoce, há intervenções com as quais
conseguimos curar o paciente.
BBC Brasil - O câncer engloba várias doenças, mas o mecanismo de ação é
o mesmo em todas elas, certo? Uma célula ruim que se multiplica e vai
afetando um órgão. Por que, então, é tão difícil inibir esse mecanismo
que forma os tumores malignos?
João Viola - O câncer é uma doença basicamente genética. Nosso genoma é
a informação genética que nós temos, então o câncer tem uma base
genética e ele parte de mutações no nosso genoma que alteram a
fisiologia daquela célula. Uma célula, como qualquer ser vivo, nasce,
divide, diferencia e morre. Toda célula tem que fazer isso. O câncer é
uma doença genética que altera essa relação da fisiologia celular, e
essa célula passa a se dividir desreguladamente e não morre.
Há um conjunto de genes chamados oncogenes que, quando estão no seu
funcionamento normal, são fundamentais para nós. Mas se ele passa por
uma mutação que o faz se desregular, isso altera a vida celular. Só que
são milhares de genes. A gente já conhece algumas dessas alterações, mas
elas são muitas, e relacionadas a diferentes tipos tumorais.
São doenças muito diferentes que podem ter estágios diferentes, e que
são causadas por mutações em genes diferentes. O tumor X pode estar mais
relacionado ao oncogene Y e por aí vai. Mas o mecanismo é o mesmo: em
algum órgão seu, uma célula mutou para uma célula tumoral.
E aí tem uma coisa que a gente chama de microambiente tumoral. Quando a
gente tem um tumor que está crescendo, ele altera o ambiente onde está,
onde as outras células vivem. Os tumores malignos, além de crescerem
naquele local, as células dele saem daquele tumor, pegam a corrente
sanguínea e crescem em outros tecidos - que são as metástases. Então
retirar o tumor não necessariamente retira o problema.
BBC Brasil - O senhor se formou no final da década de 1980, quando o
câncer ainda era pouco conhecido. Um paciente que se descobria com a
doença naquela época tinha quais tipos de tratamento disponíveis?
João Viola - O primeiro tratamento que se tem é a cirurgia. Até hoje, a
primeira coisa que se faz é tentar retirar esse tumor. Então até que os
primeiros quimioterápicos surgissem, era só cirurgia. Mas a
probabilidade de curar assim era muito pequena, não vai resolver por
causa dos tumores secundários que surgem.
No final da década de 1970, começam a surgir as primeiras químios, as
primeiras drogas quimioterápicas que aparecem e que basicamente inibem a
divisão celular, ou seja, inibe que aquela célula (tumoral) se divida
muito. Só que são drogas completamente inespecíficas. Elas não inibem só
a divisão das células tumorais, inibem a divisão das células normais
também. Quais são as células nossas que dividem muito? Cabelo, pele,
intestino - por isso que as pessoas que passam por químio têm problemas
intestinais e perdem cabelo.
Então o que você fazia? Retirava o tumor por cirurgia e tratava por
quimioterapia tentando matar aquelas células tumorais que você não sabe
onde está. Junto com isso surge também a radioterapia, no século 20.
Você tenta matar essas células também por radiação. Esse era o tripé do
tratamento.
BBC Brasil - E hoje, três décadas depois, o que há de novidade nos tratamentos?
João Viola - No final do século 20 e início do 21: dois grandes grupos
de drogas começam a ser importantíssimos e começam a mudar a perspectiva
de vida dos pacientes, junto com as outras.
Uma delas é a terapia-alvo. Você começa a conhecer melhor a biologia do
tumor e consegue entender qual é o gene que faz o tumor X, Y, Z, quais
são as mutações, e isso é muito importante. No final do século 20, a
gente teve o genoma humano mapeado, e aí a gente conhece todos os genes
humanos e sabe qual é a estrutura do gene normal.
Sabendo isso, a gente começa a trabalhar em cima do câncer e entender: o
gene X está mutado na doença A. E começa a correlacionar os genes e as
doenças: esse gene é importante para desenvolver o tumor de mama, esse
para o tumor cerebral e por aí vai. Aí começamos a desenvolver drogas
que agem especificamente nessas vias que estamos falando, para
interferir no gene X, Y ou Z.
Isso é o que a gente chama de terapias-alvo. Se a gente sabe que há tal
mutação, a gente vai trabalhar para bloquear essa mutação para se
aproximar da cura. As terapias-alvo são um passo à frente da
quimioterapia. Porque na quimio você vai lá e mata tudo, a terapia-alvo
consegue ir naquele alvo específico.
Uma das possibilidades que a gente tem, além de fazer todos esses
tratamentos, é ativar o nosso próprio sistema imune para destruir o
câncer, destruir a célula tumoral. Porque temos uma resposta imunológica
no organismo contra ela, só que, por diversas razões, o tumor consegue
escapar. Mas aí conseguimos modular esse escape e fazer com que as
células do sistema imune combatam esse tumor. Essas são as
imunoterapias.
Agora uma coisa importante é o custo. Essas terapias não tiram as
originais. O paciente continua sendo operado, continua usando químio,
radioterapia e mais essas duas outras terapias. O que faz com que hoje o
tratamento seja extremamente caro. Teremos que trabalhar isso, mas é um
tratamento que está dando muito certo.
BBC Brasil - Se é possível fazer com que o próprio organismo produza os
anticorpos para combater as células tumorais, isso significaria uma
possível cura definitiva do câncer?
João Viola - Não necessariamente, porque essa resposta autoimune também
pode ter consequências ruins. Veja, a maior revolução mesmo contra o
câncer que temos hoje é uma outra coisa, os bloqueadores do ponto de
checagem imunológico.
Isso funciona assim: tudo em nosso organismo tem algo que acelera e tem
um freio, como em qualquer lugar. Para balancear. A resposta imune é a
mesma coisa. Há um ponto de checagem em que identificamos que essa
célula, por exemplo, é tumoral - aí vem o linfócito e vai tentar matar.
Esse linfócito reconhece inicialmente o problema e libera o anticorpo
contra ele, mas depois o linfócito passa a ter na sua membrana umas
moléculas que vão fazer um freio na resposta imune. Ela freia a resposta
imune. Porque você ter uma reposta autoimune exagerada também vai
causar doença - por exemplo, as doenças autoimunes.
O tumor é feito pela gente, diferente de uma infecção viral ou de
bactéria, que vem de fora. Então a resposta antitumoral é uma resposta
que está na gente, ou seja, autoimune, a princípio. Então como qualquer
resposta autoimune, o nosso organismo freia essa resposta. Porque
indivíduos que apresentam problemas nesse freio têm doenças autoimunes.
Há muitas: lúpus, artrite reumatoide....
O que se viu? É que no câncer, se eu venho aqui e bloqueio essa via
negativa que freia os linfócitos, eu aumento a resposta antitumoral. Se
eu posso ativar a resposta autoimune contra um tumor, também posso
bloquear o bloqueador da resposta, que são essas moléculas. E aí o
organismo consegue continuar multiplicando os anticorpos e os linfócitos
conseguem combater e matar o tumor.
BBC Brasil - O câncer tem esse aspecto de ir e voltar. É possível hoje falar em cura real do câncer?
João Viola - É muito difícil falar em cura, porque uma vez você que
tem, precisa estar sempre em vigilância. Você só cura se, depois de 20
anos, não apareceu mais nada. Só posso falar em cura se ela for
definitiva. A gente sempre fala que o câncer pode recorrer, sim.
Eu vi a Aids aparecer, depois vi os tratamentos. Então saí da
faculdade, e ela não tinha cura. Um paciente que tinha diagnóstico de
Aids, isso era uma sentença de morte. Um, dois anos de vida, seis meses.
Mas mudou absolutamente, essa terapia tripla que se faz atualmente é
uma coisa fantástica. Eu tenho amigos que são HIV positivo, não têm Aids
e estão no tratamento há 15 anos.
Mas vira uma doença crônica. É a mesma coisa que estamos falando da
diabetes, vai ter que controlar o resto da vida. Hipertensão se trata
para o resto da vida. Mas se fizer direitinho, está controlado. Mas não
está curado. A Aids, a mesma coisa.
O que estamos prevendo é que, possivelmente, em alguns anos o câncer
vai ser assim. É possível que daqui a pouco a gente tenha tratamento e
que o paciente fique em tratamento-controle por muito tempo, que vire
uma doença crônica. Continue mais ou menos na correlação da Aids.
Bem Estar
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