Marido é acusado de matar mulher; ela descobriu relação dele com travestis
Publicado por: Amara Alcântara
Mais de 250 pessoas foram convidadas
para a cerimônia de casamento do comerciante Sérgio Nahas com a
empresária Fernanda Orfali, celebrada em março de 2002 na Igreja
Ortodoxa da Vila Mariana, zona sul de São Paulo. Em dois álbuns de
fotos, um em preto e branco, outro em cores, os noivos aparecem trocando
alianças, cortando o bolo, posando com os pais e os padrinhos. Muito
sorridente, a noiva não imaginava a tragédia que o destino reservava
para ela. Ex-aluna do centenário Colégio Dante Alighieri, Fernanda era a
filha mais nova de quatro irmãos, teve uma educação convencional e,
segundo sua família, dificilmente acreditaria se alguém dissesse naquele
momento que seu marido era viciado em cocaína e costumava comprar o pó
de travestis: “Nunca passaria pela cabeça dela algo assim”, diz o irmão,
Julio Orfali. “Ela era desencanada, extrovertida, leve, vaidosa, do
tipo que levava 37 batons na bolsa.” Por coincidência, comemorava-se
naquela data o Dia Internacional da Mulher…
Para não estragar a festa, a
noiva preferiu não pensar em um misterioso episódio ocorrido uma semana
antes, quando o noivo desapareceu por 48 horas. Nunca inteiramente
explicado, o sumiço dele foi atribuído a um “sequestro relâmpago”.
Fernanda e a família insistiram para que Sérgio registrasse um boletim
de ocorrência, mas o pai dele, José Nahas, convenceu-a de que aquilo era
mera burocracia e não levaria a nada. Seis meses depois, Sérgio passou
mais dois dias longe de casa, sem que ninguém soubesse o seu paradeiro.
Desta vez, ele não precisou alegar ter sido vítima de sequestradores, já
que saiu de casa batendo porta. O motivo da briga com a mulher parecia
inconsistente: “Ele achou ruim porque ela foi com uma amiga solteira ao
cabeleireiro, e gritou: ‘Em família árabe, mulher não sai com amiga
solteira!’”, conta a mãe de Fernanda, dona Nadir, 73 anos.
Todo mundo achou suspeito. Fernanda mais
ainda. Ligou para Julio, o irmão, e disse que pela primeira vez seu
casamento estava indo mal e que pensava em se separar. Chegou a arrumar
as malas. Quando o marido apareceu, ela vasculhou secretamente o celular
dele atrás de alguma pista. Percebeu que dois ou três números se
repetiam. Ligou para um deles, atendeu uma voz híbrida, que ela custou a
perceber que era de um homem. Do outro lado da linha, falava a travesti
Katryna, a parceria mais frequente de Sérgio. Disposta a saber até onde
ia a relação dos dois, Fernanda fez uma visita a ela. O quitinete que a
travesti dividia com uma amiga ficava no centro da cidade, em uma
região conhecida como Boca do Lixo, não muito distante do luxuoso
apartamento em que o casal morava, em Higienópolis, considerado um
bairro nobre de São Paulo.
Quando Katryna abriu a porta, Fernanda,
então com 28 anos, tomou um choque — mas ficou para ouvir até o fim. Na
versão da travesti, Sergio costumava participar de orgias de sexo
movidas a pó. A história podia ser fantasiosa. Pelo menos o tráfico da
droga, foi confirmado pela polícia. Os investigadores encontraram nos
extratos bancários de Katryna e outras travestis cheques assinados por
Sérgio em valores próximos a R$ 3 mil.
Discussão violenta, tiros, morte
Já em casa, Fernanda confrontou o marido
com suas descobertas. Ele reagiu aos berros. Os dois tiveram
uma violenta discussão no quarto do casal. De acordo com dona Nadir, a
filha recuou até o closet, onde tentou se trancar para proteger-se do
avanço descontrolado do marido. A essa altura, ele já estava munido com
uma das armas que mantinha ilegalmente em casa. “Ele tinha mais força,
arrebentou a porta e deu um tiro nela”, conta a mãe. A bala ricocheteou
na coluna vertebral de Fernanda e voltou para o coração. Ela morreu na
hora. Um outro tiro, dado provavelmente quando ela caiu sobre os braços
dele, atingiu a janela do closet.
A advogada do acusado, Dora Cavalcanti,
ex-sócia do criminalista Márcio Thomaz Bastos (1935-2014), ministro da
Justiça entre 2003 e 2007, sustentou que Fernanda teria se matado depois
de um longo período de depressão. “Ela tem um histórico da doença,
sempre frequentou psiquiatras”, disse. A família Orfali afirma que sua
caçula jamais foi a um psiquiatra até se casar. “A Nanda era a pessoa
mais alegre da casa. Fazia brincadeira de tudo, era uma criança grande.
Não consigo nem imaginá-la tentando se matar”, afirma Julio. Dona Nadir
pergunta: “Você já viu uma pessoa dar dois tiros em si mesma, sendo que o
primeiro acertou o coração?”
“O pai (de Sérgio) sabia do vício dele”
Com 1,70m de altura, morena, atraente,
Fernanda ia bem na escola e tinha carisma. Em casa, era o xodó da
família. Dona Nadir conta que Alexandre, cinco anos mais velho, tinha
adoração por ela. Renata, a terceira, ri ao lembrar-se de que a irmã
estava sempre pronta para ir a uma festa. Antes de casar-se, Fernanda
teve dois relacionamentos longos.
Ela foi apresentada a Sérgio por um
casal amigo de seus pais do Esporte Clube Monte Líbano, na zona sul de
SP, frequentado pela colônia árabe. Julio e Alexandre já o conheciam
porque jogavam bola juntos. Mas o relacionamento dos irmãos com o futuro
cunhado nunca foi próximo. “Apesar de ser um cara simpático, ele tinha
umas reações violentas. Uma vez, em uma briga de jogo, ele arrancou a
camisa do adversário”, lembra Julio. O namoro de Fernanda e
Sérgio evoluiu rapidamente, até que, um ano depois, os dois resolveram
se casar. Dona Nadir não tem dúvidas de que o pai de Sérgio “sabia do
vício do filho e dos parceiros dele”. “Mas ele queria um herdeiro. E
disse a Fernanda que ela podia escolher o que quisesse para a festa, do
bom e do melhor, igreja, vestido, bufê, a conta era dele”.
Um mês depois do casamento, Sérgio
contou a Fernanda que era viciado em cocaína — mas estava lutando para
livrar-se da droga. Ela pensou em deixá-lo. Dona Nadir diz que a
aconselhou a ficar, “salvar uma vida”. “Na ocasião, o pai do Sérgio
providenciou um psiquiatra para acompanhá-lo no período de abstinência, e
outro para ajudar Fernanda a conviver com um marido viciado.” Segundo
dona Nadir, o psiquiatra de sua filha era conhecido de José Nahas da
igreja ortodoxa e “encheu a Nanda de antidepressivos”. Ainda se
apresentou mais tarde como testemunha de defesa de Sérgio e depôs
durante quatro horas, diz Julio. O promotor que trabalhou no caso, Romeu
Zanelli, estranhou: “Nem sabia que um psiquiatra podia falar
publicamente o que ouviu de seu paciente em confidência.”
Dora Cavalcanti fala do caso como uma
história de amor triste, interrompida por causa de um problema de
depressão profunda. “O Sergio ficou muito abalado com a morte da
Fernanda. Ele carrega a dor dessa tragédia com ele”, disse.
Para promotoria, a cena do crime foi alterada
Cerca de 30 minutos antes de ser
assassinada naquele sábado, 14 de setembro de 2002, Fernanda ligou para
Julio pedindo que ele fosse buscá-la. O irmão percebeu que era grave,
porque na véspera ela tinha ligado perguntando: “O que eu faço para sair
daqui?” Fernanda parecia desesperada. Ele foi socorrê-la. A caminho de
Higienópolis, ligou para Alexandre e contou que a irmã estava em apuros.
Renata, a terceira, também foi. No percurso, ligou para Fernanda, mas
quem atendeu foi Sérgio. “Aquela altura ele já tinha matado ela. Tanto
que disse: ‘Agora, você pode vir buscar sua irmã.’” Ao entrar na Rua
Basílio Machado, ele avistou uma viatura da polícia e uma ambulância do
Samu em frente ao edifício onde a irmã morava com o marido. Suspeitou
que era com ela. E era. Ao blog, Dora Cavalcanti declarou que, “em
respeito à dor do irmão de Fernanda, não iremos tecer considerações a
respeito da sua versão sobre os fatos”. Julio, por sua vez, afirma que
“a ligação ficou registrada e está no inquérito”.
Alexandre, Fernanda, dona Nadir, Julio, Julio “pai” e Renata, com o filho - (Foto: Arquivo pessoal) |
Quem chamou a polícia foi o próprio
Sergio. Quando os irmãos de Fernanda chegaram, José Nahas já estava no
apartamento também. A promotoria afirmou que a cena do crime tinha sido
alterada. “O local não foi adequadamente preservado. E eu estou sendo
light”, afirmou o promotor Zanelli. Sérgio Nahas sustentou que Fernanda
se trancou no closet dizendo que ia se matar e que, quando ele arrombou a
porta para tentar salvá-la, era tarde demais. O problema, disse
Zanelli, é que só havia vestígios de pólvora na camisa dele — encontrada
escondida embaixo da cama do casal. Dora Cavalcanti afirmou que os
vestígios passaram para a camisa de Sérgio quando ele abraçou a mulher.
Em sua análise, a perícia achou improvável que a pólvora tenha passado
da roupa dela para a dele. Sérgio foi preso na hora, por porte ilegal de
armas. Ele mantinha em seu apartamento pelo menos quatro.
Casamento com suíça e filhos gêmeos
Em 2002, Sergio Nahas estava com 38
anos. Já havia sido casado, mas não teve filhos. Em outubro de 2004,
registrou sua união com uma suíça no 11º Cartório de Registro Civil, em
Santa Cecília, na região central da cidade, com quem teve filhos gêmeos.
O oficial que lavrou o documento o reconheceu das páginas policiais dos
jornais e comunicou ao Ministério Público que ele estava se casando com
uma estrangeira. Mencionou que a nova senhora Nahas tinha vindo ao
Brasil apenas três vezes. Depois de confirmar, o MP pediu a prisão de
Sérgio. Ele ficou na cadeia de 11 de novembro de 2004 até 7 de dezembro
do mesmo ano, quando sua defesa conseguiu um habeas corpus.
Em março de 2017 a tragédia completou 15
anos, sem que a Justiça tivesse resolvido o caso. Depois de várias
apelações, os advogados de Sergio Nahas tentaram entrar com um recurso
extraordinário no Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas o Tribunal de
Justiça de São Paulo (TJ) barrou, por considerar que a petição
teria apenas efeito protelatório. A defesa então entrou com um agravo da
decisão do TJ. Julio Orfali foi a Brasília pedir pessoalmente no STJ
que apressassem o julgamento. Mas o processo ainda subiria ao Supremo
Tribunal Federal (STF), a mais alta instância do poder judiciário. O STF
o mandou de volta para o TJ. Finalmente, marcou-se o júri para o dia 8
de novembro. “Eu quero que se faça Justiça, para que o criminoso sinta
na pele o mesmo sofrimento que eu experimentei”, diz dona Nadir, que se
retirou para o interior de São Paulo e até hoje toma antidepressivo de
uso contínuo.
UOL
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