sexta-feira, 25 de agosto de 2017

15 anos de uma tragédia sem solução pela Justiça

Marido é acusado de matar mulher; ela descobriu relação dele com travestis

Publicado por: Amara Alcântara
Mais de 250 pessoas foram convidadas para a cerimônia de casamento do comerciante Sérgio Nahas com a empresária Fernanda Orfali, celebrada em março de 2002 na Igreja Ortodoxa da Vila Mariana, zona sul de São Paulo. Em dois álbuns de fotos, um em preto e branco, outro em cores, os noivos aparecem trocando alianças, cortando o bolo, posando com os pais e os padrinhos. Muito sorridente, a noiva não imaginava a tragédia que o destino reservava para ela. Ex-aluna do centenário Colégio Dante Alighieri, Fernanda era a filha mais nova de quatro irmãos, teve uma educação convencional e, segundo sua família, dificilmente acreditaria se alguém dissesse naquele momento que seu marido era viciado em cocaína e costumava comprar o pó de travestis: “Nunca passaria pela cabeça dela algo assim”, diz o irmão, Julio Orfali. “Ela era desencanada, extrovertida, leve, vaidosa, do tipo que levava 37 batons na bolsa.” Por coincidência, comemorava-se naquela data o Dia Internacional da Mulher…
Para não estragar a festa, a noiva preferiu não pensar em um misterioso episódio ocorrido uma semana antes, quando o noivo desapareceu por 48 horas. Nunca inteiramente explicado, o sumiço dele foi atribuído a um “sequestro relâmpago”. Fernanda e a família insistiram para que Sérgio registrasse um boletim de ocorrência, mas o pai dele, José Nahas, convenceu-a de que aquilo era mera burocracia e não levaria a nada. Seis meses depois, Sérgio passou mais dois dias longe de casa, sem que ninguém soubesse o seu paradeiro. Desta vez, ele não precisou alegar ter sido vítima de sequestradores, já que saiu de casa batendo porta. O motivo da briga com a mulher parecia inconsistente: “Ele achou ruim porque ela foi com uma amiga solteira ao cabeleireiro, e gritou: ‘Em família árabe, mulher não sai com amiga solteira!’”, conta a mãe de Fernanda, dona Nadir, 73 anos.

Todo mundo achou suspeito. Fernanda mais ainda. Ligou para Julio, o irmão, e disse que pela primeira vez seu casamento estava indo mal e que pensava em se separar. Chegou a arrumar as malas. Quando o marido apareceu, ela vasculhou secretamente o celular dele atrás de alguma pista. Percebeu que dois ou três números se repetiam. Ligou para um deles, atendeu uma voz híbrida, que ela custou a perceber que era de um homem. Do outro lado da linha, falava a travesti Katryna, a parceria mais frequente de Sérgio. Disposta a saber até onde ia a relação dos dois, Fernanda fez uma visita a ela. O quitinete que a travesti dividia com uma amiga ficava no centro da cidade, em uma região conhecida como Boca do Lixo, não muito distante do luxuoso apartamento em que o casal morava, em Higienópolis, considerado um bairro nobre de São Paulo.
Quando Katryna abriu a porta, Fernanda, então com 28 anos, tomou um choque — mas ficou para ouvir até o fim. Na versão da travesti, Sergio costumava participar de orgias de sexo movidas a pó. A história podia ser fantasiosa. Pelo menos o tráfico da droga, foi confirmado pela polícia. Os investigadores encontraram nos extratos bancários de Katryna e outras travestis cheques assinados por Sérgio em valores próximos a R$ 3 mil.

Discussão violenta, tiros, morte
Já em casa, Fernanda confrontou o marido com suas descobertas. Ele reagiu aos berros. Os dois tiveram uma violenta discussão no quarto do casal. De acordo com dona Nadir, a filha recuou até o closet, onde tentou se trancar para proteger-se do avanço descontrolado do marido. A essa altura, ele já estava munido com uma das armas que mantinha ilegalmente em casa. “Ele tinha mais força, arrebentou a porta e deu um tiro nela”, conta a mãe. A bala ricocheteou na coluna vertebral de Fernanda e voltou para o coração. Ela morreu na hora. Um outro tiro, dado provavelmente quando ela caiu sobre os braços dele, atingiu a janela do closet.
A advogada do acusado, Dora Cavalcanti, ex-sócia do criminalista Márcio Thomaz Bastos (1935-2014), ministro da Justiça entre 2003 e 2007, sustentou que Fernanda teria se matado depois de um longo período de depressão. “Ela tem um histórico da doença, sempre frequentou psiquiatras”, disse. A família Orfali afirma que sua caçula jamais foi a um psiquiatra até se casar.  “A Nanda era a pessoa mais alegre da casa. Fazia brincadeira de tudo, era uma criança grande. Não consigo nem imaginá-la tentando se matar”, afirma Julio. Dona Nadir pergunta: “Você já viu uma pessoa dar dois tiros em si mesma, sendo que o primeiro acertou o coração?”
“O pai (de Sérgio) sabia do vício dele”
Com 1,70m de altura, morena, atraente, Fernanda ia bem na escola e tinha carisma. Em casa, era o xodó da família. Dona Nadir conta que Alexandre, cinco anos mais velho, tinha adoração por ela. Renata, a terceira, ri ao lembrar-se de que a irmã estava sempre pronta para ir a uma festa. Antes de casar-se, Fernanda teve dois relacionamentos longos.
Ela foi apresentada a Sérgio por um casal amigo de seus pais do Esporte Clube Monte Líbano, na zona sul de SP, frequentado pela colônia árabe. Julio e Alexandre já o conheciam porque jogavam bola juntos. Mas o relacionamento dos irmãos com o futuro cunhado nunca foi próximo. “Apesar de ser um cara simpático, ele tinha umas reações violentas. Uma vez, em uma briga de jogo, ele arrancou a camisa do adversário”, lembra Julio. O namoro de Fernanda e Sérgio evoluiu rapidamente, até que, um ano depois, os dois resolveram se casar. Dona Nadir não tem dúvidas de que o pai de Sérgio “sabia do vício do filho e dos parceiros dele”. “Mas ele queria um herdeiro. E disse a Fernanda que ela podia escolher o que quisesse para a festa, do bom e do melhor, igreja, vestido, bufê, a conta era dele”.
Um mês depois do casamento, Sérgio contou a Fernanda que era viciado em cocaína — mas estava lutando para livrar-se da droga. Ela pensou em deixá-lo. Dona Nadir diz que a aconselhou a ficar, “salvar uma vida”. “Na ocasião, o pai do Sérgio providenciou um psiquiatra para acompanhá-lo no período de abstinência, e outro para ajudar Fernanda a conviver com um marido viciado.” Segundo dona Nadir, o psiquiatra de sua filha era conhecido de José Nahas da igreja ortodoxa e “encheu a Nanda de antidepressivos”. Ainda se apresentou mais tarde como testemunha de defesa de Sérgio e depôs durante quatro horas, diz Julio. O promotor que trabalhou no caso, Romeu Zanelli, estranhou: “Nem sabia que um psiquiatra podia falar publicamente o que ouviu de seu paciente em confidência.”
Dora Cavalcanti fala do caso como uma história de amor triste,  interrompida por causa de um problema de depressão profunda. “O Sergio ficou muito abalado com a morte da Fernanda. Ele carrega a dor dessa tragédia com ele”, disse.
Para promotoria, a cena do crime foi alterada
Cerca de 30 minutos antes de ser assassinada naquele sábado, 14 de setembro de 2002, Fernanda ligou para Julio pedindo que ele fosse buscá-la. O irmão percebeu que era grave, porque na véspera ela tinha ligado perguntando: “O que eu faço para sair daqui?” Fernanda parecia desesperada. Ele foi socorrê-la. A caminho de Higienópolis, ligou para Alexandre e contou que a irmã estava em apuros. Renata, a terceira, também foi. No percurso, ligou para Fernanda, mas quem atendeu foi Sérgio. “Aquela altura ele já tinha matado ela. Tanto que disse: ‘Agora, você pode vir buscar sua irmã.’” Ao entrar na Rua Basílio Machado, ele avistou uma viatura da polícia e uma ambulância do Samu em frente ao edifício onde a irmã morava com o marido. Suspeitou que era com ela. E era. Ao blog, Dora Cavalcanti declarou que, “em respeito à dor do irmão de Fernanda, não iremos tecer considerações a respeito da sua versão sobre os fatos”. Julio, por sua vez, afirma que “a ligação ficou registrada e está no inquérito”.
Alexandre, Fernanda, dona Nadir, Julio, Julio “pai” e Renata, com o filho - (Foto: Arquivo pessoal)
Quem chamou a polícia foi o próprio Sergio. Quando os irmãos de Fernanda chegaram, José Nahas já estava no apartamento também. A promotoria afirmou que a cena do crime tinha sido alterada. “O local não foi adequadamente preservado. E eu estou sendo light”, afirmou o promotor Zanelli. Sérgio Nahas sustentou que Fernanda se trancou no closet dizendo que ia se matar e que, quando ele arrombou a porta para tentar salvá-la, era tarde demais. O problema, disse Zanelli, é que só havia vestígios de pólvora na camisa dele — encontrada escondida embaixo da cama do casal. Dora Cavalcanti afirmou que os vestígios passaram para a camisa de Sérgio quando ele abraçou a mulher. Em sua análise, a perícia achou improvável que a pólvora tenha passado da roupa dela para a dele. Sérgio foi preso na hora, por porte ilegal de armas. Ele mantinha em seu apartamento pelo menos quatro.
Casamento com suíça e filhos gêmeos
Em 2002, Sergio Nahas estava com 38 anos. Já havia sido casado, mas não teve filhos. Em outubro de 2004, registrou sua união com uma suíça no 11º Cartório de Registro Civil, em Santa Cecília, na região central da cidade, com quem teve filhos gêmeos. O oficial que lavrou o documento o reconheceu das páginas policiais dos jornais e comunicou ao Ministério Público que ele estava se casando com uma estrangeira. Mencionou que a nova senhora Nahas tinha vindo ao Brasil apenas três vezes. Depois de confirmar, o MP pediu a prisão de Sérgio. Ele ficou na cadeia de 11 de novembro de 2004 até 7 de dezembro do mesmo ano, quando sua defesa conseguiu um habeas corpus.
Em março de 2017 a tragédia completou 15 anos, sem que a Justiça tivesse resolvido o caso. Depois de várias apelações, os advogados de Sergio Nahas tentaram entrar com um recurso extraordinário no Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ) barrou, por considerar que a petição teria apenas efeito protelatório. A defesa então entrou com um agravo da decisão do TJ. Julio Orfali foi a Brasília pedir pessoalmente no STJ que apressassem o julgamento. Mas o processo ainda subiria ao Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta instância do poder judiciário. O STF o mandou de volta para o TJ. Finalmente, marcou-se o júri para o dia 8 de novembro. “Eu quero que se faça Justiça, para que o criminoso sinta na pele o mesmo sofrimento que eu experimentei”, diz dona Nadir, que se retirou para o interior de São Paulo e até hoje toma antidepressivo de uso contínuo.
UOL

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