domingo, 25 de junho de 2017

Futuro rei das Arábias

Mohammed Bin Salman: moreno, alto, bonito e rico, futuro do rei das Arábias promete?

O novo herdeiro oficial tem que modernizar o país, enfrentar pressões e tradições violentas e, se der, participar de um acordo de paz no Oriente Médio


O rei mais modernizador da Arábia Saudita acabou com a escravidão e abriu o primeiro canal de televisão. Por causa disso, foi morto a tiros por um sobrinho. O assassino foi condenado e decapitado numa praça de Riad.
O fim espantoso do rei Faisal merece ser lembrado porque não aconteceu no tempo das tribos movidas a camelo, mas em 1975, um nada em termos históricos. E, evidentemente, por causa da reviravolta acontecida agora na sucessão no reino saudita.
O rei atual, Salman, que está com 81 anos e, segundo os inimigos, indícios de demência, manteve a cabeça muito clara e completou o que vinha armando há muito tempo: nomeou o filho predileto como seu sucessor. Para adoçar a reviravolta, mandou distribuir 30 bilhões de dólares em bônus e pagamentos adicionais à população.
Mohammed Bin Salman tem 31 anos e, de tão moderno, apenas uma esposa.
Mas não existe imagem alguma da princesa Sara, prima do marido por um ramo tribal tão importante que o pai dela chegou a ser considerado candidato ao trono.
A ausência de registros públicos, ao contrário de outras tantas princesas sauditas que adotam causas modernizadoras, indica uma vida de respeito extremamente estrito aos princípios da corrente muito severa da religião muçulmana seguida na Arábia Saudita.
Ou pode ser que a princesa esteja apenas aproveitando em sigilo seguro a vida quase inimaginável proporcionada pelas fortunas estonteantes da sua própria família e de seu marido.
PIOR DOS PECADOS
Sucesso com o público feminino por causa da bela estampa, ao contrário de todos os anteriores ocupantes do trono, o futuro rei despeja uma parte dessa fortuna em empresas de relações públicas mundo afora para construir uma imagem positiva.
É tanto dinheiro, espalhado por tantas frentes, que é quase impossível distinguir entre fatos e fabricações sobre o príncipe bonitão. Na versão mais simpática, ele é extraordinariamente inteligente e bem dotado, a ponto de ser colocado pelo pai na frente de todos os demais filhos prediletos, os tidos com a mais próxima das três esposas, entre os quais se incluem o primeiro astronauta saudita.
Na versão espalhada pelos inimigos, entre os quais o Catar e seu influente braço de propaganda, a televisão Al Jazeera, Mohammed é um herdeiro arrogante, belicista, americanista e, dito nas entrelinhas, favorável a Israel. Este, naturalmente, considerado o pior dos pecados.
Ressalve-se que na conta dele é pendurada a pendência atual da Arábia Saudita com o Catar, uma briga entre primos que continua rendendo. Também foi o príncipe herdeiro quem comandou a intervenção saudita na guerra civil no Iêmen, outro país unido por laços tribais aos sauditas, embora esquecido por Alá na hora de distribuir o petróleo.
O fato de que os sauditas, com todos os seus formidáveis armamentos comprados nos Estados Unidos e quadros militares com formação idem, não consigam debelar a rebelião dos houthis, uma minoria que segue o xiismo e tem ajuda do Irã, é uma prova de que o dinheiro compra muita coisa, mas não faz milagres.
COMPRA POR IMPULSO
Por causa da mudança na sucessão, que na Arábia Saudita é lateral, seguindo a linha dos irmãos mais privilegiados ou filhos mais velhos e destacados destes, foi muito lembrada uma reportagem recente do New York Times.
É a história da compra por impulso de Mohammed Bin Salman. Ele estava na Côte d’Azur, viu passar um dos iates mais fabulosos do planeta e não sossegou enquanto o Serene não foi seu. Preço do capricho: 500 milhões de euros.
O dono do barco era Yuri Shefler, ele próprio um personagem de romance: é dono da empresa de bebidas que fabrica a vodca Stolichnaya, marca que “capturou” quando fugiu da Rússia, instalando a produção na Letônia.
Um detalhe das entrelinhas, de novo, é que Shefler era da turma dos “judeus bilionários” de Vladimir Putin, os oligarcas que depois entraram em guerra de vida ou morte, literalmente, com o czar.
A compra do iate, que tem hangar de helicóptero, com doze cabines para passageiros e trinta para a tripulação, é dada, pelos inimigos, como mais um exemplo das simpatias “sionistas” do futuro rei.
OPÇÃO SAUDITA
Na prática, a Arábia Saudita já tem uma aliança tácita com Israel, baseada no princípio do inimigo comum, o Irã. Também já procura há muito tempo um acordo clássico: Palestina independente, com territórios na maioria devolvidos e sob controle dos líderes da Autoridade Palestina (o Catar, em oposição, apoia o Hamas, no poder em Gaza), contra garantias de segurança e estabilidade para Israel.
Falar é fácil, difícil ou quase impossível é fazer, inclusive pela minoria forte em Israel, com participação no governo Netanyahu, que considera qualquer acordo do tipo autodestrutivo.
Aparentemente, é essa linha da opção saudita que Donald Trump está seguindo: aproximação mais forte com o reino, neutralização relativa do Irã e pressão, sorridente e amistosa, mas forte, sobre Israel, para encaminhar o sonho de todo presidente americano, um acordo de paz no Oriente Médio. No caminho, claro, também tem a infernal guerra na Síria.
E aparentemente o futuro rei saudita está na mesma sintonia. O que vai conseguir fazer é outro assunto. O assassinato do rei Faisal, mencionado no começo, é uma das provas das violentas e contraditórias pressões que existem no reino criada há apenas 85 anos por Abdulaziz Ibn Saud, o chefe tribal que conquistou o deserto na ponta da espada e disputou preferências do império britânico.
FLORES PROIBIDAS
As tribos da região haviam adotado uma linha fundamentalista espalhada no século 18 por uma espécie Savonarola muçulmano, Mohammed al-Wahabb. Pregador de um ultra-puritanismo religioso tão estrito que proscreve tudo o que separe da devoção total a Alá, ele deu nome a esta doutrina, o wahabismo.
Por esta linha, música, todo tipo de entretenimento e até vasos com flores desviam a atenção dos fiéis. A proibição corânica à reprodução de qualquer tipo de figuras humanas foi reforçada ao extremo. Daí o escândalo entre religiosos e fiéis mais estritos quando o rei Faisal autorizou a abertura de um canal de televisão: transmitir imagens de pessoas foi considerado anátema.
Um dos inúmeros sobrinhos de Faisal foi morto na repressão a um protesto violento contra a estação, que começou as transmissões em 1965. Anos depois, seu irmão pediu uma audiência, aproximou-se para receber o beijo do rei, sacou um revólver e acertou dois tiros nele.
Com o tempo, muito sauditas desenvolveram uma teoria conspiracionista para “explicar” o regicídio: foi tudo complô das petrolíferas americanas por causa do boicote que se seguiu à guerra de 1973 entre países árabes e Israel, conhecida como a Guerra do Yom Kippur (resultado: conquista do Sinai, depois devolvido em virtude do acordo de paz com o Egito, e das montanhas de Golan, da Síria).
FANATISMO
Sobre a outra informação contida no início: Faisal aboliu a escravidão em 1962, sob pressão dos Estados Unidos. Cada dono de escravos foi indenizado por cabeça. Isso dá uma ideia do atraso monumental do reino que o futuro rei galã quer transformar numa potência pós-petróleo.
Para dar outra ideia: a Arábia Saudita arma e apoia uma facção em guerra na Síria que só não é a mais radical porque existe o Estado Islâmico. E nos dias anteriores e posteriores à promoção de Mohammed Bin Salman a herdeiro direto houve pelo menos três atentados suicidas no reino, praticados por adeptos do Estado Islâmico, cujo radicalismo atrai grande quantidade de sauditas.
“Política externa, defesa, política econômica e energética e as questões de mudança social estão há vários anos sob controle do príncipe. E devem continuar assim durante as próximas décadas”, analisou um acadêmico saudita ligado ao Atlantic Council, Mohammed Alyahya.
Prever é fácil, difícil é as previsões se realizar. Embora a palavra dos especialistas deva ser levada em conta. Ibn Saud e sua turma do deserto de Najd tinham “a mente preconceituosa e fechada dos puritanos”, escreveu um deles. “Se conseguirem se impor, em lugar do Islã tolerante de Meca e de Damasco, teremos o fanatismo do Najd.”
O nome do especialista era T.E. Lawrence. O agente britânico que se tornou “nativo” e ficou conhecido como Laurence da Arábia, morreu em 1935 deprimido e desiludido com a traição de suas promessas aos aliados árabes.
Estes, por sua vez, sob regimes monárquicos tribais ou militares nacionalistas, criaram países disfuncionais. Os do deserto, identificáveis pela roupa tradicional – camisolão branco, lenço preso na cabeça por uma corda chamada igal e chinelos -, logo passaram a desfrutar da bêncão, e também da maldição do petróleo que jorra em lugares sem histórico de democracia.
A modernização política e religiosa que precisam não vai acontecer por um ato de vontade de um emir. Mas, sem isso, tem menos chances ainda.
Veja

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