quinta-feira, 28 de julho de 2016

A triste realidade nordestina

Revista NORDESTE traz pesquisa inédita que mapeia região da seca

Pesquisa inédita mapeia o semiárido, identifica desigualdades e áreas extremamente carentes sem aporte do Estado; acessos à educação e informação ajudam sertanejos a conviver com a seca



Paisagem árida lembra filmes de faroeste norte-americano (ASA)
O semiárido brasileiro lembra os filmes de faroeste norte-americanos, sem o glamour do cinema e os bandeirantes chegando para ocupar a terra inóspita. A realidade nordestina é bem mais triste. Há foras da lei, miséria, falta d’água, pouca ou nenhuma infraestrutura e um sol inclemente. Parece que quase não há heróis. Mas existem. Eles estão fora do quadro registrado pela televisão, pelo fotógrafo ou pela câmera de cinema, em cenas anônimas diárias, como a mãe ou o pai que anda quilômetros carregando um balde de água. Como o agricultor que teima em não abandonar a terra e busca meios de sobreviver.
Definitivamente, o sertão não vai virar mar. Essa previsão feita por Antônio Conselheiro e perpetrada em versos e prosas talvez faça parte da saudade dos tempos pré-históricos, da época da pangeia, quando boa parte da região esteve coberta por um imenso oceano, há aproximadamente 300 milhões de anos. Hoje, a região se aproxima bem mais do deserto.
O seu acelerado processo de desertificação atinge regiões da Bahia, Piauí, Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará. Dados de 2013, do Instituto Nacional do Semiárido (Insa), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, apontam que a área degradada ou em risco de degradação pode atingir cerca de 55 mil Km2, afetando 750 mil brasileiros. Assim, o povo do sertão vê a falta d’água e a seca como seus maiores males. Afinal, essa falta é o elemento mais visível ao se olhar à paisagem cáustica, os animais mortos e a terra infrutífera.
Contudo, há anos pesquisadores afirmam que a questão não é a falta d’água. Ainda que ela seja importante, outros fatores perpetuam o drama da seca. A afirmação é do professor Guilherme Reis Pereira, do Grupo de Geoprocessamento Centro Regional do Nordeste (CRN) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), lotado no Rio Grande do Norte. Pereira disponibilizou à Revista NORDESTE pesquisa realizada nos últimos dois anos sobre o semiárido brasileiro, realizada por ele e pelo Dr. Paulo Sobral Escada e os bolsistas Vânia Heloise de Oliveira e Francisco Fortunato Segundo. Na pesquisa, é desconstruída a ideia de um semiárido compondo uma única paisagem do sertão. São constatados vários sertões.
Pereira ainda sinaliza que onde há mais ONGs que ajudam na difusão do conhecimento, a população tem mais chances de boa convivência com a seca. Essas ONGs, hoje, fazem um trabalho que podem ser comparados ao das Ligas Camponesas no passado, em termos de importância, e suprem uma lacuna importante. As ligas camponesas surgiram numa situação de exploração do agricultor e reivindicava direitos trabalhistas. “As ONGs têm o objetivo de capacitar as comunidades rurais para que sistematizem e difundam conhecimentos ecológicos sobre a caatinga. Então, onde existem essas instituições os agricultores têm mais resiliência aos efeitos da seca”, pontua.
Apesar de constatar a presença de entidades de apoio, como as ONGs e o próprio estado, a conclusão da pesquisa aponta para aspectos inquietantes, entre eles, que áreas que são (ou estão) menos vulneráveis à seca recebem mais aporte do governo ou das ONGs, enquanto outras, mais carentes, permanecem esquecidas. O pesquisador sinaliza para algo aparentemente óbvio: existe uma relação direta de melhor convivência com a seca em grupos que têm mais informação e educação. Quanto mais ignorante, mais pobre, dependente de recursos públicos e mais vulnerável. Nas páginas que se seguem, com base na pesquisa do Inpe, a Revista NORDESTE busca descortinar o semiárido nordestino e seus vários sertões. Ainda que imagens de retirantes e de multidões saqueando mercados e feiras não faça mais parte da realidade nordestina, ainda não existe uma política de convivência com a seca. 
As secas que atingem Piauí, Paraíba e Pernambuco

Pereira, ao centro, junto aos demais pesquisadores que possibilitaram o levantamento (ASA)
Quem olha para o cenário do semiárido durante a seca e acredita ver uma única paisagem comete um equívoco. A informação está ancorada em artigo dos indianos Ashok K. Mishra e Vijay P. Singh que publicaram em 2010 “A Review of Drought Concepts” (em tradução livre como Uma Crítica aos Conceitos da Seca. A Índia é um dos países que tem semiárido). Segundo o artigo, existem vários tipos de secas – a meteorológica, hidrológica, agrícola e socioeconômica.
A seca meteorológica é definida quando o valor de chuva acumulado é inferior ao valor esperado em um período de um mês ou mais – para o nordeste algo em torno de 800 milímetros por ano. A seca agrícola está associada à baixa umidade do solo com insuficiência de água para as culturas e é medido no intervalo de 10 dias. A seca hidrológica é a deficiência no volume de água disponível, incluindo os reservatórios, rios e lençol freático. “A seca socioeconômica é uma consequência dos demais tipos de seca, sendo representada monetariamente. A seca socioeconômica vai variar em cada região de acordo com a capacidade de auto organização, adaptação e a implementação de políticas públicas”.
A pesquisa avaliou os estados segundo sua vulnerabilidade, capacidade adaptativa, sensibilidade e exposição. Entendendo a vulnerabilidade como onde existe maior exposição aos riscos da seca. Para o autor, a definição de vulnerabilidade abrange características de uma pessoa ou grupo social em termos de sua capacidade para antecipar, lidar e resistir aos impactos de um risco natural. A capacidade adaptativa se reflete nos estados ou cidades que conseguem melhor se ajustar a seca e seus efeitos moderando danos; sensibilidade aponta os impactos da seca no sistema socioeconômico; e exposição refere-se a distribuição espacial e temporal de chuvas, ou seja, reflete a intensidade da seca que os agricultores estão expostos.
“Vulnerabilidade, capacidade de adaptação e resiliência, são conceitos que estão surgindo a partir da problemática das mudanças climáticas”, conta. O levantamento se deteve em seis estados do Nordeste: Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas. A partir dele foi confeccionado o Mapa da Vulnerabilidade, onde foram listados cerca de 350 municípios. Toda a pesquisa levou cerca de dois anos para ser realizada. Os dados compuseram um índice de vulnerabilidade climática composto por 11 indicadores que levam em conta os aspectos sociais, econômicos, político-institucionais e climáticos.
Os estados que aparecem como mais vulneráveis a seca são Piauí, Pernambuco e Paraíba. Para entender porque esses estados são listados como tendo maior vulnerabilidade, basta observar os dados da Paraíba. O estado tem 124 açudes públicos. No final de 2014 havia 61 com volume abaixo de 10%. Ou seja, a maioria dos açudes estavam com menos de 10% da sua capacidade. Em julho de 2016, 53 açudes estavam com volume entre zero e 5%. “Isso é o que chamamos de seca hidrológica. Quando você além de não ter o acumulado de chuva, os reservatórios vão secando. Alguns estados vão chegar mais rapidamente nessa seca hidrológica, justamente porque tem uma infraestrutura mais precária”.
A pesquisa demostra que os municípios mais sensíveis à seca combinam características demográficas e socioeconômicas e sofreram maiores perdas na agricultura e pecuária. Os mais vulneráveis têm um percentual elevado de população rural (mais de 50%), a qual dependente das atividades agropecuárias e tiveram uma queda de produção agrícola de mais de 70%. “Os trinta municípios do Piauí pesquisados têm os maiores índices de sensibilidade e vulnerabilidade porque tem a maior média da população residindo na área rural. São 53% morando no campo e em alguns municípios são mais de 70%, consequentemente, a maioria da população depende das atividades agropecuárias e se encontra em situação de pobreza. Além disso, estes municípios têm pouca diversificação produtiva e vinte municípios tiveram uma redução da produção agrícola maior que 70%”
Pesquisa utilizou dados do IBGE e da ONU

Seca tem matado rebanhos e impossibilitado sustento das famílias (ASA)

As informações que deram base à pesquisa foram levantadas no IBGE; também através do cálculo do acumulado de chuva, utilizando dados das agências estaduais de meteorologia; do índice de pobreza, utilizado pelo programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), que considera a pobreza tratando de outros aspectos, não só os aspectos econômicos, como a questão da baixa renda, mas também a privação de direitos sociais. Desta forma, foi observado qual era o percentual da população rural nas cidades, qual o percentual da população ocupada na agropecuária, de domicílios rurais sem saneamento adequado, quantos domicílios particulares rurais têm televisão – considerado esse como o acesso mínimo à informação –, quantas pessoas de 10 ou mais anos de idade estão alfabetizadas, qual foi a redução da produção agrícola (comparação de 2013 a 2011 – ano normal, para o semiárido), qual o efeito da seca nos rebanhos; se há alguma instituição que trabalha na capacitação de agricultores para ter uma melhor convivência com o semiárido.
Com esses dados em mãos, constatou-se que na Paraíba houve uma queda de 28% só no número de rebanho em função da seca. “O que chama a atenção é que é muito heterogênea a vulnerabilidade nesses 350 municípios. Por quê? Primeiro porque existe uma irregularidade das chuvas entre microrregiões e até entre municípios. Por uma característica própria do semiárido há uma variabilidade muito grande e uma irregularidade em termos espaciais. As vezes chove um pouco mais num município em relação ao município vizinho. A seca meteorológica – que tem a ver com a quantidade chuva – não é igual em todas as regiões do semiárido”, pontua.
Para compor o resultado da pesquisa, os estados e as cidades ganharam notas de acordo com a pontuação recebida em cada item. Os números percentuais foram transformados em decimais que variam de 0 a 1, sendo que os valores próximos de 0 representam baixa vulnerabilidade e próximos de 1 significa alta vulnerabilidade. Por exemplo, se a média de chuva foi de 300 mm (considerado extremamente baixa) em um determinado município, o índice de vulnerabilidade é 0,7. Assim, os municípios com índice entre 0,2 a 0,3 têm muito baixa vulnerabilidade, os municípios com índice 0,3 a 0,4 têm baixa vulnerabilidade, os municípios com índice entre 0,4 a 0,5 têm média vulnerabilidade, os valores entre 0,5 a 0,6 representam alta vulnerabilidade e 0,6 a 0,7 muito alta vulnerabilidade.
Uma alta vulnerabilidade sinaliza cidades ou estados que acabam sendo fortemente atingidos pela seca, com racionamento de água, sem poder utilizar o insumo para agricultura ou animais, o que muitas vezes acarreta uma situação de pobreza extrema e dependência exclusiva de verbas públicas para subsistência.
Na média, os estados pesquisados receberam notas entre 0,5 e 0,4 (considerada média vulnerabilidade). Sendo que as notas maiores foram dadas aos estados do Piauí (0,574), Pernambuco (0,467) e Paraíba (0,446). Entretanto, quando se olha os municípios mais afetados, o problema piora sensivelmente e as notas chegam a 0,7 (muito alta vulnerabilidade). Entre as cidades mais vulneráveis estão Dois Riachos (AL), Triunfo Potiguar (RN), Itacuruba (PE), Itaiba (PE), Olho D'Água do Casado (AL), Lagoa da Canoa(AL), Caracol (PI), São José do Peixe (PI), Nova Palmeira (PB) e Quiterianópolis (CE) todas com índice entre 0,7 e 0,6. Um ponto importante a ser observado em relação a vulnerabilidade, diz respeito a localização em relação as bacias hidrográficas e a posse da terra. “Aqueles municípios que estão próximos a um rio perene, ou de um açude, conseguem resistir mais a seca, do que os municípios que estão mais distantes das bacias hidrográficas. Além disso, houve uma concentração de terras, desde o final dos anos 80, até os anos 2000, em vários estados, o que fez com que as pequenas propriedades diminuíssem e aumentassem as propriedades de 100 hectares, isso é um fator também que aumenta a vulnerabilidade”. A terra passou a se concentrar na mão de poucos donos. Sem a terra o agricultor se torna mais dependente e tem menos acesso a condições que poderiam melhor sua condição de vida.

Programas do Governo Federal tentam minimizar o problema, mas ainda carecem de melhor direcionamento (ASA)

Ceará, melhor equipado para enfrentar a seca

Entre o ranking de municípios menos vulneráveis é possível destacar cidades como Martins (RN), Juazeiro do Norte (CE), Lagoa Seca (PB), Arapiraca (AL), Jacuípe (AL), todos com índice entre 0,2. O estado mais bem preparado, em termos de infraestrutura hídrica é o Ceará, com capacidade adaptativa de 0,7.
Leia-se por infraestrutura hídrica, grandes reservatórios que consigam abastecer por mais tempo a população num período de seca. Vale ressaltar que o Ceará foi um dos que mais sofreu calamidades no passado, chegando a ter mais de 500 mil mortos devido a seca em 1879. Hoje essa qualidade adaptativa surge justamente porque foram construídos grandes reservatórios. Existe o Castanhão, o Orós, e ainda duas bacias hidrográficas que cortam pelo menos a parte leste do estado. Justamente por ter dois rios que cortam o leste, o Ceará vem conseguindo aumentar a produção em até três vezes na área irrigada. Tornando a situação mais favorável em termos de abastecimento de água, considerando a realidade do semiárido. Tanto é assim que na região foram implantados três perímetros irrigados. “Em 2014 eu estive lá e eles estavam aumentando a produção e, consequentemente, aumentando o consumo de água. Passaram 2012, 2013, 2014 utilizando a água ou do Rio Jaguaribe, ou dos grandes reservatórios que têm lá”, ressalta Pereira.
Questionado sobre qual o estado tem a pior infraestrutura, Pereira afirmou que é difícil dar uma resposta tão categórica. “Dá para presumir que pelo efeito que teve a seca no oeste da Paraíba e também em Pernambuco, ela foi mais intensa porque a capacidade dos reservatórios não sustentou. Você não consegue resistir a seca por muito tempo quando os seus reservatórios são insuficientes. E tem ainda o problema da evaporação. Há uma perda muito grande de água pela evaporação. Os reservatório superficiais até certo ponto, também vão se esgotando pelos efeitos da seca e pelas altas temperaturas”. Vale ressaltar: o potencial evaporimétrico da região é superior a 3.000 mm/anuais, para 800 mm de chuva por ano, a conta não fecha.
Várias secas e deficiência de políticas públicas

Sertanejos fazem barreiro subterrâneo, forma simples de manter água das chuvas (ASA)
“No Mapa confeccionado pela pesquisa, que está no artigo, o que chama atenção é a diversidade de vulnerabilidade. A gente vê um município altamente vulnerável e o seu vizinho com vulnerabilidade média ou moderada. Os fatores que explicam a heterogeneidade da vulnerabilidade ainda são questões ligadas ao aspecto físico, a quantidade de chuva irregular, a infraestrutura desigual, um acesso a água desigual, devido a localização das bacias, a questão social e política e o quanto as comunidades estão organizadas para enfrentar e se adaptar ao problema da seca”, alerta. Esse conjunto de fatores aponta para a ineficiência ou a não aplicação de políticas públicas. “Vamos dizer que ao longo da história foram tomadas iniciativas depois que já existia a seca (a distribuição de água por carros-pipas), ou seja, ações reativas, sobre um fenômeno repetitivo. É um fenômeno que acontece a cada 10 anos. Mas, boa parte das políticas públicas vem no sentido paliativo, quando deveriam estar se preparando já antes!”.
O estudioso frisa que quando se fala na seca no semiárido, acredita-se que ela foi igual em todo nordeste. “Os dados mostram que os efeitos são heterogêneos. Se fosse para ter uma política, essa política deveria considerar onde é preciso construir um reservatório. Seria onde já existe uma resistência maior e já tem uma infraestrutura, ou será que deveríamos construir um reservatório numa região onde os resultados apontam alta vulnerabilidade?”, indaga.
“Uma política nacional é necessária, mas uma política de mitigação que atue no sentido de se preparar para a próxima seca. Não de reagir a seca que está passando, porque não é uma fatalidade. A seca é uma certeza, a seca é um fenômeno do semiárido, é natural. E há agora a previsão que o intervalo entre uma seca e outra vá diminuindo”. Atualmente meteorologistas como Luiz Carlos Molion tem apontado para alterações climáticas em relação aos ciclos da seca.
Durante a pesquisa, Guilherme Pereira pode constatar que existem microrregiões que já têm uma base social organizada. Exemplo do oeste de Pernambuco, as cidades de Formoso e Trindade são alguns dos municípios que já adotam novos conhecimentos que lhes ajudam a se adaptar a seca. “Esse conhecimento precisa ser difundido para outras regiões. Existe assessoria de projetos alternativos da Paraíba que atuam nos 10 municípios do polo da Borborema, que é uma região que chove até um pouquinho mais em relação as outras regiões”, revela. Pereira informa que existem ONGs que atuam no seu entorno ajudando 20 a 30 cidades, mas acabam deixando de fora outros cem municípios. O Governo Federal também tem implantado ao longo do governo Lula e de Dilma Rousseff (PT), o projeto de construção de cisternas, a meta era construir algo em torno de um milhão cisternas. “Temos uma população de 12 milhões de pessoas morando na área rural, se foram atingidos 2 milhões de pessoas com essas cisternas, existem ainda 10 milhões que esperam por uma política pública para ter acesso a segurança hídrica. Existe a necessidade de uma política pública abrangente, que seja estruturante e leve em conta a heterogeneidade da realidade. Não é um sertão, temos vários sertões”, finaliza. 
Paulo Dantas

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