"O brasileiro está procurando outras maneiras de ser homem", diz historiadora
Organizadora do livro “História dos Homens no Brasil”, Mary del Priore diz que pais estão "inaugurando uma nova faceta" da masculinidade no Brasil, mas que a sociedade como um todo ainda é machista e que o sexo masculino também acaba sendo vítima dele
| iG São Paulo
“O heroísmo dos campos de batalha migrou para o cinema e a
cama. Ali, no início do Século XX, forjaram-se padrões de comportamento
masculino em que a coragem e bravura eram regras. ‘Dar no couro’ também
era norma. O homem viril precisava ser igualmente incansável. As falhas,
sempre discretamente tratadas. (...) Entre os anos 1960 e 1990, grandes
rupturas: nascia o ‘metrossexual’. Um ‘novo homem’. (...) O aumento de
revistas masculinas e a proliferação de serviços para cuidar e
aperfeiçoar o corpo masculino (que alteraram não só o físico, mas a
cabeça de muitos). Multiplicou-se a preocupação com a ‘diversidade’.
Quantos homens cabem num só?”
Ex-professora
da USP e especializada em História do Brasil, Mary del Priore questiona
e busca responder esta dúvida em 12 textos organizados por ela e Marcia
Amantino e publicados em “História dos Homens no Brasil” (Editora
Unesp).
“
'Bom cabrito não berra' ou 'homem não chora' são expressões populares que demonstram que a história dos homens não foi um passeio num cenário de conquistas e atos heroicos, mas também de dores e humilhações que os condenam a sofrer calados. É a história de lutas num ambiente extremamente adverso."
Em entrevista ao iG por e-mail, a
historiadora afirma que o conceito de masculinidade sofreu diversas
mudanças ao longo de décadas, influenciado por acontecimentos
históricos: “Não existe um, mas vários homens brasileiros, pois sua
‘masculinidade’ não é um dado natural, mas uma variável construída de
acordo com diferenças de classe, educação, religião, orientação sexual e
até da área geográfica onde estão situados”.
De acordo
com Priore, a figura paterna está “inaugurando uma nova faceta” da
masculinidade no Brasil, mas que a “sociedade como um todo” ainda é
machista. “Homens aprendem com as mães que o machismo nasce em casa”,
diz. Leia a entrevista:
iG: Historicamente, quem é o homem brasileiro?
Mary del Priore:
Ser homem ou se tornar um, saber que comportamentos adotar de acordo
com sua época, é um longo aprendizado social. Algo relacionado não só às
dimensões culturais, como também à política, à economia e aos debates
relacionados à identidade nacional. Não existe um, mas vários homens
brasileiros, pois sua "masculinidade" não é um dado natural. É uma
variável construída de acordo com as diferenças de classe, educação,
religião, orientação sexual e até da área geográfica onde estão
situados. Mas o que vemos hoje e mereceu nossa atenção foi o fato de que
eles estão procurando "outras maneiras de ser homem". E é delas que
buscamos falar.
iG: De onde surgiu a ideia de montar o livro?
Mary del Priore:
O livro dá continuidade a uma coleção que faço para a editora da Unesp
(Universidade Estadual Paulista) e que já tem outros títulos: História
das Mulheres no Brasil (prêmio Jabuti 1998), História das Crianças,
(prêmio Casa Grande & Senzala da Fundação Joaquim Nabuco 2000),
História do Corpo, dos Esportes e agora dos Homens. Reunimos autores
conhecidos por trabalhar dentro do tema e capazes de um texto agradável e
informativo. Pouca gente trabalha com o assunto, preferindo escrever
sobre "gênero feminino". Fomos contra a corrente e nesse aspecto, o
livro é inovador e trás mil novidades.
“
O nosso problema é que a maioria das mulheres não se importa em ser vista como tal (objeto sexual). E acredita que o 'fiu fiu' faz bem para a autoestima. Os homens podem mudar? Sim. Mas é preciso que as mulheres o façam antes."
iG: De que o forma o livro é inovador e que “outras maneiras de ser homem” são essas?
Mary del Priore:
O capítulo sobre o homem escravo revela o passado de nossos avôs
africanos, o trabalho, uniões, práticas sexuais, fugas e violências. O
celibato dos padres é outro assunto novo, bem como questões polêmicas em
torno de sua sexualidade: despiam a batina e brincavam de homens
comuns. No mundo rural, a virilidade se construía por meio das armas e
do sexo. A sífilis era o batismo de muitos. Um pai nunca anunciava o
nascimento de um filho, mas de um "macho". E os filhos bastardos eram um
signo de poder sexual. A introdução dos esportes e do ar livre na vida
dos homens do século XIX vai lhes permitir exibir músculos, potência. O
mesmo podemos dizer do homem em armas: o exército como palco para
exibições sobre a força, a honra e a violência.
iG: É dito
na apresentação do livro que "o Brasil continua sendo um país
machista". Como mudar isso? A mudança parte da conduta do homem ou a
mulher terá que brigar como já fez muitas vezes no passado?
Mary del Priore:
O machismo não é especialidade brasileira e transformações da
sociedade ocidental têm oferecido chances de muitas mudanças. Quanto
mais se discute o tema, maior a conscientização, que vem sendo
acompanhada de regras e leis. A multiplicação de delegacias da mulher,
aplicações da Lei Maria da Penha, exemplos educativos na mídia, inovação
nos papéis femininos são formas de buscar soluções duráveis para o
patriarcalismo estrutural. O problema é que em nosso país as mulheres
também são machistas: não deixam o marido lavar a roupa, nem o filho
fazer a cama, se a namorada deste briga com ele é por que é p..., só
gosta de ser chamada de docinho, gostosa, tudo o que for comestível,
enfim. Os homens aprendem com as mães que o machismo nasce em casa. É a
sociedade como um todo que é machista.
iG: Quais transformações do mundo ocidental têm oferecido chances de mudanças?
Mary del Priore:
A moda, por exemplo, permitiu novas representações em torno da
masculinidade. Desde o passado mais remoto os homens de elite exibiam
trajes, barbas e cabelos de acordo com tendências da época. A vaidade e o
culto à beleza nunca estiveram fora de suas preocupações. Da peruca com
laço de fita e escarpin de saltinho à calça jeans com camiseta branca,
dos veludos e cetins ao linho ou lãs inglesas, do exibicionismo barroco à
severidade burguesa, a moda é um campo para explicar transformações de
hábitos e maneiras masculinas de viver. O mesmo podemos dizer da música e
do cinema a partir dos anos 60, que influenciaram estilos de vida e,
sobretudo, mudanças no campo da sexualidade: a cena do encontro de um
jovem com uma mulher mais velha – como mostrado no filme “A Primeira
Noite de um Homem – expunha os riscos da virgindade e da inexperiência
masculina que começava então a mudar. Transar pela "primeira vez", ir à
zona, a juventude engajada na cena pública, a revolução sexual com a
chegada da pílula, tudo isso revela mudanças de paradigmas. A partir dos
anos 70 e 80 vemos os gays em cena e a diluição do binômio hetero/homo.
iG: Quando se fala em mudanças, campanhas como a "Chega de Fiu Fiu" são fundamentais?
Mary del Priore:
Todas as campanhas que colaborem para uma valorização da mulher em
outro papel que não seja o de objeto sexual é válida. Nos países
desenvolvidos existem movimentos para diminuir o assédio e evitar que a
imagem da mulher fique inferiorizada. Nada de revistas pornográficas ao
alcance do olhar ou cartazes chamativos de lingerie, por exemplo. O
nosso problema é que a maioria das mulheres não se importa em ser vista
como tal. E acredita que o "fiu fiu" faz bem para a autoestima. Os
homens podem mudar? Sim. Mas é preciso que as mulheres o façam antes.
iG:
Em que sentido o homem brasileiro também é uma vítima? Ele é vítima da
própria sociedade que projeta esta imagem do conquistador?
Mary del Priore:
Sem dúvida. "Bom cabrito não berra" ou "homem não chora" são
expressões populares que demonstram que a história dos homens não foi um
passeio num cenário de conquistas e atos heroicos, mas também de dores e
humilhações que os condenam a sofrer calados. É a história de lutas num
ambiente extremamente adverso. De sobrevivência em meio às
desigualdades, de conflitos e tensões.
iG: Que dores e humilhações são essas?
Mary del Priore:
A aversão à homossexualidade, o horror da “cornitude” só mencionada
nos sambas de Lupicínio Rodrigues (compositor brasileiro tido como
criador do termo “dor de cotovelo”), a vergonha em torno do fracasso
profissional ou o silêncio sobre a falta de dinheiro, as exigências de
ereções permanentes e de um desempenho sexual excepcional, dúvidas
quanto à fidelidade da esposa ou dos amigos, a expectativa exacerbada da
família com relação ao sucesso profissional, a vergonha da doença
e do envelhecimento. São dezenas de exemplos em que o sofrimento
masculino vem sendo tratado com discrição e quase vergonha. Consultórios
psicanalíticos estão cheios de casos em que homens procuram socorro
por não saber lidar ou falar de suas limitações. O fantasma do amante,
marido, profissional e pai sem arranhões ou falhas continua a incomodar e
a fazer sofrer a muitos.
iG: Fizemos recentemente uma matéria sobre o “novo homem”, que deixou uma posição até então bem definida dentro da sociedade. Quem é ele para você?
Mary del Priore:
Houve grande transformação anunciada, aliás, na música (Super-Homem, a
Canção) de Gilberto Gil: "Um dia vivi a ilusão de que ser homem
bastaria". Onde mais se sente a mudança é na legislação sobre
paternidade. Os "direitos paternos" foram substituídos por "deveres" e a
autoridade, por cuidados. As novas leis esvaziaram os poderes do velho e
feroz patriarca, e hoje, ao lado do pai divorciado, homossexual, viúvo,
adotivo ou ausente, vamos encontrar uma nova realidade social
construída cotidianamente. Na ausência de mães, cada vez mais envolvidas
na vida profissional, os "pais" estão inaugurando uma nova faceta da
masculinidade no País.
iG: O "novo homem" é herança de uma
mudança recente ou reflexo de um consumidor que publicações voltadas
para o público masculino tentam criar, uma vez que a imagem do típico
machão ficou defasada?
Mary del Priore: Tudo junto, mas,
também, as novas condições nas quais vivem os tais "novos homens": idade
tardia para o casamento, vida de solteiro com as responsabilidades
domésticas, instabilidade econômica, descoberta de que o "emprego"
eterno foi trocado pelo "trabalho" intermitente, solidão nas grandes
cidades, enfim, a lista é longa. A partir daí os homens se adaptaram,
passaram a cozinhar, a ir ao supermercado, a levar os filhos na escola e
ao pediatra, a conviver com filhos e família de outras uniões, a viver
em um mundo, ele também "novo"! Aprenderam a aprender e isso é ótimo
para a sociedade como um todo.
iG: O último capítulo do seu livro aborda o fenômeno do MMA. Em qual homem o brasileiro se espelha? No “novo” ou no lutador?
Mary del Priore:
Há de tudo e para todos. Depende do nível de educação ou da aspiração
pessoal de cada um e por isso falamos sempre no plural: em
masculinidades. O interessante é que ao serem introduzidos no Brasil em
meados do século XIX, os esportes, até os mais violentos, vinham
acompanhados da ideia de que serviam ao "desenvolvimento intelectual da
mocidade". Não parece ser essa a contribuição do MMA. Por outro lado, a
luta não se resume a um palco para a crueldade espetacular. Os lutadores
se negam a reduzi-la à dimensão da violência. Trata-se mais da
valorização do corpo compreendido como veículo de status e poder. Ou de
uma forma de sociabilidade específica onde se misturam lazer, esporte e
estilo de vida.
iG: O homem brasileiro possui uma identidade própria construída ao longo de séculos ou ele busca referências no exterior?
Mary del Priore:
Somos mestiços de brancos, negros e índios. Aqui, diferentes culturas e
saberes se integraram à sociedade brasileira. Se buscamos referencias
no exterior? Sim. Modos de vestir e de comportar-se, o metrossexual, o
MMA, a lista é longa. Muitos homens cabem num só. Mas, no fundo, ele é
brasileiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário